Como os nossos pais: o apelo do passado e a extrema-direita nos Estados Unidos

A extrema-direita nos Estados Unidos gosta bastante de história. Mas não do jeito que você deve imaginar. Dos racistas de Charlottesville às cruza-das do trumpismo atual, reina absoluta a crença de que devemos proteger nossas liberdades como “nossos” antepassados o fizeram.
14 de abril de 2025
Grafiti em Buenos Aires, Trump ameaça a Estátua da Liberdade
Grafiti em Buenos Aires, Trump ameaça a Estátua da Liberdade. Foto: Rod Long, Unplash.

Quando tomou posse como 47º presidente dos Estados Unidos, em janeiro de 2025, Donald Trump fez menção ao Destino Manifesto, à construção do Canal do Panamá e a Martin Luther King. Quando o Congresso Americano foi invadido, em 2021, alguns invasores carregavam bandeiras com símbolos Confederados e da época das 13 colônias. Em 2017, os racistas que marcharam pelas ruas de Charlottesville protestavam contra a remoção de uma estátua do general Robert E. Lee. Enquanto escrevo essa matéria, faz sucesso, na Amazon, o boné com a inscrição “1776”, ano da independência americana. Parece que os ultranacionalistas e fascistas americanos gostam bastante de história.

Eles gostam mesmo de história, mas não da maneira que você deve imaginar. Para esses grupos, recorrer ao passado não tem nada a ver com sede de conhecimento, passatempo ou proteção patrimonial. Tem a ver com poder. Para justificar certas ações e ideias no presente, esses grupos invocam fatos, símbolos e personagens do passado. Tudo é selecionado para formar uma narrativa que permita mostrar, por exemplo, que os brancos são vítimas de perseguição, ou que Trump é descendente da mesma classe de homens que fundaram o país. Em outras situações, essa visão enviesada do passado é usada para demonstrar como os Estados Unidos estão perdendo sua identidade ou sua virilidade. Nesses casos, ostentar em bonés e camisetas com símbolos do passado é um ato de resistência e coragem diante de ameaças que estariam dentro do próprio país.

A imaginação histórica

Para falar sobre essa ideia de história que anda circulando entre os círculos da extrema-direita americana, o historiador Arthur de Ávila recorre ao conceito de imaginação histórica, formulado por outro historiador, norte-americano, chamado Hayden White (1928-2018). Esse conceito refere-se à capacidade dos historiadores de selecionar e organizar eventos do passado em narrativas coerentes e significativas, reconhecendo que essa construção não é imparcial e nem puramente objetiva, mas influenciada por elementos literários e estilísticos. Em outras palavras, é a maneira pela qual historiadores utilizam estruturas narrativas semelhantes às da literatura para atribuir sentido aos fatos históricos.

White não quis dizer com isso que os historiadores manipulam o passado ao seu bel-prazer, mas que, aquilo que fazem – escrever a história – leva em conta não só documentos, mas também recursos da língua. O historiador, assim como o literato, também utiliza metáforas, perífrases, hipérboles, eufemismos, ironias, elipses e outras figuras de linguagem para escrever a história. Sem isso, não existe um livro ou artigo de história.

Mas, a grande questão, segundo Ávila, é que no contexto do trumpismo, a tal da imaginação histórica não se manifesta como uma narrativa coesa e embasada do passado, mas como uma montagem antiética e forçada de símbolos, mitos fundacionais e referências que se moldam às necessidades emocionais e políticas de sua base. Essa construção não visa à fidelidade histórica, mas à criação de um espelho distorcido onde os ressentimentos contemporâneos possam ser projetados e servir para chamadas à ação.

Mas não imagine essa visão do passado como uma narrativa precisa. Esse passado idealizado pela extrema-direita é propositalmente vago: pode remeter à época da independência, ao pós-Segunda Guerra Mundial ou aos anos dourados da indústria americana, dependendo da conveniência emocional ou política de quem o invoca. Daí o sucesso de slogans genéricos como Make America Great Again. Querem fazer a América grande novamente – mas de qual tempo de grandeza estamos falando aqui exatamente?

