Os debates sobre diversidade estão na ordem do dia e tem pautado a política, rodas de conversas, reuniões, e movimentado o setor empresarial e o mundo acadêmico. Empresas, governos, instituições públicas e privadas estão cada vez mais atentas e empenhadas em ampliar a pluralidade de seus quadros com o recrutamento, contratação e ingresso de pessoas com deficiência, de etnias, idades, sexualidades e origens diferentes.
Mas mesmo com o avanço dessas iniciativas e ações afirmativas, muito ainda deve ser feito para reduzir as desigualdades e disparidades da sociedade. Na internet, não é diferente. Apesar de ser um dos dez sites mais acessados no mundo, de acordo com levantamentos da Alexa Ranking, a Wikipédia ainda apresenta lacunas no que diz respeito à diversidade. Em 2021, em meio às comemorações dos 20 anos da Wikipédia em língua portuguesa, uma pesquisa realizada por Pedro Rodrigues Costa, da Universidade do Minho, apontou que cerca de 11% das pessoas que editavam na enciclopédia livre eram mulheres. Menos de 2% dos participantes da pesquisa assinalaram “outro” como identidade de gênero. Além disso, somente cerca de 20% das 265.764 biografias disponíveis na Wikipédia em língua portuguesa são sobre mulheres, de acordo a Humaniki – projeto que compila um conjunto de dados abertos sobre humanos em todos os projetos Wikimedia.
Mas essas assimetrias não abarcam apenas questões de gênero e sexualidade. “Hoje, a gente pode pensar a diversidade em um sentido muito amplo e a Wikipédia entende assim”, reflete o professor adjunto de Teoria e História da Historiografia na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Evandro dos Santos. Ele é o coordenador executivo do Mais Diversidade em Teoria da História na Wiki em 2024. O evento híbrido será realizado de 1º de outubro a 11 de novembro deste ano e vai contar com webinar, um concurso de edição online, oficinas virtuais síncronas, além de uma maratona de edição na Wikipédia presencial em Caicó, no Rio Grande do Norte. As inscrições podem ser feitas aqui.
A iniciativa faz parte do Mais Teoria da História na Wiki, um projeto de História Pública com apoio do Café História voltado para a ampliação do debate de temas relacionados aos estudos de gênero, sexualidade, raça e epistemologias do Sul Global. “A Wikipédia tem esse valor importante de garantir uma diferença no mundo da internet. Negar essa experiência no campo educacional é um equívoco que cometemos durante muito tempo, por preconceito, e que esse projeto tenta desconstruir”, ressalta.
Evandro atua na área de História, com ênfase em Teoria da História e História da Historiografia Brasileira, principalmente nas temáticas ligadas às relações entre diversidades locais e regionais e produção de subjetividades.
Como o senhor analisa as discussões sobre questões de sexualidade e diversidade de gênero hoje na academia, principalmente na área da Teoria da História?
Têm pautas que se impõem à agenda historiográfica por questões sociais, políticas e por problemas que a própria sociedade expõe e que repercutem no meio acadêmico. E isso geralmente é muito produtivo. É o que tem acontecido no campo da Historiografia e da Teoria da História. A historiografia se viu impelida a tratar desses temas de outra forma. Nós perdemos um pouco aquela ideia, inclusive bastante inadequada, de pensar que essas pautas seriam pautas para outras áreas das humanidades, como a Ciência Política, a Sociologia, a Antropologia, mas com as quais a História não se envolveria, ou não teria muito a contribuir, quando, na verdade, a própria história da disciplina construiu para si mesma uma história branca, masculina, heterossexual, de classe média. Ou seja, bastante excludente. Essas questões têm ganhado espaço, têm ganhado força, e é uma articulação que é inevitável. Não se trata apenas de uma nova agenda teórica ou uma pauta, um mapa de pesquisa. É isso também, mas não é exclusivamente nesse sentido. Nós temos, também, uma movimentação política que ganhou força e, claro, que sofreu também uma resposta reacionária e conservadora na última década, o que, igualmente, era esperado, mas que resistiu e resiste. Há uma dimensão dos movimentos sociais, da organização política, da mudança do público universitário. Pessoas diferentes ingressando na universidade e trazendo demandas que, quando a universidade era mais ou menos homogênea, não apareciam, porque todo mundo tinha, mais ou menos, marcadores sociais semelhantes. Agora nós temos problemas diferentes para resolver. Eu acho que tudo isso constrói um contexto dos motivos e da importância de se trabalhar com essas discussões hoje na nossa área.
