Debate sobre Teoria da História

3 de março de 2016
3
Entrevistamos o historiador Andre de Lemos Freixo (UFOP)

Entrevistamos o historiador Andre de Lemos Freixo, professor do departamento de história da Universidade Federal de Ouro Preto, a UFOP. Freixo presenteou o Café História e seus leitores com um riquíssimo e estimulante debate sobre teoria(s) da história. Confira!

Debate sobre Teoria da História 1
André de Lemos Freixo é professor da UFOP. Foto: NEHM-Divulgação.

Bruno Leal: Professor, você participou, recentemente, no Rio de Janeiro, de um Fórum de Teoria e história da Historiografia. Conte-nos um pouco sobre esse encontro. Quais são as discussões que mais tem mobilizando aqueles que estudam teoria e historiografia?

Andre de Lemos Freixo: Primeiramente, gostaria de agradecer ao Café História e, em particular, a você, Bruno Leal, pelo convite para esta entrevista, que muito me honra com esta oportunidade de falar um pouco do trabalho que desenvolvo.

Sim, participei da edição do dia 13 de novembro de 2015 do Fórum. É uma iniciativa dos professores dos setores de Teoria das universidades públicas do Estado do Rio. Fui debatedor, ao lado do Felipe Charbel (UFRJ), de um texto do Arthur Ávila (UFRGS) sobre o problema da disciplinarização da história (ou certa desmedida nesse sentido) a partir das considerações do Arthur da concepção de “passados práticos” de Hayden White. O debate foi bastante intenso e rigoroso, como tem de ser, e foi muito positivo. Nossa discussão passou por temas atuais, como a falta de preparo e, na realidade, o quase desinteresse generalizado por reflexões teóricas no interior de nossa historiografia, que parece cada vez mais inclinada a um empirismo cego, salvo algumas boas exceções; a problemática Base Nacional Comum (BNCC) do MEC e sua falta de perspectiva teórica – como diz um colega meu da UFOP, o Valdei Lopes de Araújo, ela parece ter sido escrita por um contemporâneo de Karl F. P. von Martius; a importância da reflexão e qualificação dos debates sobre ética (que nada têm a ver com doutrinação e moralismo) e como isso tem se tornado cada vez mais importante entre os historiadores; entre outros pontos.

Sobre os debates em Teoria da História, varia muitíssimo. Do modo como vejo, teoria não pode ser vista apenas como um campo de pesquisa no qual há especialistas – que fariam as vezes de serem os “nerds” da historiografia. Há teoria em tudo o que qualquer historiador ou historiadora faz, independentemente de ele ou ela enfrentar tais debates seriamente. Essa talvez seja uma ilusão de ótica que a setorialidade dos departamentos de história promove. Não apenas estes, claro, mas, em geral, departamentos de história são separados por setores, entre períodos históricos e ramos de especialidades. Um autor que eu tenho lido ultimamente, Eelco Runia, provocativamente afirmou em um de seus livros recentes (Moved by the past: Discontinuity and Historical Mutation, 2014) que, em geral, “historiadores não pensam”. O ponto dele era exatamente esse: formarmos historiadores que, por ignorarem, ou mesmo desconsiderarem a dimensão teórica do que fazem, perigam, muitas vezes, tornarem-se meros reprodutores e/ou consumidores de textos. O perigo disso parece ser a redução do potencial criativo e de reinvenção da historiografia, obcecada com a autorreprodução, mantendo seus trabalhos conservadoramente ancorados em formatos “tradicionais” (monografias, artigos científicos etc.), apoiados sobre narrativas descritivas nas quais a empiria acaba assumindo o papel de “falar por si mesma”, em nome de um rigor que me parece totalmente deslocado – como em noções de objetividade e ciência dignas do século XIX.

Para Jörn Rüsen, por exemplo, a teoria da história apreende os fatores determinantes do conhecimento histórico. Aqueles que delimitam o campo inteiro da pesquisa histórica e da historiografia. Identificá-los todos e demonstrar sua interdependência sistemática é o que seu projeto teórico almeja. Um sistema dinâmico que o autor assevera ser necessário saber articular, uma “matriz disciplinar”, que se caracteriza, no seu entendimento, pelo envolvimento circular de cinco elementos fundamentais: ideias, métodos, formas, funções e interesses. Segundo ele, essa matriz é uma formulação conceitual (teórica), mas subjaz à racionalidade que ele diz estar na base de toda instituição de sentido histórico. Assim, teoria da história é aqui compreendida como elaboração de uma reflexão do sujeito do conhecimento sobre si mesmo e sua operação enquanto produção de conhecimento científico. Assim, a teoria da história acontece como autorreflexão incessante do pensamento histórico: que antecede (torna possível), ultrapassa (é intersubjetivo) e, necessariamente, atravessa de uma ponta a outra o trabalho histórico.

