Hilario Franco Junior
Hilário Franco Júnior é professor da Universidade de São Paulo (USP). Foto: Gazeta do Povo.

Da Idade Média ao Futebol: trajetórias na historiografia

Ex-aluno e amigo do historiador Jacques Le Goff, Hilário Franco Júnior, professor aposentado da Universidade de São Paulo (USP) conta como foi passar da área de Idade Média para os estudos sobre futebol.
7 de agosto de 2009
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Ele é uma das maiores referência em Idade Média no Brasil. E quem estuda a História do futebol também precisa estar atento ao que ele diz, pois o futebol é o seu mais recente objeto de estudo.

Entrevistamos o historiador Hilário Franco Júnior, professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP). Especialista em Idade Média ocidental, seus interesses estão voltados particularmente para a cultura, a sensibilidade coletiva e a mitologia daquele período, bem como para as reflexões teóricas que fundamentam tais pesquisas.

Nos últimos anos, o historiador dedica-se também à História Social do Futebol. É autor de diversos livros, entre os quais “A Idade Média, nascimento do Ocidente”(2006), “O ano 1000 – tempo de medo ou esperança” (2000) e “Dando Tratos à Bola. Ensaios Sobre Futebol” (2007).

Na entrevista concedida ao Café História, ele conta como começou sua curiosa trajetória em História, além de comentar seus novos interesses.

Hilário Franco Junior é historiador medievalista, professor do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP). Possui toda sua formação na área de História, tendo feito seu pós-doutorado com Jacques Le Goff na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) em Paris, na França. É especialista em mitologia medieval e recentemente escreveu um livro sobre a relação entre futebol e sociedade.

Professor, antes de tudo, é um grande recebê-lo no Café História. Nossa primeira pergunta está relacionada à sua formação: como Hilário Franco Júnior tornou-se um historiador? Quando começou seu fascínio pela profissão?

Na verdade, minha trajetória é curiosa. Ao contrário do que aconteceu com muitos colegas, na escola a História não me atraía mais do que as outras matérias, ou seja, pouco. Nunca fui bom aluno. Sem saber muito bem o que fazer como faculdade, acabei indo por influência de amigos e da família para Administração de Empresas! Mas – veja como o destino pode ser curioso – na Fundação Getúlio Vargas, onde eu tinha ingressado, o Centro Acadêmico dirigia um cursinho preparatório para os interessados em prestar aquele vestibular. Os professores do cursinho eram exclusivamente alunos da faculdade, e quando se formavam deixavam a função e havia um concurso interno para contratar outros alunos para dar aula aos vestibulandos.

Logo no meu primeiro ano de curso abriu uma dessas vagas, prestei o tal concurso porque era um emprego bem pago e muito prático (eu seria aluno e professor no mesmo prédio). Ganhei uma das vagas de História Geral e um treinamento de um semestre antes de começar a nova função. Percebi então o óbvio: não sabia o suficiente para ensinar classes de cinquenta alunos, de forma geral de bom nível cultural. Comecei a estudar por conta própria e fui me envolvendo com a História. Mas ainda sem planos maiores nesse campo. Um amigo que ia prestar como segunda faculdade Ciências Sociais insistiu para que eu fizesse o mesmo com História. Prestei o vestibular na USP (provas somente dissertativas naquela época), passei, porém não me inscrevi.

Eu não me via como definitivamente professor e pesquisador de História. Porém dois anos depois senti finalmente necessidade de uma formação específica, meu autodidatismo não me satisfazia mais. Fui me informar, e por um desses felizes (e raros!) mistérios da burocracia eu podia me inscrever sem novo vestibular. Foi o que fiz e o ambiente de Humanas me cativou de vez, enquanto cada vez mais me cansavam a Micro e Macro Economia, Estatística, Matemática Financeira (argh!) etc. A Administração perdeu um ex-futuro medíocre administrador de empresas e a História ganhou um apaixonado adepto.

Em “Apologia da História”, Marc Bloch fala sobre a felicidade de poder falar, no mesmo tom, aos doutos e aos escolares. Professor, uma das características de seus textos é a linguagem acessível, mas sem abdicar do rigor acadêmico. Falar para todos os públicos é realmente uma preocupação sua? Qual deve ser a relação entre historiador e sociedade?

