Ditaduras e democracias na América Latina e nos países árabes

Maurício Santoro fala sobre as semelhanças e diferenças entre as atuais ditaduras do mundo árabe e as ditaduras militares latino-americanas do século XX.
30 de março de 2011
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As revoltas democráticas nos países árabes, iniciadas com a Revolução de Jasmim na Tunísia, em janeiro de 2011, são um dos mais importantes acontecimentos da política internacional contemporânea. Representam a chegada ao Oriente Médio e norte da África de uma onda de democratização como a que atravessou a Europa e a América Latina nas décadas de 1970-1980. Latino-americanos compartilham com árabes desafios sócio-econômicos, mas partem de experiências distintas com relação à natureza de seus regimes autoritários.

As ditaduras na América Latina

Ditaduras têm sido constantes na América Latina, desde a criação dos Estados nacionais da região, a partir do início do século XIX. Vamos nos limitar aos anos posteriores à Segunda Guerra Mundial, para fazer a comparação com os países árabes que se tornaram independentes nessa época. Nesse período, os governos não-democráticos na América Latina foram majoritários no continente e dividiram-se em três grandes categorias.

As ditaduras militares foram a forma de governo mais comum na América Latina entre as décadas de 1960-1980, intervindo países instáveis nos quais líderes populares preconizavam reformas sociais, que no contexto de polarização ideológica da época eram equiparadas ao comunismo, ou vistas como favoráveis à sua ascensão. Tiveram feição burocrática-tecnocrática na Argentina e no Brasil e personalista no Chile e na América Central. Quase sempre foram ideologicamente de direita, mas no Peru, Equador e até certo ponto no Panamá houve governos militares de esquerda, com agenda de mudança social, em especial reforma agrária.

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Saddan Hussein: capturado por forças americanas e de coalisão. Condenado à morte por enforcamento, em Bagdá, Iraque, em 2006. Foto: Feel GRafix

Os autoritarismos de esquerda foram implementados por revoluções em Cuba e Nicarágua, e por governos a elas simpáticos, por breves períodos, no Suriname e em Granada. O regime cubano começou como um programa de reformas sociais e nacionalistas de esquerda, que abraçou a ideologia marxista e a aliança com a União Soviética diante do confronto político e da intervenção militar dos Estados Unidos. O sandinismo nicaraguense foi uma frente ampla de forças progressistas, semelhante ao início da revolução em Cuba.

Ditadores civis foram raros nesse período da América Latina. O regime do Partido Revolucionário Institucional que se seguiu à Revolução no México já foi chamado de “ditadura perfeita”, mas a caracterização não é precisa, pois embora o governo recorresse a intimidações e fraudes em momentos de crise, havia pluralismo político no país, sobretudo nas universidades e instituições culturais.

A presidência de Alberto Fujimori no Peru (1992-2000) é que se enquadra de maneira mais confortável nessa categoria e foi implementado a partir do combate às guerrilhas de extrema-esquerda (Sendero Luminoso e Tupac Amaru).

As ditaduras nos países árabes

As culturas árabes têm longa e orgulhosa histórica, com impérios importantes que governaram de Bagdá, Damasco e Cairo, mas nos últimos 500 anos viveram sob controle de estrangeiros: otomanos, britânicos, franceses e italianos. O domínio colonial começou a ruir na década de 1920 e terminou após a Segunda Guerra Mundial. Os países que surgiram das antigas colônias variam entre nações com sólida identidade própria (Egito, Marrocos) a construções frágeis traçadas pelas ex-metrópoles para atender a seus aliados políticos (Jordânia, Líbano, Iraque). Os novos governos foram de caráter autoritário e oscilaram entre três grandes correntes.

As monarquias estão presentes no Marrocos, na Jordânia e nos Estados do Golfo Pérsico (Arábia Saudita, Bahrein, Kuwait). Aliadas das ex-metrópoles coloniais da Europa e dos Estados Unidos, apresentam-se como opções moderadas politicamente. Em alguns casos, lograram substanciais reformas econômicas, como no Catar, cujo soberano criou a célebre emissora Al Jazeera, ou nos Emirados Árabes Unidos, com Dubai virando um centro internacional de negócios. O caso saudita é peculiar, pois após os choques do petróleo os recursos financeiros do Reino tornaram-se uma das principais fontes de apoio a movimentos fundamentalistas na Ásia Meridional, ao mesmo tempo que o país é o principal aliado dos Estados Unidos entre os árabes.

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As ditaduras militares surgiram como rejeição a monarquias corruptas, dependentes dos aliados ocidentais, no Egito e Líbia, ou como a consequência da disputa de poder que se seguiu à independência na Tunísia, Argélia. Vêem a si mesmas como instrumento de modernização e da realização de reformas sociais, críticas das elites de seus países, e de forte teor nacionalista, pan-árabe. Embora perseguissem os comunistas internamente, estabeleceram alianças ocasionais com a União Soviética, visando sobretudo ao auxílio militar contra Israel. No Iêmen do Sul, houve uma ditadura militar comunista nas décadas de 1960-80.

