“Daaaaaalí!”: filme irreverente homenageia o mestre surrealista

Uma homenagem criativa e irreverente à genialidade de Salvador Dalí. Com múltiplos atores no papel do artista e uma narrativa tão surreal quanto sua obra, o filme desafia convenções. A direção ousada de Quentin Dupieux captura o espírito de Dalí, mas pode dividir opiniões. Uma experiência instigante para quem aceita abraçar a estranheza.
19 de novembro de 2024
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“Daaaaaalí” é um dos vinte títulos na programação do 15º Festival Varilux de Cinema Francês, que acontece até 20 de novembro em diversas cidades. Foto: divulgação.

Salvador Dalí era, utilizando um termo brazuca meio em desuso, uma figura. Para além de suas pinturas, ele também se aventurou no cinema, nos filmes surrealistas “Um Cão Andaluz” (1929) e “A Idade do Ouro” (1930), ao lado do conterrâneo Luís Buñuel, e mais tarde numa sequência onírica memorável de “Quando Fala o Coração” (1945), do mestre Alfred Hitchcock. Dono de um bigode inconfundível, Dalí é o tipo de personalidade que não conseguiria ser abarcada por um filme comum. É por isso que chega “Daaaaaalí!”, um filme fora do comum que é uma bela homenagem a este gênio.

A jovem Judith (Anaïs Demoustier) trocou a profissão de farmacêutica pela de jornalista. Sua primeira tentativa de fazer uma entrevista com Salvador Dalí é frustrada, pois o artista não quer um perfil escrito: ele quer ser gravado. Um mês depois, Judith chega com uma nova proposta: fazer uma entrevista gravada que se tornará um filme. Será uma missão complicada, cheia de idas e vindas – no tempo e no espaço.

Definindo-se como, ao mesmo tempo, excêntrico e concêntrico, anarquista e monarquista, Dalí só poderia ter um retrato seu pintado, por ser assim múltiplo, se fossem diversos também os atores que o interpretassem. E é exatamente isso que acontece no filme: Gilles Lellouche, Édouard Baer, Jonathan Cohen e Pio Marmaï dividem o papel, se revezando sem nenhum critério.

Quem não podia faltar na película, embora não tenha grande importância narrativa, é a esposa de Salvador, Gala, interpretada por Catherine Schaub-Abkarian. Nascida no então Império Russo em 1894 e batizada com o nome Elena Ivanovna Diakonova, Gala foi primeiro professora e esposa do poeta dadaísta Paul Éluard, com quem teve uma filha. Conheceu Salvador Dalí, que era quase dez anos mais jovem que ela, no final da década de 1920, se casaram em 1934, e viveram juntos quase cinquenta anos. Mais do que musa inspiradora – sendo inclusive o modelo para a pintura que Dalí considerava como sua mais perfeita obra, “Leda Atômica”, de 1949 –, Gala foi também artista, desenhando suas próprias roupas e deixando como legado escritos e objetos surrealistas. Mais do que isso, sua importância para a arte é imensa, pois Dalí certa vez declarou: “Gala foi a única que me salvou da loucura e de uma morte prematura”.

Salvador Dalí teve uma jornada única desde o nascimento: nasceu nove meses após a morte de um irmão de apenas um ano, também chamado Salvador Dalí. Sempre teve, pela coincidência do nome, certeza de que era uma substituição barata, verdadeira fraude. Filho de um pai enérgico e de uma mãe que incentivava seu talento artístico, Salvador cresceu ao lado da irmã três anos mais nova, Ana Maria. A primeira exposição de seus trabalhos ocorreu na casa da família, quando Dalí tinha apenas 14 anos. A primeira exposição pública viria aos 16.

Indo estudar em Madri, fez experiências dentro dos movimentos Cubista e Dadaísta, mas encontrou seu lugar ao sol com o Surrealismo em Paris. Mudou-se para os Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial, por lá ficando, ao lado de Gala, por oito anos. Voltou fixando residência permanente na Catalunha. Nunca deixou de pintar, escrever ou esculpir, produzindo mais de 1500 obras diversas ao longo da carreira, sendo a mais famosa o quadro “A Persistência da Memória”, de 1931. Faleceu aos 84 anos, em inícios de 1989.

Quentin Dupieux assina roteiro, diálogos, montagem e direção. Um usuário do Letterboxd afirma que “Dupieux poderia fazer “Interestelar”, mas [Christopher] Nolan jamais conseguiria fazer “Daaaaaalí!”. Dupieux levou o Prêmio da Crítica no Festival Internacional de Cinema de Barcelona – Sant Jordi e revelou que a grande influência para escrever o filme, além do próprio Dalí, foi o grupo de humor britânico Monty Python.

A estratégia de colocar uma pessoa comum para interagir com uma figura histórica nos filmes serve para inserir na narrativa cinematográfica alguém com quem o espectador pode se identificar: é, pois, um de nós. Isso acontece muito, para citar só dois exemplos: “Eu & Orson Welles” (2008) e “Sete Dias com Marilyn” (2011). Com a figura de Judith em “Daaaaaalí!”, temos um foco de empatia e não podemos deixar de perguntar: como nós reagiríamos frente a um gênio excêntrico?

Se começarmos com um piano urinando e terminarmos onde começamos, mas com uma mudança de perspectiva, temos um dos filmes mais irreverentes do ano – assim como foi Salvador Dalí. Você sairá da sessão com mais perguntas que respostas, ou talvez aprenda no meio do caminho a aceitar e abraçar a estranheza e apenas seguir com o fluxo.

“Daaaaaalí” é um dos vinte títulos na programação do 15º Festival Varilux de Cinema Francês, que acontece até 20 de novembro em diversas cidades.  

Letícia Magalhães

Historiadora e crítica de cinema. Contribuiu com sites como Filmes e Games e Leia Literatura. Mantém desde 2010 o blog Crítica Retrô, sobre filmes clássicos e antigos, e contribui para os sites Revista Eletrônica Ambrosia e Cine Suffragette, no qual é também editora. Foi vencedora do prêmio do Collegium do Festival de Cinema Mudo de Pordenone em 2021, escrevendo sobre o que mais gosta: cinema e história.

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