Creio que não se deva estabelecer regras rígidas a respeito. É preciso respeitar perfis pessoais e projetos de vida intelectual. Alguns historiadores têm vocação para democratizar seus conhecimentos, outros não; e estes podem fazer excelente trabalho de pesquisa e mesmo de ensino para públicos especializados. No meu caso, acho que foi minha trajetória pouco ortodoxa que formatou o historiador que sou. Como disse na resposta anterior, precisei aprender a dar aula dentro da sala de aula, diante de alunos apenas dois ou três anos mais jovens que eu, muitos deles vindos de ambientes familiares propícios às coisas da cultura.

Eu lia muito, mas fui percebendo que nem sempre eram boas leituras, havia muita divulgação pouco rigorosa, daí a ideia de seguir a faculdade de História e conhecer o que se fazia de realmente científico no campo. Além disso, o fato de ter de ensinar a História do Egito faraônico à Guerra da Coréia acabou me sendo extremamente útil, permitiu uma visão de conjunto, o estabelecimento de comparações, não me fechou nos limites rígidos de uma especialização. Esta é, evidentemente, indispensável, mas DEPOIS de uma sólida visão de conjunto. Assim, tive de aprender a falar e a escrever para gente não necessariamente fascinada pela História. A tarefa de fascinar cabe ao professor, e para isso o primeiro passo é ser claro, escapar dessa praga de discursos pedantes, politicamente corretos, pretensamente científicos e que escondem vaidades e chavões. E de fato, é um grande prazer transmitir – oralmente ou por escrito – determinado conteúdo e perceber que o público te compreende e se interessa pelo assunto.

Em seu livro “A Idade Média – Nascimento do Ocidente”, o senhor observa que mesmo aquelas sociedades que não possuem um passado medieval, estão, nos últimos anos, entendendo a importância do estudo desse período histórico, uma vez que ele possui um papel decisivo para a formação da civilização ocidental. Tomando o Brasil como exemplo, essa ligação com o universo medieval é vista com relativa facilidade quando observamos muitas de nossas tradições religiosas. Mas qual a relação com áreas como política, cultura e economia possuem com esse mesmo universo medieval?

Do ponto de vista político, podemos lembrar das “dinastias” do Norte-Nordeste como os Magalhães, Sarney ou Barbalho, bem como da “feudalização” que os vereadores promovem em muitas cidades, inclusive São Paulo há alguns anos. Do ponto de vista social, a fragilidade institucional, a baixa consciência de cidadania, a grande indistinção entre coisa pública e coisa privada, o nepotismo, o corporativismo, são ecos dos elementos medievais aqui introduzidos pelos colonizadores portugueses.

Do ponto de vista cultural, não é preciso insistir que nossa língua nasceu na Idade Média e que, aliás, falamos no Brasil um português muito mais próximo ao medieval do que ocorre em Portugal atual. Além disso, a literatura de cordel e seus temas cavalheirescos, carolíngios e artunianos são outros testemunhos de nossa medievalidade. Como essa relação entre Brasil e Idade Média é mais complexa do que podemos conversar aqui, tomo a liberdade de indicar para os interessados um artigo que publiquei a respeito no ano passado: “Raízes medievais do Brasil”, Revista USP, 78, 2008, pp.80-104.

Durante muito tempo, medievalistas discordaram a respeito da periodização da Idade Média. Existe algum consenso hoje em dia? Quando começa e quando termina a Idade Média? Há marcos seguros ou eles serão sempre problemáticos?

Eles serão sempre problemáticos porque decorrem evidentemente muito mais do arbítrio do historiador do que dos fatos pretensamente classificadores. E como o historiador é produto de seu presente, e este muda, as classificações periodizantes mudam. Esta questão já gerou inúmeros debates, como se sabe, mas talvez no fundo seja um falso problema. Pouco importa rotular o fim da Idade Média em 1453, 1492, 1517 ou, como fez Jacques Le Goff mais recentemente, 1800. Na adoção de qualquer uma dessas fronteiras cronológicas todas há muito de “reserva de caça” de domínios científicos. O verdadeiro especialista não se coloca uma camisa de força, prefere periodizações amplas e flexíveis. Como se pode ser especialista do século XIV, por exemplo, sem conhecer profundamente os séculos XI-XIII numa ponta e XV-XVI na outra?

