Filme de diretor brasileiro Fernando Meirelles não se furtou de abordar passado polêmico e comprometedor do hoje Papa Francisco.
Por Bruno Leal Pastor de Carvalho
“Dois Papas”, do brasileiro Fernando Meirelles (“Cidade de Deus”; “Ensaio sobre a Cegueira”), é uma produção Netflix que concorreu a três estatuetas do Oscar 2020: Melhor Ator (Jonathan Pryce); Melhor Ator Coadjuvante (Anthony Hopkins); Melhor Roteiro Adaptado (Anthony McCarten) – não levou nenhuma.
O filme mostra diversos encontros entre o então Papa Bento XVI (o alemão Joseph Aloisius Ratzinger) e o então cardeal de Buenos Aires, Jorge Mario Bergoglio, o futuro Papa Francisco. Esses encontros ocorreram em 2013, quando Bento XVI estava prestes a renunciar ao posto máximo da Igreja Católica. No filme, os dois discutem política, filosofia e teologia, apresentando visões bem diferentes, por vezes até mesmo antagônicas, sobretudo quanto a Igreja e ao futuro dela. Além disso, o filme mostra a vida de Bergoglio no passado, numa espécie de flashback do personagem.
Embora o filme se baseie em fatos reais, os encontros mostrados na tela não ocorreram da mesma forma conforme retratados no filme. Bento XVI, por exemplo, nunca se encontrou com o cardeal argentino em Roma para discutir a sua renúncia e nem mesmo para falar sobre a necessidade de uma renovação da Igreja Católica. Os diálogos, porém, são ótimos, envolventes e inteligentes, condizentes com os dois religiosos, além de colocarem no primeiro plano alguns dos maiores dilemas de uma Igreja Católica que atualmente equilibra-se entre a tradição do passado e a crise do presente.
Conversei rapidamente sobre o filme com um amigo historiador que é o maior especialista no Brasil em papas e papados, professor de História Medieval. Ele mostrou certo desconforto quanto a maneira como a Igreja e a Teologia são representadas no filme. Eu não sou especialista no tema, portanto, não saberia ir aqui longe nesta análise.
Contudo, o que eu acho interessante destacar do filme, do ponto de vista de um historiador do contemporâneo, é a maneira como “Dois Papas” aborda a relação de Bergoglio com a ditadura militar argentina (1976-1983). Roteirista e diretor não se furtaram deste episódio, que, aliás, se torna central em certa parte do filme. Muitas imagens documentais são utilizadas no filme por Meirelles. São mostradas execuções de padres “subversivos”, cenas de tortura, censura de livros e exílios forçados.
Mais conservador na juventude, Bergoglio, segundo sustentam pesquisadores, foi próximo de figuras da violenta ditadura argentina; pressionou colegas acusados de subversão para que deixassem a militância política e silenciou diante da perseguição de padres jesuítas. O filme de Meirelles constrói a imagem de um cardeal no presente atormentado por esse passado. O narrativa entende ainda que Bergoglio arrependeu-se do que fez e que mudou sua perspectiva política com o passar do tempo, aproximando-se cada vez mais da ideia de justiça social e de outras bandeiras progressistas que hoje caracterizam o seu papado. No filme, Bergoglio arrepende-se e muda por um motivo simples: somos suscetíveis às mudanças; se nós nos arrependemos, isso ocorre porque somos dotados da capacidade de revisão. Essa mudança, segundo vemos no filme, teria ocorrido depois que Bergoglio saiu para viver uma espécie de exílio silencioso nos recônditos da província de Córdoba, no final dos anos 1970.
Mas e fora das telas, houve mesmo esse arrependimento? Bergoglio assumiu a sua ligação com a ditadura? É difícil dizer. A narrativa do filme é humanista e problematizadora, mas não necessariamente corresponde ao que aconteceu no “plano real”. Existe, na verdade, muita ambiguidade na trajetória de Bergoglio. Se há acusações de silenciamento, há vários relatos de que o atual Papa ajudou pessoas perseguidas pela ditadura argentina. E embora tenha recentemente pedido desculpas por sua incapacidade de proteger os fiéis e colegas durante o período autoritário, Bergoglio também já negou várias acusações de colaboração e já destacou que muitos críticos da ditadura cometeram “excessos” nos tempos da militância, fazendo crer que haviam dois lados igualmente radicais, violentos e equiparados no período ditatorial, o que é bastante problemático do ponto de vista histórico e historiográfico.
Em alguns momentos o filme de Meirelles mostra essas ambiguidades; em outras não. Em alguns momentos, o filme é ingênuo; em outras ousado. Seja como for, “Dois Papas” é um filme interessante e mesmo divertido, a despeito de abordar temas extremamente espinhosos; humaniza personagens ao invés de santificá-los ou demonizá-los (o que é comum em filmes do gênero); ajuda a contar um lado do Papa Francisco que pouca gente ainda conhece, um lado importante em tempos de negação dos passados autoritários na América Latina.
Nota: 6 cafezinhos
Bruno Leal Pastor de Carvalho é fundador e editor do Café História. É professor adjunto de História Contemporânea do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB). Doutor em História Social (UFRJ, 2015). Mestre em Memória Social (UNIRIO, 2009), Especialista em História Contemporânea (PUCRS, 2010), Graduado em História (UERJ, 2006) e Comunicação Social (UFRJ, 2006). Foi professor do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF). Tem pós-doutorado em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisa História Pública, História Digital e Divulgação Científica. Também desenvolve pesquisas sobre crimes nazistas e justiça no pós-guerra, com especial ênfase no destino dos criminosos nazistas. Foi cocoordenador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos e Árabes da UFRJ, o NIEJ entre 2011 e 2018. É membro da Rede Brasileira de História Pública e da Associação das Humanidades Digitais.