Para Allan Megill, teoria da história não é mero adereço (ou apêndice) ao trabalho empírico, mas o próprio âmbito reflexivo que constitui e torna exequível e reconhecível a pesquisa e a escrita como sendo historiográficas a partir da reflexão sobre princípios, conceitos, procedimentos, estratégias e funções daquilo que fazem os historiadores quando fazem história buscando, com isso, compreender criticamente tudo o que está envolvido em tal operação. Mas isso tudo, evidentemente, dentro de um protocolo que o próprio Megill chama de “epistemologicamente são”. Não precisamos ficar atados a ele, evidentemente. Pode-se acrescer a isto tudo, que as reflexões de caráter metahistórico também são fundamentais para pensarmos não somente o que “é” a historiografia, quais suas especificidades, mas também o que ela foi e, mais ainda, o que pode ser. Qual nosso lugar no mundo de hoje? Qual a nossa contribuição? A historiografia existe apenas como forma de legitimidade científica, como espécie de guardiã da razão e da consciência histórica? Até onde vai o “controle” dos procedimentos envolvidos no processo de elaboração de um trabalho historiográfico? E sua recepção é igualmente controlável? Entre as muitas formas de escrita da história hoje disponíveis, os historiadores profissionais são apenas mais um formato disponível. Ainda há procura por passado e história, mas os historiadores são menos convocados a participarem da arena pública? Por que? Qual o futuro da especialização? Entre outras.

Com história da historiografia acontece algo análogo. Muitos colegas acham que história da historiografia é “balanço historiográfico”, ou apenas uma forma autorreferente (e triunfalista) de narrar a história dos historiadores de hoje; um braço da história intelectual, que no fundo “todos fazem”. O que leva muitos colegas a desconfiarem da legitimidade deste ramo de pesquisa, como atividade menor, pois parece prevalecer o velho preconceito positivista que diz que o trabalho dos historiadores é aquele que lida com “documentos de verdade”, documentos de arquivos históricos etc. Não é de todo descabida a crítica ou desconfiança, uma vez que alguns textos de história da historiografia apenas louvam, teleologicamente, a “caminhada” ou “evolução” dos historiadores, ou dos formatos historiográficos, ou dos problemas, ou das metodologias, até seu ponto “mais avançado” e, por conseguinte, melhor, mais especializado, mais científico etc. Mas seria ingênuo pensar isso diante das muitas, e excelentes, pesquisas que têm sido produzidas nos últimos quinze anos no Brasil. Assim, penso teoria e filosofia da história muito próximas da história da historiografia, ou como prefiro, uma história da historiografia teoricamente orientada. Por muito tempo, especialmente aqui no Brasil, esses ramos pertenceram a uma espécie de “gueto” acadêmico: excluídos ou subordinados por aqueles que consideram teoria algo inútil, ou que pensam-na apenas como uma “caixinha de ferramentas” (útil apenas se e quando submetida ao trabalho empírico). Felizmente, isso está mudando. Aos poucos, claro, mas há eventos hoje de enorme relevância nacional específicos para os debates teóricos e historiográficos.

O Seminário Brasileiro de História da Historiografia (SNHH), originalmente organizado pelo Núcleo de Estudos em História da Historiografia e Modernidade (NEHM) e, desde 2009, organizado pela Sociedade Brasileira de Teoria e História da Historiografia (SBTHH) é um bom exemplo disso. A revista dedicada exclusivamente a esses debates, a História da Historiografia, hoje é Qualis A1 pela avaliação da CAPES. Profissionais brasileiros começam a figurar em eventos internacionais, nos quais teoria e filosofia da história são temáticas centrais. Em agosto de 2016, a Segunda Conferência da Rede Internacional de Teoria da História (INTH) será oferecida pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), numa valiosa parceria entre a SBTHH, o NEHM e a INTH. Os debates mais e mais rigorosos e as perspectivas plurais em termos teóricos enriquecem sobremaneira a nossa historiografia. Cada vez mais há necessidade de compreendermos mais e melhor nossa prática e suas muitas possibilidades, mesmo em termos transnacionais, para sairmos daqueles “becos sem saída”, verdadeiros “pontos péssimos” dos debates teóricos, que deixavam a teoria da história refém de querelas inócuas, como a dos “modernos contra pós-modernos”, que apenas rendiam material para piadas pelos corredores das universidades, nos cursos de humanidades e/ou seus centros acadêmicos.