O fundamental é ter consciência que a História de qualquer época comporta diferentes planos, cada um deles com ritmos próprios. Privilegiar 1453 é dar maior importância à política, escolher 1492 é colocar a economia à frente de tudo, 1517 é pensar que a religião está no centro da sociedade, e assim por diante. Portanto, o recorte temporal depende do objeto estudado, e no caso de uma visão ampla sobre muitos séculos (Idade Antiga, Média, Moderna) o melhor é não adotar fronteiras e sim zonas fronteiriças.

Nos últimos anos, é notório o clima tenso entre as religiões monoteístas. Judeus e muçulmanos protagonizam uma escalada nos confrontos no Oriente Médio; Bispos ultra-radicais da Igreja Católica criam mal-estar com judeus ao negar o Holocausto, só para citar dois exemplos. Analistas, na mídia, evocam o passado para explicar a origem dessas tensões. As tensões religiosas da Idade Média explicam, de fato, esse cenário contemporâneo?

Temos aí um bom exemplo dos usos “politicamente corretos” e cientificamente incorretos da História. É mais fácil debitar a responsabilidade de certas situações atuais a séculos remotos, a atos tornados anônimos pelo tempo, do que inculpar o passado recente, de nossos pais, avós ou bisavós. Claro que as Cruzadas dos séculos XI-XIII despertaram nos ocidentais fortes sentimentos antissemitas, isto é, contra judeus no interior da Cristandade, contra árabes no exterior. Mas isso não explica os choques intersemitas (árabes contra judeus, judeus contra árabes) atuais, que decorrem das duas grandes guerras mundiais do século XX. Certa crise de consciência colonial, sobretudo inglesa, e certa crise de consciência ocidental em relação aos judeus massacrados pelos nazistas, levaram ao nascimento artificial e autoritário do Estado de Israel, construído por ocidentais (judeus e cristãos) à custa da população palestina lá instalada há séculos.

O argumento “histórico” a favor da decisão é claramente falacioso: aquela é a terra de origem dos judeus. Mas a América é a terra de origem dos indígenas e ninguém pensa em expulsar os brancos e devolvê-la aos seus ocupantes originários. O argumento “moral” não é menos tendencioso: os judeus foram objeto de genocídio por não terem seu próprio país. É verdade, e esse fato extremamente grave e condenável não pode ser esquecido, mas é verdade também que as potências ocidentais nada fizeram diante de outros genocídios, como o dos armênios por parte dos turcos entre 1915 e 1917 ou o dos tutsis (75% da população eliminada!) de Ruanda em 1994. A rigor, Israel nasceu de conjunção de interesses entre a direita religiosa judaica e as potências ocidentais que desejavam se manter próximas das fontes petrolíferas árabes. Em suma, são questões geopolíticas do século XX que explicam o problema, não questões religiosas da Idade Média.

Os historiadores dos Annales são responsáveis por grandes transformações da historiografia ocidental. O senhor chegou a trabalhar com algum desses historiadores? Do ponto de vista de suas pesquisas, qual desses historiadores mais o marcou e por quê?

Fiz meu pós-doutorado com Jacques Le Goff, grande intelectual e grande pessoa, e evidentemente ter tido contato com ele pelo menos uma vez por semana ao longo de dois anos e meio deixou marcas importantes na minha visão da História. Nossos encontros periódicos mantêm-se até hoje, embora mais espaçados, e mesmo os temas históricos tendo deixado de serem o centro de conversação, já que nossa relação passou a ser mais pessoal, são sempre encontros muito estimulantes. E sua obra continua significativa para mim, em especial por aliar erudição e imaginação no contato com as fontes. De Georges Duby, a quem não conheci pessoalmente, tiro sobretudo a valorização da escrita historiográfica: ele mostrou que um grande historiador não precisa – não deve – escrever de maneira hermética em nome de uma pretensa seriedade científica. Marc Bloch, o mestre deles dois, me inspira pelas preocupações metodológicas e pela ousadia na escolha dos temas estudados. Da mesma geração que eu, mantenho contatos estreitos e profícuos com Jean-Claude Schmitt, o principal discípulo de Le Goff.

