Enéas Carneiro em dois tempos: do “voto cacareco” a um dos heróis da “nova direita”

Fundador do Prona, candidato três vezes à Presidência da República e imortalizado no cenário político-partidário pelo bordão que leva o seu nome, Enéas Carneiro teve sua memória reapropriada em tempos recentes.
1 de julho de 2019
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“Sou professor de cardiologia. Registrei no segundo ofício, em Brasília, um documento afirmando que, se não for eleito, não serei candidato a qualquer outro cargo em nenhum escalão do poder. Nunca fui, não sou e nem serei político profissional. Meu nome é Enéas!”.

A estreia de Enéas Ferreira Carneiro (1938-2007) na história política brasileira ocorreu por meio dessa curta frase, pronunciada em escassos 15 segundos, no seu primeiro programa do horário político eleitoral gratuito na disputa à Presidência da República em 1989. Mas depois de três disputas para presidente, ele mudou de ideia: concorreu à prefeitura de São Paulo em 2000 e foi eleito deputado federal pelo estado de São Paulo em 2002.

Enéas-Carneiro
Deputado Enéas Carneiro falando à Comissão da Amazônia, em 2004. Foto: Antônio Cruz/ABr – Agência Brasil

Com discurso nacionalista e autoritário, Enéas Carneiro passou de uma figura anedótica da política brasileira a recordista de votos para deputado federal. Se seu nome tem sido usado como símbolo ou “mito” por alguns grupos de extrema-direita do país, as bandeiras que tais grupos atribuem a ele não são exatamente precisas. Enéas elogiava a filosofia marxista, embora não fosse de esquerda, era contrário ao neoliberalismo e não adotava discursos sobre a suposta ameaça comunista no Brasil, por exemplo.

Então vale perguntar: para além do bordão, que se tornou bastante famoso, qual foi o papel desempenhado por Enéas Carneiro na política contemporânea? Por que e como sua trajetória tem sido resgatada recentemente? Qual é a imagem de Enéas Carneiro nos dias atuais? 1

Estas são as perguntas que espero responder neste artigo e que derivam de reflexões que desenvolvi em minha tese de doutorado defendida em 2016.2

1989: o contexto da estreia de Enéas e do Prona

Durante boa parte do século XX, o mundo se viu dividido entre dois blocos de ideologias político-econômicas: o capitalismo liberal e o comunismo estatista. Mas, no final do século, este cenário começou a mudar. Em 1989, o contexto político internacional esteve marcado pelo esfacelamento da União Soviética e dos capítulos finais do “breve século” XX. 3 Isso acarretou profundas consequências para as interpretações sobre as formas de arranjo do Estado e dos limites (ou a ausência deles) para a economia de mercado.

É possível citar, também, uma crise de dimensão ideológica, em termos das fraturas de futuros tangíveis no que diz respeito à organização social e de relação entre indivíduos. Se o capitalismo liberal parecia ter vencido a batalha ideológica e se firmado como modelo político-econômico hegemônico, ele também passava por suas próprias reestruturações. O neoliberalismo assumiria um ímpeto ainda mais transnacional, marcado pela ideia de uma governança global e pela contínua quebra de fronteiras na economia, o que foi favorecido pelo surgimento das novas tecnologias. Ou seja, estamos falando do fenômeno de globalização da economia: um mundo sem barreiras alfandegárias, sem protecionismo, sem subsídios – e também sem direitos trabalhistas, sem leis ambientais e outras proteções.

Nesse contexto, o Prona (Partido de Reedificação da Ordem Nacional) e seu líder da fundação à extinção, Enéas Carneiro, reivindicaram o campo do nacionalismo, em contraposição ao internacionalismo socialista e às agendas neoliberais que fomentaram as teses de “fim da história”4. Contudo, é preciso levar em consideração que o campo das direitas, no Brasil e no mundo, não se resumia exclusivamente às questões vinculadas às dimensões do mercado ou do Estado, mas também de aspectos pautados no apego à tradição, à hierarquia e aos valores conservadores, inclusive com um discurso moralizador, de apego à hierarquia e à ordem.