Bruno Leal: Em seu mestrado, defendido na Universidade Federal do Rio de Janeiro, você estudou um movimento juvenil de orientação sionista-socialista muito importante para a história judaica no Brasil, o Hashomer Hatzair. Como surgiu esse trabalho? Conte-nos um pouco sobre esse movimento e sobre os resultados alcançados nesta pesquisa?

Andre de Lemos Freixo: Minha dissertação foi uma extensão da pesquisa que desenvolvi para minha iniciação científica e cujo resultado foi meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC). Este TCC surgiu do fascínio que despertou em mim a ideia de um movimento social e político juvenil que aliava de modo orgânico sionismo e socialismo. A temática foi apresentada para mim por Michel Gherman (NIEJ/UFRJ) e Maria Paula Nascimento Araújo (UFRJ), em 2002 ou 2003. Meu objetivo era compreender o movimento juvenil aliava o nacionalismo judaico europeu com o internacionalismo do socialismo no Brasil da década de 1940. Outro aspecto da pesquisa era interrogar como os fundadores desse movimento passaram a conceber seus ideais e o lugar do próprio movimento no mundo de hoje. Um estudo que indagava sobre as relações entre memória e história. No mestrado, meus interesses variaram um pouco mais. Tratou-se de um esforço que, acima de tudo, consolidava meu interesse por análises teóricas e pela história da historiografia.

Esse trabalho teve por escopo dialogar com a historiografia dos judaísmos contemporâneos, especialmente no caso brasileiro. O Hashomer Hatzair, em seus anos de fundação (1945-1948), tornou-se espécie de estudo de caso, e foi pensado em função do Movimento Sionista no Brasil na década de 1940. A história do movimento sionista no Brasil é sui generis. A perseguição aos judeus não era tópica frequente nos discursos destes militantes no Brasil, salvo quando se referiam à Europa. Eu achei isso bastante sintomático, uma vez que a historiografia sobre o assunto é enfática sobre o ódio e a perseguição antissemitas no Brasil. Não que não houvesse preconceitos em nossa sociedade, como aliás, há, e muito, ainda hoje. Aí aparece meu estudo de caso: um movimento juvenil que tinha como uma de suas razões políticas de ser a aliah (a imigração dos jovens para a região da Palestina, para construção do Estado de Israel “com as próprias mãos” em um kibutz) não conseguia enviar seus jovens para a Palestina devido aos seus muitos interesses na sociedade brasileira, como, por exemplo, vida social no país, trabalho, o ingresso no ensino superior (que não era vetado aos judeus – como na Alemanha nazista, por exemplo). Minha argumentação, então, enfatizou que o tratamento historiográfico (a partir da década de 1980) enredou nossa compreensão da presença judaica no Brasil ao problema do antissemitismo. E um antissemitismo estrutural (desde tempos coloniais – com os chamados cristãos novos – aos dias atuais), bastante forte e cerceador da vida e da ação da comunidade judaica no Brasil. O Estado Novo (mas não apenas) foi representado como uma espécie de sucursal do Terceiro Reich nos trópicos. Como nos ensina Peter Novick (The Holocaust in american life, 1999), a hipertrofia da história do Holocausto (a partir da década de 1960) no mundo contemporâneo criou espécie de fio condutor universal para a história de todos os judaísmos capitaneada pela ascensão da direita no Estado de Israel e pela comunidade judaica estadunidense – que anteriormente desprezava a vida em Israel (um Estado de esquerda!). E eu vejo que isso possui relação com a interpretação que nossa historiografia produziu sobre a presença judaica no país.