1776 e a extrema-direita

Dentro dessa montagem de símbolos, pessoas e eventos históricos, a Revolução Americana (especialmente o ano de 1776) ocupa um papel especial. Segundo Ávila, 1776 não é apenas a data da Declaração de Independência, mas um mito fundador constantemente evocado para justificar a insurgência política contemporânea e o permanente estado de rebelião da base trumpista. Isso mesmo: para a base de Trump, a luta de hoje, contra a esquerda Woke, os imigrantes ou as tarifas alfandegárias, tem o mesmo peso e sentido da luta que os “americanos” tiveram contra os britânicos no século XVIII, pela independência. 1776 transforma-se em um ícone maleável da suposta essência americana: liberdade radical, resistência à tirania e pureza moral original. Dissociado de sua historicidade concreta, esse marco adquire uma função quase litúrgica na retórica do movimento.

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Se liga nessa história: logo depois da Segunda Guerra Mundial, Herberts Cukurs imigrou para o Brasil vindo da Letônia. Ele criou os pedalinhos da Lagoa Rodrigo de Freitas e refez a vida. Mas, em 1950, ele foi denunciado como criminoso de guerra nazista. Essa incrível história real é examinada pelo historiador Bruno Leal no livro “O homem dos Pedalinhos” (FGV Editora), que em breve vai virar filme. Confira aqui o livro, em formato físico e digital.

A evocação de 1776 permite que os adeptos do trumpismo se identifiquem como herdeiros diretos dos “pais fundadores”, legitimando ações radicais de enfrentamento institucional, como a invasão do Capitólio. Elementos como as bandeiras das 13 colônias, os chapéus de três pontas usados por figuras como George Washington e alusões à Segunda Emenda emergem nesse contexto como encenações de um patriotismo performático, mas altamente eficaz na mobilização de afetos políticos. Luta-se, de novo, pela sobrevivência.

Como nossos pais

É a partir dessa imaginação histórica propositalmente vaga e ambígua que o trumpismo constrói um passado prático — conceito que, segundo Hayden White, diz respeito ao uso cotidiano do passado por pessoas, grupos ou instituições para orientar ações, decisões e identidades. Novamente, trata-se de um passado não necessariamente fundamentado no rigor acadêmico, mas baseado em memórias, tradições e agendas políticas do presente.

No caso do trumpismo, esse passado prático não é apenas aspiracional: ele legitima políticas de exclusão, como o ataque a direitos civis, o endurecimento das políticas migratórias, a eliminação de ações afirmativas e a reconfiguração do Estado como instrumento de manutenção das elites econômicas. A adoção desse passado serve como justificativa para a insurgência. Para essas pessoas, os insurgentes, o presente é um tempo histórico que os convoca para a ação. Elas estariam na mesma posição de que “seus” descendentes que lutaram pela independência. E, por isso, elas sentem-se com razão e justificadas moralmente, porque apoiadas pela História, com H maiúsculo. O passado prático opera aqui como fantasia insurgente: sustenta a ideia de um país habitado por revolucionários sempre prontos a se erguer contra qualquer tirania — ainda que essa “tirania” consista em meros obstáculos simbólicos à sua supremacia.

Diferentemente de uma reconstrução crítica da história, como fazem os historiadores, o trumpismo promove uma política de memória performática, orientada não pela busca da verdade, mas pela eficácia simbólica. Por isso, não se pode perder de vista: a imaginação histórica trumpista não contempla o passado — ela o remodela como ferramenta para agir no presente, criando um passado prático que funciona como guia emocional e político.

Como citar este artigo

CARVALHO, Bruno Leal Pastor; SORRILHA, Marcos. Como os nossos pais: o apelo do passado e a extrema-direita nos Estados Unidos (Artigo). In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/como-nossos-pais-trump-extrema-direita/. Publicado em: 14 de abril de 2025. ISSN: 2674-5917.

Bruno Leal e Marcos Sorrilha

Bruno Leal é professor do Departamento de História da Universidade de Brasília e fundador do Café História. Marcos Sorrilha é professor Assistente na Universidade Estadual Paulista e dono do Canal do Sorrilha, no YouTube.

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