O próprio nome do partido (e, mais importante que isso, as suas práticas) evidenciava essas questões: o apelo à reordenação da nação, reedificada por meio de um nacionalismo orgânico e em respeito à ordem, que viria a ser orquestrada pela figura de um hipotético presidente Enéas Carneiro.

Naquele ano de 1989, o Brasil dava os primeiros passos de sua mais recente experiência democrática, após longos anos de ocaso das liberdades civis e políticas e um longo processo de transição, que certamente pode ser reconhecido como uma “transição conservadora”, 5 dada a persistência de atores e instituições atreladas ao regime de exceção – muito embora esses os atores políticos passarem a renegar, naquele momento, a classificação à direita do espectro político, num fenômeno que Leôncio Martins chama de a “direita envergonhada”6.

O Prona foi articulado às vésperas das eleições e propagava o culto à ordem e à autoridade, bem como a crítica aos políticos profissionais. Enéas Carneiro, portanto, era apresentado como a personificação da indignação do homem comum, a partir de uma espécie de simbiose entre um personagem “folclórico” (com seu devido potencial carismático) e uma liderança emergente e antissistêmica. Em seu discurso, se colocava como solução para uma desordem multifacetada e fazia apelo aos valores conservadores de uma sociedade marcada por experiências autoritárias e regimes antidemocráticos.

O crescimento político de Enéas Carneiro

Na primeira eleição à Presidência em que concorreu, a atuação de Enéas Carneiro chamou mais atenção pela propaganda eleitoral sintética e pelo uso da frase “Meu nome é Enéas”, alçando o líder do Prona à categoria de anedotário político. No entanto, os componentes de um nacionalismo autoritário e conservador, de larga influência na cultura política nacional, não passaram despercebidos a diversos setores da direita brasileira, que paulatinamente se aproximaram do partido.

Fossem grupos de pressão de militares da reserva, com um crescente descontentamento com os caminhos da chamada “Nova República”, ou mesmo pequenas siglas neofascistas atuantes no Brasil e no exterior (EUA e Argentina, em especial), fato é que o Prona construiu, para si e para Enéas Carneiro, a categoria de referencial para a extrema direita brasileira. E, mais que isso, a partir dessas relações, o Prona construiu uma identidade mais robusta, articulada e fundamentada no campo do pensamento nacionalista autoritário.

Em 1994, isso pode ser constatado de modo pleno. Em uma eleição polarizada entre Fernando Henrique Cardoso (PSDB, eleito em primeiro turno) e Luís Inácio Lula da Silva (PT), Enéas Carneiro alçou a terceira posição, garantindo 7,38% dos votos válidos, ficando à frente de candidaturas de peso, como de Leonel Brizola (PDT), Orestes Quércia (PMDB), entre outros nomes.

A que se deve isso? O discurso de “voto de protesto” certamente teve algum impacto, afinal de contas, Enéas Carneiro era uma figura outsider e antissistêmica. No entanto, além dessa dimensão do protesto, em que Enéas foi apelidado por alguns veículos de imprensa como “voto cacareco”7, a candidatura em 1994 ganhou um programa de governo, intitulado “Um grande projeto nacional”. Esse “grande projeto” foi construído com o apoio de vários intelectuais e militares, maior tempo de exibição nos canais de Propaganda Eleitoral, assim como uma legitimidade construída desde 1989 no campo da direita radical.

O discurso nacionalista, conservador, em contrariedade aos partidos políticos tradicionais e à privatização de estatais, foi uma característica perene das candidaturas de Enéas Carneiro em 1989, em 1994 e nas eleições seguintes. Em 1998, Enéas Carneiro conquistou a quarta posição nas eleições para Presidente, em eleição marcada pela proposta de construção de uma bomba atômica como instrumento de dissuasão estratégica.