Na década de 1980, nossos historiadores tiveram um papel importante de crítica às ideologias nos discursos oficiais (e oficiosos) que se tornaram comuns nos 21 anos do Regime Autoritário brasileiro: discursos sobre nação, patriotismo, identidade nacional, civismo, cultura, tradição e patrimônio brasileiros. Estes quase sempre assumiram tom conciliatório, procurando identificar aspectos pouco violentos de nossa sociedade, enfatizando aspectos de miscigenação, da suposta “democracia racial”, da cordialidade brasileira entre outros mitos. Assim, a diferença, os grupos minoritários, as “vozes subalternas” ou dissonantes ganharam o proscênio através de nossa historiografia, o que foi um enorme avanço. É sintomático que o período do Estado Novo (1937-1945), um período de Ditadura, tenha sido o escolhido de grande parte da nossa historiografia na década de 1980, seguido de perto pelo boom de estudos sobre a chamada “Primeira República”. Ao problematizar a apropriação historiográfica do conceito de antissemitismo nesse contexto do caso brasileiro, deve-se levar em conta a importância destes estudos no interior deste movimento de “reescrita” da história do Brasil, na tentativa de apresentar suas muitas faces, algo desconhecidas (ou “mascaradas” pela ideologia oficial), como a de intolerância, dos preconceitos e de nossa violenta história nacional e social. Por outro lado, o debate em minha dissertação também procurou problematizar a questão do “dever de memória” da historiografia especializada como espécie de medicamento para uma sociedade em busca de tratamento para suas feridas recentes. Indaguei sobre o como esse “pharmakon” (para dizer como Paul Ricoeur), a baliza científica que definiria a verdadeira memória histórica e a crítica “definitiva” da ideologia poderia ser ou não empregado a médio ou longo prazo sem produzir sequelas ou tornar mais grave o quadro patológico da sociedade brasileira pós-Ditadura. Não pude deixar de traçar um paralelo entre posturas que defendiam tal imperativo ao mandamento sagrado da lembrança (“Zakhor”, “tu te lembrarás!”) presente na Tora – como bem observou um historiador muito importante para o meu trabalho à época, Yosef H. Yerushalmi. Quer dizer, esse imperativo da memória-verdade, purificada pela via da historiografia-ciência (a crítica da ideologia), poderia se relacionar perfeitamente com a escrita da História que hoje, bem o sabemos, é também um discurso? Deveríamos, enquanto historiadores, transformar a historiografia em um saber doutrinário e normativo, ainda que sob as vestes de ciência, a partir do qual poderíamos extrair lições de moral do passado para condução de nossas vidas aqui e agora? “Nietzschianamente”, se for um remédio, por quanto tempo devemos recorrer a ele? Se os efeitos persistirem, suspendemos seu emprego ou aumentamos a dose? Qual quantidade limite para que este não se configure uma dose letal?

Bruno Leal: Há quem diga que hoje não é mais possível haver sionismo de esquerda. Você concorda com essa afirmação?

Andre de Lemos Freixo: Eu discordo. Quer dizer, radicalismos e generalizações são sempre perigosos. Em geral, essa ideia de que uma coisa não se mistura de jeito nenhum com a outra deriva de algum tipo de radicalismo. O Estado de Israel nasceu como Estado de esquerda, fundamentalmente apoiado pelos kibutzim (que eram assembleias comunais) e pela União Soviética, via Tchecoslováquia, se não engano, que enviou armas e mantimentos para muitos daqueles conflitos iniciais, no final da década de 1940. Hoje, é claro, é tudo muito diferente. Penso ser possível posicionar-se à esquerda em qualquer país do mundo, no qual se goze de um mínimo de liberdade ou mesmo de liberdade quase nenhuma. A Primavera Árabe está aí para comprovar que é possível. Como eu vejo, estar à esquerda em termos políticos significa, entre outras coisas, contestação. Uma constante vigilância crítica do estado de coisas. Espécie de não-conformismo político especialmente diante de políticas públicas injustas, de práticas conservadoras/moralistas ou reacionárias, dos tradicionalismos de ocasião, aos abusos dos poderes instituídos, e imbuído de grande desejo por justiça social e mudanças para o melhor no que tange à inclusão, combate à desigualdade, ampliação e extensão da cidadania plena para uma sociedade mais democrática etc.

No caso de Israel, estar à esquerda significa estar ao lado dos Palestinos em sua causa e contra o Governo de Netanyahu. Claro que esta é minha forma de entender a questão, outros pensam diferente. Há quem pense que ser de esquerda é ser contra o Estado de Israel e contra os judeus – o que significa antissemitismo. Mas, para além do preconceito óbvio, esse tipo de antinomia não tem coerência lógica. Me pergunto se alguém que se identifique com a esquerda, no Brasil de hoje, por exemplo, desejaria que o nosso país fosse varrido do mapa por discordar do modo como o nosso Governo age política e economicamente? Ou como reagiriam alguns destes críticos se alguma nação, distante da nossa, se dissesse favorável ao fim do nosso país e da dizimação do nosso povo, como medida humanitária de dar cabo aos genocídios contra negros, indígenas e/ou mulheres aqui no Brasil? Ou por serem contrários à utilização de força policial altamente militarizada e com armamento de guerra para contenção de manifestações sociais (em defesa do Estado e não da proteção dos cidadãos), ou ocupação de comunidades, nas quais a execução sumária e o uso de tortura são parte do modus operandi cotidiano dessa corporação? Ora, não podemos confundir Sionismo (que em sua matriz nada mais é do que um tipo de nacionalismo, ainda que multifacetado) com ideologia de Estado ou fascismo. Há apropriações ideológicas do Sionismo? Sim, sem dúvida. Mas nem todo sionista é ideologicamente um apóstolo da ocupação e do terrorismo de Estado de Benjamin Netanyahu e seus predecessores. Ser a favor do Estado de Israel (de sua existência real) não significa, necessariamente, ser pró-Likud ou a favor das políticas governamentais e ações militares bárbaras nos territórios ocupados. Há hoje grupos radicais, à esquerda e à direita, que defendem ser necessário varrer Israel do mapa. Defender a existência de Israel é uma questão política tanto quanto a defesa por uma sociedade israelense mais justa e pelo fim das ocupações, da guerra injusta, e do absurdo bloqueio econômico e comercial do Governo israelense aos palestinos. Quem quis exterminar os judeus da Europa (e do mundo) não foi o Nacional-Socialismo? Uma reedição em escala nacional da Solução Final é, para mim, uma medida radical totalitária e inconcebível. Só o pensamento totalitário precisa anular a possibilidade da diversidade, da diferença e do Outro como meio de instituir seu modo de ver as coisas, seu mundo, como regra moral e normativa para todos.

