“Coringa – delírio a dois”: folie à deux em forma de musical

Segundo filme de Todd Phillips sobre a origem do vilão nêmesis do Batman é uma mistura de drama, comedia romântica, filme de tribunal e musical.
14 de outubro de 2024
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"Coringa - delírio a dois": folie à deux em forma de musical 1
Continuação está nos cinemas brasileiros. ©Warner Bros/Courtesy Everett Collection. Direitos de autor: ©Warner Bros/Courtesy Everett Collection.

Ninguém passou ileso ao blockbuster Coringa de 2019. O festejado filme, criado e dirigido por Todd Phillips (War Dogs – 2016), superou todas as expectativas dos fãs, arrebanhou multidões aos cinemas e faturou algo perto de 1 bilhão de dólares.  Joaquin Phoenix, merecidamente, recebeu os louros, e muitos prêmios, por sua interpretação visceral do personagem que vive entre a tragédia e loucura. Diferente dos seus antecessores Heath Ledger e Jack Nicholson, que interpretaram o papel nas versões de Batman de Christopher Nolan e Tim Burton, Phoenix não mergulhou no completo caos ou nos apresentou um Coringa caricato direto das páginas dos antigos HQ da DC. A figura trágica, que sofre com os resultados de repetidos abusos, preconceitos sobre doenças mentais e falhas graves no sistema de acolhimento de PCDs na sociedade norte-americana, nos fez vibrar por um dos mais notórios vilões do universo do homem morcego.

Agora, em 2024, Todd Phillips resolveu dobrar a aposta. Novamente ele é o criador principal, atuando como diretor e roteirista, mas o resultado desse estudo da loucura nos deixou um pouco perdidos na miscelânea de emoções que evoca. Confesso que nos primeiros minutos o filme me fez dar – em silêncio claro, pois no cinema – gritinhos de contentamento, quando fez a recapitulação do final do primeiro filme usando como artifício uma animação do imaginário clássico da Warner Bros. Cantamos mentalmente a abertura de Looney Tunes, e reconhecemos movimentos, cores e sonoplastia que nos remetem a Bugs Bunny e sua turma lá dos anos 30 e 40. Dali o filme corta para o Asilo Arkham, a penitenciária psiquiátrica que abriga quase todos os inimigos de Batman e de Gotham City.

Aqui não vemos o Coringa, vemos Arthur Fleck, mirrado, curvado e ainda mais adoecido, em uma rotina – com filtro verde, claro – de violência de carcerários, medo, loucura e solidão. Fleck vive isolado, dopado de remédios, e calado. E é nesse momento, em um encontro supostamente acidental, que Todd introduz a figura de Lee Quinzel, uma mulher que claramente é fascinada pelo Coringa. Lee é interpretada por Lady Gaga, uma opção de Phillips de se distanciar da explosiva Harley Quinn de Margot Robbie, que conhecemos de filmes como Birds Of Prey (2020) e Suicide Squad (2021). A Arlequina de Gaga não é extrovertida e colorida como a de Robbie, ela se arrasta pelos corredores de Arkham fumando compulsivamente, produzindo frases completamente sem nexo vestindo moletom, camiseta e com os cabelos sujos. Visualmente é a personagem que se encaixa perfeitamente na fantasia de Todd nesse universo alternativo onde a realidade não está tão longe assim da ficção.

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Mas, para mim, também é aí que alguns problemas graves do filme começam. Imagino que a essa altura não seja surpresa para ninguém que Todd resolveu incorporar números musicais no filme. Imediatamente pensei: Teria sido o roteiro criado e recortado ao redor do espectro do talento de Gaga – que ainda é bem mais conhecida por sua carreira como cantora do que como atriz – em detrimento à atuação do method actor Phoenix? Infelizmente essa impressão me pegou e me acompanhou por vários números musicais. Phoenix claramente não sabe cantar, mas isso não importa muito no contexto, seria extremamente estranho se logo de cara ele saísse cantando como um Frank Sinatra e dançando como um Fred Astaire. Também precisa ser dito que os números musicais são inseridos de uma forma bastante criativa, com uma passagem, na maioria das vezes, suave entre texto e canto. Como, por exemplo, evitando colocar números completos e fechadinhos, com os atores cantando com a música de um rádio ou incorporando sem grandes cicatrizes e contrastes os devaneios musicais de Fleck e seus sonhos românticos com Lee.

O delírio, portanto, é musical, e mesmo nessa seara Todd entendeu que precisaria ser comedido, evitando coreografias espalhafatosas e mudanças constantes de cenário. A seleção musical não poderia ser melhor para quem, como eu, é fã de clássicos musicais. Vamos de “Get Happy” (Summer Stock – 1950) e “That’s Entertainment!” (The Band Wagon – 1953) a “Close to You” de Burt Bacharach e “My Life” de Billy Joel. O filme também conta com dois números musicais ao estilo de “The Sonny & Cher Show”, onde Lee e Fleck funcionam como um casal e um onde eles emulam Fred Astaire e Ginger Rogers.

Fora do mundo da imaginação e da fantasia, Delírio a Dois tem uma vida seca. Como pano de fundo temos apenas as dependências de Arkham e salas de Tribunal. A química – fora dos números musicais – entre Phoenix e Gaga também é muito insuficiente. Gaga está longe de entregar sua melhor performance que, para mim, ainda é a exagerada Patrizia Reggiani (House Of Gucci – 2021). No “mundo real” dois atores, subutilizados, brilham – Catherine Keener como a advogada Maryanne Stewart e Steve Coogan como o entrevistador Paddy Meyers. Mas um ator coadjuvante rouba totalmente a cena e protagoniza o momento mais emocionante do filme durante um depoimento no tribunal – Leigh Gill, repetindo seu papel do primeiro filme como Gary Puddles.

Coringa: Delírio a Dois, definitivamente não veio ao mundo para agradar. Os fãs ferrenhos do vilão e de sua comparsa se sentirão traídos pela falta de ação, explosões e maldades que compõem boa parte dos filmes de super-heróis. Os fãs de musicais ficarão incomodados com a falta de apuro técnico e pela performance amadora dos não-cantores como Phoenix. Os fãs de Gaga sentirão falta de sua imensa personalidade cênica no palco. Enfim, Todd escolheu o caminho das pedras para dar corpo à sua ideia de desconstruir o Coringa. O filme vai encontrar seu pequeno nicho entre aqueles que se empolgam quando as regras sagradas são quebradas, os personagens reinventados e assuntos incômodos – e muito humanos – são abordados sem a maquiagem excessiva cinematográfica. Talvez seja o filme para quem tenha se separado da idolatria das obras impressas. Alguém que vá ainda mais além na destruição de mitos e humanização de monstros. Alguém que mesmo fã da gloriosa Graphic Novel “Batman:T he Killing Joke” (2006) de Alan Moore e Brian Bolland, consegue ir além da dor expressa em tinta e papel.

Tais Zago

Tem 46 anos. É gaúcha que morou quase a metade da vida na Alemanha mas retornou a Porto Alegre. Se formou em Design e fez metade do curso de Artes Plásticas na UFRGS, trabalha com TI mas é apaixonada por cinema.

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