Já em 2000, Enéas Carneiro contradisse o seu primeiro pronunciamento e se candidatou à prefeitura de São Paulo. Em 2002, foi o candidato recordista de votos para Deputado Federal, levando consigo outros cinco membros do Prona, no que fora chamado de “efeito Enéas”. Foi reeleito em 2006, meses antes da fusão do Prona com o Partido Liberal (PL) – o que posteriormente geraria o Partido da República (PR) – e cerca de um ano antes de seu falecimento, vitimado por leucemia mieloide aguda.

Usos da memória

Após a morte de Enéas Carneiro, e especialmente ao longo do processo de agitação de setores conservadores, a que diversas e diversos especialistas denominam como as “novas direitas” ou “onda conservadora”,8 a figura do líder do Prona passou a ser apropriada por essa novas e antigas expressões da direita brasileira. No entanto, desperta atenção algumas questões.

Em primeiro lugar, Enéas Carneiro é costumeiramente retratado nas redes sociais como uma figura política tributária à história do anticomunismo no Brasil, que tem expressões em diversos polos do pensamento de direita, seja o católico, das Forças Armadas ou do próprio fascismo. Sem dúvida, em vários momentos o líder do Prona dedicou a sua atuação a confrontar reivindicações e correntes do campo progressista, principalmente o Partido dos Trabalhadores e de sua principal liderança (Lula). Seja no campo político, mas também em um terreno pretensamente assentado na intelectualidade, Enéas Carneiro se apresentava como um anti-lula.

No entanto, a relação era mais complexa que os usos da memória podem sugerir. Em relação à ideologia comunista, a posição de Enéas Carneiro era de críticas quanto à realidade histórica, o que chamava de “fracasso da Revolução Socialista”. Concomitantemente, Enéas Carneiro ressaltava que interpretava a teoria marxista como a “estruturação filosófica mais bela sobre a vida social no planeta”, 9 fazendo ressalvas de que na prática, infelizmente, a teoria não se cumpriu.

Outro ponto importante para entender as apropriações (e suas devidas reapropriações) de Enéas Carneiro em tempos mais recentes, diz respeito à ampla coalizão das direitas em torno da centralidade das correntes neoliberais e em defesa das privatizações, tal qual visto em larga medida na campanha eleitoral do atual presidente, Jair Bolsonaro. Para Enéas Carneiro, as privatizações eram um mal de primeira grandeza, maior que qualquer perigo comunista – perigo, aliás, que Enéas Carneiro, de fato, jamais “denunciou”. Para ele, se existia uma conspiração secreta para a destruição da soberania nacional, ela se estruturava nos ataques às estatais e na atuação desenfreada do capitalismo financeiro no Brasil. Portanto, mais que pretensamente anticomunista, o líder do Prona foi um “antineoliberal” do campo da direita nacionalista.

Essas operações de rearticulação e reapropriação da memória no campo da direita radical brasileira devem ser vistas como forma de sustentação de uma relação entre uma “tradição histórica” recente (Enéas Carneiro) à luz das necessidades do tempo presente, inclusive para legitimar o posicionamento no espectro político de determinadas candidaturas presidenciais. Jair Bolsonaro e seu filho Eduardo Bolsonaro, por exemplo, protocolaram, em 2017, um pedido de inserção do nome de Enéas Carneiro no livro de Heróis da Pátria brasileira. Afinal, se em 1989 existia o fenômeno das “direitas envergonhadas”, na atualidade as direitas fazem questão de afirmar o seu nome e reivindicar seus espaços.

Embora outros grupos de extrema direita brasileira também se apropriem da memória de Enéas Carneiro, tais como os neointegralistas, cada grupo faz uma leitura diversificada e específica sobre a trajetória de Enéas Carneiro, buscando similaridades entre o líder do Prona e os interesses desses grupos em vista para o futuro. Ainda assim, a operação de “resgate” de uma mesma figura como elemento identitário e construção de uma tradição pode gerar a ideia de algum tipo de afinidade ou aproximação entre esses diferentes grupos. 

De qualquer maneira, quando se realiza o resgate da figura política de Enéas Carneiro, é também o resgate de um desconforto com a imagem de uma democracia que, para muitos, não se cumpriu. Não despropositadamente, o líder do Prona é apresentado como um líder que o Brasil não soube aproveitar, não soube valorizar. Em suma, Enéas Carneiro seria “o melhor presidente que o país jamais teve”. De certa maneira, é um jogo dado entre memória e história, mas também entre autoritarismo e democracia.