Os regimes autoritários do Partido B´aath – Renascença, em árabe – foram estabelecidos na Síria e no Iraque na década de 1960, em substituição às ditaduras militares que governavam aqueles países (no caso iraquiano, após os generais deporem e assassinarem o rei). Esposam “socialismo árabe” parecido com o das ditaduras militares, mas o controle do sistema está com a elite política civil, ligada por fortes vínculos étnicos e religiosos, como os al-Tikrit no Iraque de Saddam Hussein ou a seita alauíta na Síria da família Assad. Foram os aliados mais constantes da União Soviética na região.

O Líbano e os territórios palestinos foram exceções, porque o alto grau de fragmentação religiosa do primeiro (cristãos, muçulmanos xiitas e sunitas), e de divisões políticas dos segundos (mais de uma dúzia de movimentos na OLP, o Hamas), e da presença de exércitos estrangeiros (Israel, Síria) entre ambos impediram a criação de uma coalizão estável para impor um governo autoritário. O que existe neles são alianças cambiantes, que com frequência se transformam em choques armados ou mesmo guerras civis. Propiciaram um ambiente público mais plural do que outras nações árabes, embora a vida política seja marcada pela violência.

Transições

As transições democráticas na América Latina ajudam a compreender perspectivas e limites para as mudanças nos países árabes. Democratização é contagiosa e se espalha rapidamente, mas não é total, nem irreversível. Depois da Guerra Fria, Cuba continua a ser um Estado autoritário, o Peru o foi por uma década e fraudes eleitorais em larga escala ocorrem nas disputas presidenciais no México. Houve golpes, ou tentativas, em Honduras, Equador, Paraguai e Venezuela. Grupos guerrilheiros ou paramilitares dominam parcelas expressivas da Colômbia.

Lidar com os traumas do passado, como as violações de direitos humanos, também tem se mostrado difícil. Os países da América Latina avançaram bastante em valorizar a memória das lutas contra os regimes autoritários, mas condenações em grande escala dos repressores ocorreram somente na Argentina e no Chile, embora punições contra os líderes daqueles regimes tenham sido realizadas também no Peru e no Uruguai.

Contudo, as democracias da América Latina sobreviveram mesmo à turbulência econômica e foram capazes de formular políticas sociais eficazes no combate à pobreza, na universalização do ensino básico e em certos campos da saúde. Tais experiências e “saber-fazer” são contribuições importantes que a região pode compartilhar com as democracias nascentes nos países árabes.

Como citar este artigo

SANTORO, Maurício. Ditaduras e democracias na América Latina e nos países árabes (Artigo). In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/ditaduras-e-democracias-na-america-latina-e-nos-paises-arabes/. Publicado em: 30 mar. 2011. ISSN: 2674-5917.

Maurício Santoro

Doutor em Ciência Política pelo IUPERJ. Professor Relações Internacionais na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Foi professor do MBA em Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro (FGV) e assessor de direitos humanos da Anistia Internacional. Autor do livro “Ditaduras Contemporâneas” (Editora da FGV).

10 Comments Deixe um comentário

  1. Só uma ressalva Saddan Hussein não foi morto pelos Estados Unidos e sim capturado e entregue ao povo iraquiano e a justiça do Iraque para julgamento o qual o condenou a morte pela forca.

  2. Bom dia, me tirem uma dúvida por favor. Saddam Hussein foi capturado vivo pelos americanos, correto? Não teria sido ele entregue aos iraquianos e morto por enforcamento pelos seus próprios compatriotas, ao contrário do que sugere o comentário da ilustração de sua foto?
    Fiquei realmente em dúvida!!!

    • Oi, Paulo. Tudo bem? Sim, você tem razão. Na verdade, nossa intenção era dizer que ele foi capturado por forças americanas. Já deixamos a informação mais precisa. Obrigado!

  3. Bom dia!
    Apesar do curto espaço que se tem para publicar uma matéria e do contexto que a mesma está sendo apresentada, acho importante que ao se falar em Oriente Medio não deixar de mencionar o Irã,antiga Persia, cujo a importância histórica desta nação é digna de ser mencionada independentemente de como a mesma é vista no contexto atual na História Ocidental.

  4. Achei a analogia muito interessante e com certeza e estou ampliando meu conhecimento sobre este tema que deveria ser mais discutido no ensino da História, pois aqui no Brasil a base curricular nos torna especialistas em Europa e ao mesmo tempo ignorantes em América.
    Obrigado mesmo por este em outros artigos sobre a América!

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