O senhor é bastante conhecido por seus trabalhos no campo da mitologia medieval. No entanto, recentemente, lançou o livro A Dança dos Deuses – Futebol, Sociedade e Cultura, pela Companhia das Letras. Isso indica uma mudança em suas pesquisas acadêmicas? Conte mais sobre esse e outros projetos em vias de produção.

O livro sobre futebol abriu, efetivamente, outra frente de interesse, o que não significa abandono dos estudos medievalísticos. Vou, na verdade, tocar ambas as frentes paralelamente, antes de abrir uma terceira e talvez uma quarta. No que diz respeito ao futebol, a motivação é simples: refletir sobre um fenômeno sociocultural de amplo alcance e até agora desprezado pela Universidade, que o abandonou nas mãos de jornalistas, cujo interesse e abordagem são outros. Nesse campo tenho encaminhado um livro de ensaios que não sairá antes de dois ou três anos. É um conjunto de pequenos textos que ou estão sendo escritos ao acaso, de convites ou que não puderam ser aproveitados em “A dança dos deuses” devido ao tamanho do livro.

No que diz respeito à medievalística, sairá em junho deste ano o volume II (e nova edição do vol. I) dos “Ensaios de mitologia medieval”. No momento trabalho também numa análise de conjunto sobre as utopias medievais, que será objeto do próximo livro, não sei ainda exatamente para quando.

Professor, chegamos ao fim de nossa entrevista. Gostaria de pedir ao senhor mais duas gentilezas. Primeiro, que deixe uma mensagem para os membros do Café História, em sua maioria professores e alunos de história. Por último, que indique algum bom novo livro sobre Idade Média para nossos leitores medievalistas. No mais, foi um prazer entrevistá-lo. Muito obrigado pela entrevista e um forte abraço em nome de todos da rede.

É sempre um prazer conversar com gente interessada por História e que tenta difundi-la de maneira ampla e correta como faz o Café História. A mensagem que deixo aqui é simples e bem pouco original: o verdadeiro estudo da História é uma atividade intelectual riquíssima, que alia domínios diversos como política, filosofia, psicologia, literatura, artes plásticas, religião, dentre outros, e por isso mesmo pressupõe acúmulo informativo e esforço reflexivo.

Minha sugestão enfática é que todo interessado pela História rejeite grandes modelos supostamente explicativos de tudo, mantendo o espírito aberto e mergulhando na leitura, sobretudo das fontes primárias. Quanto à indicação de uma publicação recente, como conversamos sobre as fronteiras entre Idade Média e Idade Moderna e sobre a Escola dos Annales, penso que uma boa sugestão seja a tradução brasileira que acaba de sair do maior livro de Lucien Febvre, fundador dos Annales ao lado de Marc Bloch: “O problema da descrença no século XVI. A religião de Rabelais”, editado pela Companhia das Letras.

Como citar essa entrevista

JÚNIOR, Hilário Franco. Da Idade Média ao Futebol: trajetórias na historiografia. Entrevista concedida a Bruno Leal Pastor de Carvalho. In: Café História . Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/da-idade-media-ao-futebol/. ISSN: 2674-5917. Publicado em: 7 ago. 2009.

Bruno Leal

Fundador e editor do Café História. É professor adjunto de História Contemporânea do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB). Doutor em História Social. Tem pós-doutorado em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisa História Pública, História Digital e Divulgação Científica. Também desenvolve pesquisas sobre crimes nazistas e justiça no pós-guerra.

1 Comment Deixe um comentário

  1. Um discurso tendencioso ao anti-semitismo, percebe-se nas entrelinhas irônicas do entrevistado. Sabemos,embora muitos pesquisadores insistam em fechar os olhos, que os conflitos entre árabes e judeus não acabarão por interferência humana. Admiro Flavio Josefo pelas riquezas muito bem fundamentadas á essa questão. Genocídeo ocorre todos os dias porém, exite ao meu ver uma particularidade, ou talvez certa indiferença midiática e historiográfica, quanto mortandades acometidas a judeus bem como ás “praticas” cristofóbicas. Está na hora da História falar o que vê não o que dizem a ela…

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