Qual a importância de a universidade ser um espaço mais plural para a formação do pensamento crítico?
Nós temos, de fato, uma exclusão. Nós percebemos que mulheres, pessoas pretas, pessoas que manifestam a diversidade de gênero e sexualidade no sentido mais amplo e pessoas que vivem em regiões menos centralizadas encontram maior dificuldade para produzir conhecimento e para ingressar nesse meio. Talvez a Wikipédia tenha essa dificuldade de demonstrar essa diversidade toda porque, de fato, essas pessoas são muitas vezes impedidas de frequentar os espaços por questões sociais mais profundas e por questões culturais de preconceito e tradições que remontam há tempos bastante distantes. Nesse sentido, eu celebro vários programas de pós-graduação em História, no Brasil, que já colocaram nas suas resoluções o ingresso por meio de cotas.
E como o Mais Teoria da História na Wikipédia colabora para essa democratização do espaço acadêmico?
Esse projeto é interessante porque ele acaba apontando muito para os problemas do lado de dentro da universidade. As carências que antes eram tratadas ou explicadas como históricas, digamos assim, agora são tratadas como um problema a ser resolvido de modo prático, político. E essa exclusão é um problema seríssimo. Nós estamos em 2024, no século XXI, e nós não podemos continuar justificando, com os mesmos argumentos do começo do século XX, que essas pessoas não aparecem porque elas não conseguem, por diversos motivos sociais, ocupar ou chegar ao espaço acadêmico e, portanto, não seria possível tornar visíveis essas experiências e mostrar o trabalho dessas pessoas ou criar possibilidades para que ele exista. Esse argumento já não serve mais. Essas iniciativas são importantes porque transformam o nosso processo de produção, torna mais democrático o espaço acadêmico e faz com que nós pensemos e repensemos os problemas que, de certa forma, naturalizamos durante muito tempo.
Como a atividade docente tem incorporado essa historiografia?
O processo acadêmico é muito dinâmico. Esse é um ponto positivo do meio acadêmico. Quando a universidade é provocada, ela reage de uma forma relativamente rápida. Rápida do ponto de vista histórico. Eu estou falando deste século, das transformações que as ações afirmativas da primeira década do século promoveram, como a legislação que incorporou a história da África e a história indígena no currículo escolar, por exemplo. Isso tudo é muito recente. As transformações na comunidade universitária provocaram isso e existe uma demanda que se coloca.
Em relação à diversidade de gênero e sexualidade, também há essa cobrança por parte dos discentes?
Sim. Mesmo quando não há um professor que pesquise ou que trabalhe temáticas que envolvem diversidade, sobretudo diversidade de gênero e sexualidade, os alunos demandam. Nas questões que envolvem a diversidade sexual é um pouco mais difícil ainda, dada a exclusão que é ainda maior. Mas também é questionado. A Leilane Assunção, por exemplo, foi uma professora transexual aqui da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Ela morreu muito jovem e foi, provavelmente, a primeira, ou uma das primeiras professoras transexuais do Brasil. Isso é um dado histórico importante e ele ainda não teve o reconhecimento e a discussão que merece. Ela não tem, sequer, verbete na Wikipédia.
