Nos últimos anos, tem sido possível observar em diversos países a emergência de dois fenômenos politicamente relacionados. Um é o fenômeno da proliferação de discursos negacionistas; o outro é o fenômeno da apologia de regimes autoritários e totalitários. Ambos têm levado, no plano parlamentar desses países, à proposição de projetos de lei que visam criminalizar as práticas que os definem. No Brasil, transitam, atualmente, na Câmara dos Deputados, cinco propostas (PL 980/15 e apensados) que visam criminalizar a apologia à ditadura militar e outras rupturas constitucionais no país.
O objetivo deste artigo é discutir as possibilidades, os riscos e os limites deste tipo de projeto de lei no Brasil, assim como examinar a maneira como o seu debate vem se desenvolvendo, especialmente a comparação do caso brasileiro com o caso alemão.1
Negacionismo
De acordo com o historiador Luís Edmundo de Souza Moraes, o negacionismo é originalmente uma das muitas manifestações contemporâneas da extrema-direita e remete a um fenômeno específico que tem lugar após a Segunda Guerra Mundial: “a prática instrumental de negar que os nazistas tenham praticado o assassinato sistemático e planejado de grupos que considerava indignos de viver”.
É recorrente que grupos e indivíduos “negacionistas” se auto intitulem “revisionistas”. Fazem isso intencionalmente com o objetivo de se fazer confundir a sua atividade de negação com uma das mais importantes atividades dos historiadores profissionais, a constante revisão da história. As duas atividades, porém, são inconciliáveis e até mesmo antagônicas: ao passo o historiador desenvolve uma atividade intelectual orientada por critérios acadêmicos e científicos, o negacionista desenvolve uma atividade absolutamente política, não raro mediante processos fraudulentos, norteada e justificada por interesses que não são da pesquisa acadêmico-científica.
O negacionismo define-se antes de tudo como uma questão de desonestidade intelectual: o negacionista não produz interpretações históricas, como faz o historiador, mas opera uma série de manipulações discursivas repletas de nuances a fim de esconder ou expurgar o crime cometido pelo regime antidemocrático. Seu intuito, quase sempre, é tornar a ideologia deste regime novamente viável do ponto de vista político e partidário. E isso só é factível separando-se o regime dos seus crimes.
Com o passar do tempo, não só o negacionismo do Holocausto passou a ser praticado por grupos que extrapolam o campo da extrema-direita, como o termo passou a ser usado genericamente para designar a negação de diversos outros eventos históricos, em especial os chamados “passados traumáticos”, que são os das ditaduras militares, da escravidão, dos conflitos armados, etc. Seu uso original, contudo, prevalece.
Atualmente, mais de 10 países europeus possuem leis criminalizando a negação do Holocausto, colocando em tela uma relevante questão: quais seriam os limites entre a liberdade de expressão e os discursos que propagam o ódio, violam direitos humanos e a dignidade das vítimas? Essa reflexão estende-se a todos os negacionismos históricos.
Pensar formas de lidar com os negacionismos históricos é, portanto, uma pauta muito importante e que certamente merece a nossa atenção. Mas o meu foco neste artigo são as especificidades de outro fenômeno, que apesar de correlato ao negacionismo, não se confunde com ele: o fenômeno da exaltação de regimes autoritários. Diferente do negacionismo, a exaltação de regimes autoritários, o que inclui pedidos de retorno à ditadura ou de intervenção militar, está menos interessado em disputar os sentidos do passado e mais em preconizar as ações e os métodos de regimes arrolados em crimes hediondos.
Outra diferença significativa entre os dois fenômenos é que a exaltação do regime autoritário pode ou não beber do negacionismo. Isso é importante que fique demarcado, porque os indivíduos ou os grupos que fazem esse tipo de exaltação geralmente o fazem sem sentir a necessidade de separar o regime dos seus crimes. Na verdade, muitas vezes, não é apesar da violência e dos crimes cometidos por um regime autoritário que alguns exaltam esse passado – o que já seria problemático –, mas é justamente a violência e os crimes do regime que os faz exaltá-lo. Neste caso, há plena consciência dos fatos e não negação deles.
O aumento no Brasil de discursos que glorificam a ditadura militar e os seus marcos autoritários tem levado à proposição de uma legislação punitiva. E no âmago deste debate tem se recorrido sistematicamente à comparação com o caso da Alemanha, que atravessou no último meio século o legado de um passado totalitário. O fato de o país europeu ter combatido o espólio do nazismo por meio de normas legais tem sido apresentado como linha mestra a ser seguida em nosso país – este é o caso, inclusive, do PL 980/15.