De modo muito sintético, penso que essa impossibilidade, sobre ou se pode “ser” esquerda ou “a favor” do Sionismo, esbarra naquela velha questão da luta contra a ideologia. Paul Ricoeur (em Ideologia e Utopia) dizia ser este um problema entre os críticos da “ideologia”: ideológico é (sempre) o Outro. Desde que o marxismo reivindicou para si estatuto de ciência (com Engels à frente do processo), o conceito de ideologia passou a significar menos uma oposição dialética à práxis (como figura em O Capital) e cada vez mais um contraponto à realidade (que a ciência social marxista daria conta de desvelar em si e para si). Assim, se você diz que algo ou alguém “é” (ou age de modo) ideológico, você estaria a salvo da ideologia, pois fora dela, enquanto crítico da mesma. Postura epistemológica, hoje, muito frágil a meu ver, mas que vigora ainda com muita força em nossa esquerda e, pasme, à direita também. Hoje essa concepção está amplamente difundida no mundo, ao ponto de termos grupos à direita empregando essa exata lógica. No Brasil, temos o “Movimento Escola Sem Partido”, por exemplo: avesso ao marxismo, mas que identifica no mesmo o seu oposto “ideológico”, e não pensa a si mesmo enquanto um movimento ideológico.

À esquerda, o caso da crítica ao Sionismo como sinônimo de ideologia imperialista israelense me parece ser emblemático também, e cria esse tipo de radicalismo. Temos de ter muito cuidado para não simplificar demais as coisas, não essencializar (ou moralizar desmedidamente) posturas políticas. É claro que é possível ser sionista sem se posicionar politicamente à direita. Não estamos falando de essências ou naturezas imutáveis, mas de posturas éticas e políticas. Defender a existência de um país não significa concordar com o modo como seu governo age. Quem defende isso age tão ideologicamente quanto àqueles aos quais critica. Precisamos, isso sim, ampliar o debate. Complexificar nossa compreensão do que está em jogo para todos no Oriente Médio – é muito complexo o quadro geopolítico e ideológico daquela região. Talvez, possamos atualizar o conceito de ideologia ou torná-lo plural: ideologias. Não mais como “mascaramento da verdade e do real”, o que uma “ciência” denunciaria sempre no discurso do “Outro” (o alienado ou o pré-científico); mas como posicionamento ético-político: como engajamento – e, como tal, como responsabilidade (individual e coletiva) – no e para com o nosso mundo, nossa sociedade etc.

Clique aqui para ler a PARTE 2 da entrevista.

Clique aqui para ler a PARTE 3/final da entrevista.


Andre de Lemos Freixo é Doutor em História (PPGHIS/UFRJ, 2012), Mestre (PPGHIS/UFRJ, 2008) e Bacharel com Licenciatura (UFRJ, 2006) em História. É Professor Adjunto no Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Tem como áreas de interesse: História da Historiografia Brasileira, História do Brasil Republicano, Teoria e Filosofia da História. Também é coordenador do Núcleo de Estudos em História da Historiografia e Modernidade (NEHM/UFOP).

Ana Paula Tavares

Subeditora do Café História. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais da Fundação Getúlio Vargas (PPHPBC/FGV) , bolsista CNPq. Possui graduação em Comunicação Social – habilitação jornalismo pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ (2006). É formada em teatro pela Casa de Artes de Laranjeiras – CAL (2010). Estuda História Intelectual, Imprensa, Mediação Cultural na trajetória da jornalista Yvonne Jean.

Deixe um comentário

Your email address will not be published.

Don't Miss