A Leilane Assunção é uma das homenageadas do Mais Diversidade em Teoria da História na Wiki deste ano. Então, existe uma demanda que se coloca muito a partir da comunidade acadêmica através dos alunos. As turmas, finalmente, deixaram de ser entendidas como se fossem um bloco, ou uma massa. Embora nós soubéssemos que as diferenças de gênero estão colocadas socialmente desde sempre, elas eram desconsideradas em nome de uma suposta equidade de classe social que unia, aproximava as pessoas. Hoje não é assim. Uma turma é uma coletividade de diferenças que está colocada ali diante do professor. Cada estudante que entra na sala de aula é um estudante ou uma estudante e traz demandas próprias, específicas, mas que se articulam com problemas mais amplos.
Também há uma assimetria regional nesse sentido?
Sim. Uma questão não exclui a outra. Quando a gente fala de diversidade regional, você está tematizando desigualdades de classe, de gênero, de raça, de sexualidade. Hoje, a gente pode pensar a diversidade em um sentido muito amplo e a Wikipédia entende assim. As diversidades intelectuais também estão pautadas hoje em dia, como na questão das neuro divergências e das pautas de inclusão a que se referem, as diversidades corporais, de pessoas com deficiência, que demandam acessibilidade. Existe uma ideia de diversidade bastante ampla e tentei propor que a diversidade regional se colocasse também ao lado dessas discussões, todas no Mais Diversidade em Teoria da História na Wiki em 2024. Quando nós fomos discutir as datas para a realização do evento, que é sempre uma data alusiva para pensar a diversidade, eu sugeri que fosse o 8 de outubro, quando é celebrado o Dia do Nordestino. Embora seja uma data controversa por toda essa questão da identidade nordestina e de como ela é tratada, eu acho que é uma data bastante simbólica para a gente pensar essa questão da diversidade regional. Ela atravessa as experiências de gênero, de manifestação da sexualidade, de raça etc.
O senhor é professor em um campus no interior do Rio Grande do Norte. Como o senhor vê essas assimetrias regionais?
Essa discussão que aborda a diversidade regional e as desigualdades e os preconceitos que envolvem as regiões é muito discutido aqui no Nordeste. Nós temos aqui em Caicó um programa de pós-graduação em história dos sertões. É uma área de concentração sobre a história dos sertões. Quando você pensa essas experiências para o caso do interior do Rio Grande do Norte, isso está colocado já em pesquisas historiográficas. Naquilo que envolve o racismo que pautou uma certa visão da história e da população dessas regiões. Uma exclusão das comunidades originárias, dos negros e dos indígenas. Nós podemos pensar sobre essas manifestações também do ponto de vista regional. A partir dessas experiências particulares de cada cidade, de cada universidade, de cada região, nós podemos repensar a ideia de diversidade, que muitas vezes sofre preconceito. Há muitos profissionais da área que consideram que esse não é um assunto para nós, que é um assunto para outras áreas das humanidades, que não é um assunto para a História, porém, nós tentamos demonstrar que é, sim, um assunto importante para se repensar a história tal como ela foi e é escrita.
Pensar essas diferenças regionais também é uma forma de tematizar e problematizar aspectos do passado, porque esses marcadores vão evidenciar disputas de poder. Nós contamos uma história dos cursos de História a partir da criação da Universidade de São Paulo, na década de 1930, da Universidade do Brasil, depois a Universidade Federal do Rio de Janeiro. Quando, na verdade, há uma história para ser aprofundada sobre a ampliação do sistema universitário brasileiro, da interiorização desse sistema universitário, do sistema de pós-graduação, e isso tem a ver com disputa concreta e material de poder, em termos de recursos mesmo para pesquisa, e tem a ver com disputas simbólicas, também, entre historiografias lidas, entre aspas, como nacionais. Existem historiografias que levantam problemas importantes e que se articulam a problemas nacionais, mas são produzidas em regiões mais distantes ou nos interiores, em cursos menores e que ficam muito relegadas a uma circulação bastante local. Não tem o mesmo diálogo e o mesmo acesso que outras historiografias. Então, a proposta é pensar todas essas questões que envolvem gênero, sexualidade, raça, corpo, intelecto a partir desses recortes que podem ser também regionalizados e que, talvez, demonstrem aspectos diferentes da diversidade, que nós, às vezes, não aprofundamos.