Então, convém observar o caso alemão e perguntarmos: que lições podemos tirar dele?
Alemães contra o nazismo
Uma vez terminada a Segunda Guerra Mundial, foram criadas uma série de leis para livrar a Alemanha dos vestígios da influência nazista. No imediato pós-guerra, as forças aliadas de ocupação voltaram-se para o cumprimento desta promessa iniciando o processo que ficou conhecido como “desnazificação”. Segundo o historiador Roderick Stackelberg, países como Estados Unidos e Grã-Bretanha definiram suas ações a partir de longos questionários aplicados a quase todos os adultos de áreas ocupadas “que serviram como base para medidas posteriores, inclusive ações de julgamentos criminais, sempre que fossem justificadas”. A medida parecia justificar-se: mais de 12 milhões de alemães foram filiados ao Partido Nazistas, enquanto outros tantos mantiveram relações direta ou indiretas com ele e com outras instituições do Terceiro Reich.
O processo de implementação das iniciativas de desnazificação foi demorado e abrangente. As medidas não objetivavam substituir uma doutrina por outra, mas esclarecer o que o nazismo escondia em todos os seus anos de dominação, fosse através da censura, fosse através da propaganda e da manipulação de informações.
Deste modo, os esclarecimentos sobre a ideologia nazista deveriam abranger iniciativas na educação, no judiciário, nas empresas, nas autarquias públicas e em outros tantos espaços sociais e do poder. Foram feitos expurgos em diversos setores. Nazistas considerados “grandes infratores” foram impedidos de ocupar cargos públicos.
É verdade, no entanto, que o fenômeno político da Guerra Fria arrefeceu o projeto de desnazificação e nazistas notórios voltaram a gozar de poder político já no final dos anos 1940. Porém, esses antigos nazistas só podiam operar de forma discreta, submetidos aos limites democráticos e constitucionais, sendo-lhes vetada, sob a pena de execração pública e do próprio poder, realizar qualquer apologia ou enaltecimento da ideologia nazista. Aqui, portanto, vemos um dos êxitos incontestáveis do processo de desnazificação: a plena condenação moral e legal do regime pela sociedade e Estado.
Nos anos 1950, emblemas e símbolos de organizações nazistas foram tipificadas como crime segundo o Parágrafo 86 do Código Penal alemão. Distintivos, saudações, uniformes, slogans, canções e bandeiras nazistas foram expressamente proibidos, assim como todo e qualquer símbolo que pudesse ser confundido com os dos nazistas. A lista de elementos e de manifestações vetadas pela legislação continuou aumentando até os anos 1980. Em agosto de 2019, um parque de diversões de Löffingen, no sudoeste da Alemanha, fechou uma de suas atrações, chamada “O Voo da Águia”, porque o brinquedo perfazia o formato de suástica quando colocado em movimento.
Posto isso, voltamos a nos perguntar: criminalizar a apologia ao regime militar como os alemães criminalizaram o nazismo e apologia ao nazismo salvaguardaria a nossa ordem democrática e constitucional e o respeito às vítimas? A resposta não é fácil devido a diferença entre os dois casos.
Cotejando os dois casos
O regime totalitário na Alemanha provocou o surgimento de um simbolismo muito forte relacionado a uma ideologia específica, que é o nazismo, profundamente racista e genocida, enraizada, como vimos, nas esferas política, social, econômica e cultural. Tamanho enraizamento, rechaçado inequivocamente não só pelo Estado alemão no pós-guerra, que queria se ver livre da pecha de nazista, mas também pela comunidade internacional, suscitou um movimento de expurgo imediato, sustentado tanto pelo código penal quanto por medidas na esfera da produção cultural e intelectual.
No Brasil, diferentemente, esse simbolismo não ocorreu, não ao menos nesses termos e nas mesmas proporções. A ditadura militar brasileira produziu um legado distinto do Terceiro Reich, sendo ela pensada, imaginada e representada a partir de ambiguidades persistentes que ela mesma produziu por meio de sua máquina de propaganda. A ideia de um golpe de estado e de um regime ditatorial que seriam necessários e justificados por conta de uma defesa da democracia, do desenvolvimento e da família foi uma criação da própria ditadura. Essa criação resistiu ao fim do regime, sendo ainda hoje aceita por parte da sociedade e mesmo dentro das instituições do Estado, inclusive e especialmente em certos círculos das forças armadas.
Isso tudo coloca claros desafios para a penalização criminal proposta por projetos de lei como o aqui em exame. Como propor uma lei de criminalização à apologia da ditadura militar sem mexer neste forte ideário que a ditadura nos deixou? Poderia ser esta lei eficaz sem passar por isso? Ou ainda: seria o direito à liberdade, inclusive a liberdade das ideias, um direito absoluto, ou haveria ideias que devem ser proibidas numa sociedade, fazendo com que o direito à liberdade não possa ser absoluto?