Notas

[1] A marca de 1,57 milhão de votos que Enéas Carneiro recebeu em 2002 só foi superada em 2018, quando Eduardo Bolsonaro recebeu 1,8 milhões de votos para deputado federal também pelo estado de São Paulo.

[2] CALDEIRA NETO, Odilon.“Nosso nome é Enéas!”: Partido de Reedificação da Ordem Nacional (1989-2006). Tese (Doutorado em História), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2016.

[3] CALDEIRA NETO, Odilon.“Nosso nome é Enéas!”: Partido de Reedificação da Ordem Nacional (1989-2006). Tese (Doutorado em História), Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2016.

[4] A tese do “fim da história” desenvolveu-se em meados de 1989, a partir dos escritos do Cientista Político Francis Fukuyama. Em linhas gerais, Fukuyama afirmava que, após o fim da União Soviética, a democracia liberal ocidental seria, além de hegemônico, o modelo final de desenvolvimento político para a humanidade e sua história. FUKUYAMA, Francis. O fim da história e o último homem. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.

[5] POWER, Timothy. The Political Right in Postauthoritarian Brazil: Elites, Institutions, and Democratization. Penn State University Press, 2000.

[6] RODRIGUES, Leôncio Martins. Quem é quem na constituinte: uma análise sócio-política dos partidos e deputados. São Paulo: OESP-Maltese, 1987,

[7] Em 1959, o Rinoceronte “Cacareco” foi virtualmente eleito vereador na capital paulista. Fenômeno similar ocorreu com o Macaco “Tião”, eleito vereador na cidade do Rio de Janeiro em 1988. O intuito da comparação, mais que mensurar a dimensão do voto de protesto, pode ser interpretado como um exercício de deslegitimação de Enéas Carneiro.

[8] VELASCO E CRUZ, Sebastião; KAYSEL, André; CODAS, Gustavo (Org.). Direita, volver!: o retorno da direita e o ciclo político brasileiro. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2015.

[9] Entrevista: Programa Ferreira Neto, 1989.

Como citar este artigo

CALDEIRA NETO, Odilon. Enéas Carneiro em dois tempos: do “voto cacareco” a um dos heróis da “nova direita” (artigo).  In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/eneas-carneiro-em-dois-tempos/‎. Publicado em: 1o jul. 2019. Acesso: [informar data].

Odilon Caldeira Neto

Professor do Departamento de História da Universidade FEderal de Juiz de Fora. Doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com doutorado-sanduíche no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Possui pós-doutorado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Autor de “Sob o Signo do Sigma: Integralismo, Neointegralismo e o Antissemitismo”. Coordenador da Rede “Direitas, História e Memória” (http://direitashistoria.net). Academia.edu: http://ufsm.academia.edu/OdilonCaldeiraNeto. Escreveu uma bibliografia comentada sobre Integralismo para o Café História.

3 Comments Deixe um comentário

  1. Gostaria de saber sua posição em relação a direita e esquerda, na atualidade, qual seria a melhor opção a ser adotada pelo Brasil, considerando fatores internos e externos.
    Se puder responder no twitter.
    @evertonnetwork

  2. O Brasil seria a maior potência mundial se Enéas Ferreira Carneiro fosso presidente da República ele foi como um cometa de passagem pelo Brasil para deixar um recado é seus conhecimentos e verdad sobre a sugeira da política o câncer que vem tistruindo o mundo a séculos câncer esse que conseguiu tirar a vida do grande ENEAS de forma misteriosa

  3. Só uma correção, Enéas nunca se considerou de direita e sim um Nacionalista por excelência. Segue uma das suas frases que deixa isso claro: “Já mais aceitei o elitismo da direita, a desordem da esquerda, nem a falsa democracia” Enéas Carneiro.
    A direita se apropriou da sua figura para embasar e alavancar o atual presidente, porém são duas coisas distintas.

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