Como pesquisadores que não se dedicam a essas temáticas ou não estão inseridos nesses contextos podem contribuir para esse debate?
Eu sou da comunidade LGBTQIAPN+. Sou um homem gay e por isso, também, eu fui convidado para coordenar esse projeto, embora eu não seja um pesquisador das temáticas de gênero e sexualidade. Eu gosto sempre de frisar isso em respeito aos meus colegas e às minhas colegas que têm produzido obras muito importantes sobre o assunto. A questão da representatividade, muitas vezes, parece apenas simbólica e por muitos críticos é colocada assim. Nós não ocupamos todas as identidades ao mesmo tempo. A gente vai circulando pelas identidades. Se você é uma pessoa heterossexual branca de classe média, você pode e deve contribuir com essas discussões. Não deve haver exclusão. Mas é diferente se você não é um homem branco, cisgênero, heterossexual, de classe média. A partir de experiências que determinadas comunidades e minorias têm, elas conseguem perceber melhor e experimentar essas situações porque sofrem diariamente com isso. As discussões que envolvem diversidade devem ser entendidas como uma questão de todos e de todas. A diversidade não deve ser vista como se fosse um nicho ou uma reserva de mercado. Como se as historiadoras devessem contar a história das mulheres. Ou a historiografia que envolve as questões de gênero e sexualidade, de diversidade sexual, devesse ser tratada, exclusivamente, por historiadores da comunidade LGBTQIAPN+ porque seriam assuntos que interessariam a ela e, supostamente, não atingem outros sujeitos envolvidos. O mesmo com as desigualdades regionais. Elas são um problema do Brasil. Elas não são um problema do Nordeste, ou do Norte. É um problema brasileiro grave que deve preocupar toda comunidade acadêmica. Quando alguém é excluído, isso deve incomodar a todos. Quando alguém é invisibilizado, calado, silenciado, em qualquer espaço, as pessoas devem se sensibilizar com isso.
Como a Wikipédia pode ser usada para reduzir ou eliminar essas desigualdades?
Para pensar a Wikipédia, a gente tem que remontar um pouco à história da internet comercial. A internet já tem uma história e precisa ser contada. Ela foi criada em determinado momento, na década de 1970, nos Estados Unidos, para fins militares. Depois ela se tornou um espaço comercial e, hoje em dia, ela já está loteada, na expressão do pesquisador Pedro Telles da Silveira. E a Wikipédia é um capítulo importante dessa história, porque ela vai um pouco na contramão dessa lógica, no sentido de preservar certos valores, que não são valores necessariamente comerciais. É aquele princípio de uma enciclopédia livre, que é o carro-chefe da Fundação Wikimedia. É a ideia de um conhecimento produzido de maneira compartilhada e de acesso livre. A Wikipédia tem esse valor importante de sustentar uma diferença no mundo da internet. Negar essa experiência no campo educacional é um equívoco que cometemos durante muito tempo por preconceito e que esse projeto tenta desconstruir. Nós temos de levar em consideração a história da internet, a história da Wikipédia, como ela atingiu a educação, como ela, de certa forma, foi e ainda é cercada de preconceitos e como criamos condições para que pessoas que navegam na internet se tornem e ocupem essa posição ativa de produtor de conhecimento como se fosse uma sala de aula da universidade.
Como citar esta entrevista
SANTOS, Evandro dos. “As discussões que envolvem diversidade devem ser entendidas como uma questão de todos e de todas”. Entrevista feita por Bruno Sousa Lima In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/diversidade-e-para-todos-e-todas/. Publicado em 9 de setembro de 2024. ISSN: 2674-5917.
O livro do historiador Bruno Leal, professor da Universidade de Brasília, é destaque na categoria “historiografia” e “ensino e estudo”da Amazon Brasil. Livro disponível para leitura no computador, no celular, no tablet ou Kindle. Mais de 60 avaliações positivas de leitores.