Se na Alemanha, o legado nazista precisou de amplas ações de esclarecimentos, tais iniciativas se pautaram em desconstruir os perpetuadores deste legado. Aqui, penso que nossas ações também precisam ser focadas mais em nossos legados – o mais flagrante, claramente, é o autoritarismo – e na figura dos perpetuadores. Talvez mais importante do que o debate sobre leis de criminalização da apologia à ditadura seja a desmistificação das ideias falseadas por tanto tempo e propagandeadas pelo regime militar – são elas, sobretudo, que precisamos observar, compreender e mudar.
Leis que criminalizam pedidos de rupturas democráticas e constitucionais parecem-me fundamentais em qualquer democracia. Mas levantam sérios desafios e riscos: será possível mudar nomes de ruas, escolas, praças, bibliotecas, auditórios e outros espaços que rendem homenagens a generais e presidentes militares, inclusive dentro de locais militares? E, considerando o passado de autoritarismo no Brasil, estas iniciativas se estenderiam a outros regimes autoritários de nossa História, como é o caso do Estado de Novo de Vargas? As autoridades brasileiras teriam força para assegurar tudo isso?
Por fim, ao se refletir sobre as possibilidades e riscos de uma lei que criminaliza o elogio ao passado ditatorial brasileiro, devemos obrigatoriamente refletir sobre a nossa “justiça de transição”, feita tardiamente e de forma incompleta, o que ocasionou continuidades de diversos tipos entre o período ditatorial e o período democrático. Diferente da Alemanha, no Brasil, muito em função de nossa Lei da Anistia, não ocorreram julgamentos, não se realizou expurgos, não se interditou postos no Estado a indivíduos comprometidos com crimes executados durante o regime de exceção e nem se tipificou claramente os crimes e os seus autores. É por isso, acredito, que os dispositivos já existentes na Constituição Brasileira e no Código Penal, que tipificam como crime a apologia à tortura, nem sempre são eficazes quando se referem à ditadura. A isso soma-se o fato que o Direito Penal não pressupõe interpretação extensiva, sendo apenas crime aquilo que se encaixa de forma literal na descrição do código.
Como historiador, ao invés de prescrever a melhor forma da lei, parece-me mais adequado apontar que, embora seja necessário criminalizar claramente todas as formas de apologia à tortura e aos torturadores, bem como movimentos que possam colocar em risco nossas garantias democráticas, a força da lei, sozinha, dificilmente seria eficaz. Na Alemanha e em tantos outros países que resolveram enfrentar seus passados traumáticos, o estabelecimento de leis não foi suficiente. Ao meu ver, o recurso da lei pode ser um passo importante, assim como foi a norma que criminaliza o racismo no Brasil. Mas tal como esta, é improvável que ela, isoladamente, tenha efetividade. Para ser eficaz, precisa ser acompanhada de uma política de memória mais ampla, que pensando nas continuidades danosas das ideias autoritárias e da tentação que estas provocam, abarquem também os espaços educacionais, sociais e museológicos, entre outros, espaços esses fundamentais para o esclarecimento sobre as práticas criminosas do regime militar e para a desconstrução de um imaginário criado pela propaganda da ditadura militar, vivo e influente ainda hoje em nosso meio social.
Notas
[1] Este artigo é uma versão levemente modificada de uma exposição feita por mim em audiência pública Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados no dia 16 de outubro de 2019. Minha ida ao Congresso ocorreu à convite do gabinete do deputado federal Túlio Gadelha (PDT-PE), relator do PL980/15. A íntegra do debate está aqui. Agradeço a Ana Paula Tavares Teixeira, Pedro Teixeirense e Matheus Gamba pelas valiosas contribuições que levaram a elaboração deste artigo.
Referências bibliográficas
DE SOUZA MORAES, Luís Edmundo. Negacionismo: a extrema-direita e a negação da política de extermínio nazista. Boletim do Tempo Presente, n. 04, 2013. Disponível em: https://seer.ufs.br/index.php/tempopresente/article/view/4217/3517. Acesso: 20 out. 2019.
STACKELBERG, Roderick. A Alemanha de Hitler: origens, interpretações, legados. Rio de Janeiro: Imago, 2002.
Como citar este artigo
CARVALHO, Bruno Leal Pastor de. Criminalizar a apologia à ditadura no Brasil: possibilidades, riscos e limites da lei (Artigo). In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/criminalizar-ditadura-militar/. Publicado em: 21 out. 2019.