A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) teve um impacto grande nas economias domésticas beligerantes e no cotidiano de milhões de pessoas, que tiveram que se adaptar à rotina de escassez de produtos, inflação e bombardeios aéreos. Em boa parte dos países, o pão era um dos poucos alimentos que não havia subido de preço, e em grande parte devido ao controle do Estado. A vida se tornou dura naqueles anos.
Para os britânicos, a Primeira Guerra Mundial teve uma dificuldade extra, se considerarmos que a cerveja é um de seus patrimônios. Durante a guerra, o governo criou regulamentos e leis que alteraram o funcionamento dos pubs, bem como o consumo de bebidas alcoólicas em geral.
Por que isso importa? Os pubs eram espaços de socialização e descanso para todas as classes, especialmente a trabalhadora. Eram em suas mesas que trabalhadores cansados e não raro explorados formavam as suas identidades e compartilhavam suas dores e alegrias. Em algumas regiões, os pubs eram os únicos espaços de diversão e entretenimento. E quase sempre o único onde os trabalhadores podiam gastar seus salários.
Os Pubs, isto é, as public houses, são uma instituição antiga no Reino Unido, remontando, pelo menos em sua versão mais contemporânea, ao século XVIII. Mas foi na Era Vitoriana, com novas reformas urbanas e uma nova concepção de rua que os pubs se multiplicavam por todo lugar. Muitos eram ao lado de fábricas ou acomodações para operários.
Segundo o historiador Robert R. G Duncan, “a cerveja, no período de 1870 a 1914, representava 60% de todas as bebidas alcoólicas consumidas, enquanto outros 30% correspondiam a destilados. Havia mais de 100.000 pubs e lojas de cerveja vendendo álcool na Grã-Bretanha”.
Pubs na Primeira Guerra Mundial
Quando a Primeira Guerra Mundial começou, uma das preocupações das autoridades era com o efeito negativo que o álcool poderia ter na frente doméstica, diminuindo a produtividade dos operários. Além disso, fábricas de munição eram sensíveis a manipulações erradas ou a qualquer outro descuido. Um passo em falso e tudo poderia ir aos ares – como em algumas ocasiões realmente foi. Em 1915, o então Ministro das Munições, Lloyd George , declarou: “Estamos lutando contra alemães, austríacos e bebida, e até onde posso ver, o maior desses inimigos mortais é a bebida”.
Para combater essa e outras “ameaças” à economia de guerra, o governo baixou, em 1914, o Defence of the Realm Act (DORA), que dava plenos poderes ao governo para regular a vida civil. E aquilo foi só o começo. Ao longo da guerra, o Defense of the Realm Act só foi engordando com várias outras leis adicionais. Muitos questionaram: onde está o liberalismo?
![Como a Primeira Guerra Mundial mudou a rotina dos pubs britânicos 2 The Sun Inn, Pub inglês em 1914, ano em que começa a Primeira Guerra Mundial.](https://www.cafehistoria.com.br/wp-content/uploads/2025/02/Pubsun-1024x640.webp)
O DORA (poderíamos traduzir para algo como “Regulamento de Defesa do Reino”) foi alterado seis vezes durante a Primeira Guerra Mundial, “eventualmente sendo usado para tudo, desde proibir narcóticos até censurar a imprensa. Introduziu uma ampla gama de mudanças na sociedade, incluindo proibição, racionamento, a introdução do horário de verão britânico e a ampliação dos poderes da polícia. Foi usado até para proibir fogueiras, assobiar nas ruas e empinar pipas!”
Os Pubs na mira do governo
Os Pubs foram pegos em cheio. A venda e o consumo de bebidas alcoólicas estavam proibidos “nos dias úteis das 12h às 14h30 e das 18h às 21h e aos domingos [no mesmo horário]”. Isso dava cinco horas e meia por dia. Em alguns momentos, nem aos domingos podiam mais abrir. O frequentador queria comemorar alguma coisa e pagar uma rodada de drinks para os seus camaradas, o chamado “treating”? Proibido também.
Muitos donos e gerentes de pubs costumavam servir uma quantidade extra para atrair mais clientes. Isso também foi proibido. Concessão de crédito pelos proprietários dos pubs aos bebedores? Proibido.
Teve até a legalização da bebida batizada. “A cerveja em particular foi ordenada a ser “diluída em água” para torná-la menos potente e reduzir a embriaguez. Além disso, tornou-se ilegal comprar bebidas para outras pessoas, encerrando assim a tradição de comprar álcool em rodadas.”
O historiador Pete Brown explica que “a ideia era a moderação, e não a proibição gradual. O objetivo era ter menos pubs, mas pubs melhores”. Segundo Brown, isso explica as medidas restritivas, mas não radicais. “Cervejas mais leves foram vendidas, assim como comida, bebidas não alcoólicas, jogos, entretenimento e instalações para mulheres. Acreditava-se que, se os pubs fossem lugares para toda a família, isso destruiria a cultura da ‘bebedeira perpendicular’ de grupos de homens”.
Pubs nacionalizados
Em 1915, as autoridades ficaram particularmente preocupadas com a situação de Gretna, na Escócia, onde em breve funcionaria uma grande fábrica de pólvora e onde os operários eram mais bem pagos. Alguns distúrbios ligados ao consumo excessivo de álcool que aconteciam na região há algum tempo se tornaram fonte de preocupação.
Eis então, as autoridades governamentais tiveram uma ideia bastante arriscada: nacionalizar os pubs do distrito de Carlisle-Gretna. Começava o chamado “The Carlisle Experiment”, que acabou atingindo várias outras regiões, inclusive da “grande Londres”.
A ação teve início em 1916. O estado nacionalizou todas as cervejarias e mais de 300 pubs e instalações licenciadas em Carlisle e de vários outros lugares, tanto em áreas urbanas quanto em rurais. O objetivo daquela medida exprimental era manter os trabalhadores sóbrios.
Para moderar o efeito do álcool, as autoridades promoveram a venda de alimentos em pubs e basres normais. Todos os gerentes eram, a partir de agora, funcionários públicos e não tinham qualquer incremento no salário caso seus clientes consumissem mais bebida. “Em 12 de julho de 1916, o Gretna Tavern foi inaugurado na Lowther Street, em Carlisle. Foi o primeiro pub a ser aberto pelo Carlisle State Management Scheme”.
![Como a Primeira Guerra Mundial mudou a rotina dos pubs britânicos 3 Cartaz desestimulando o consumo de bebidas alcoólicas na segunda-feira, durante a Primeira Guerra Mundial.](https://www.cafehistoria.com.br/wp-content/uploads/2025/02/Alcohol-Featured.jpg)
Do lado de fora dos novos pubs, não havia mais publicidade nos prédios, apenas uma placa com o nome. Ao invés de espaços fechados, tudo era muito amplo e aberto, para supervisionar melhor o que acontecia no salão. Além da cerveja batizada, serviam-se refeições completas, cafés e havia salas de leitura. Era o fim dos pubs como os britânicos os conheciam?
Os frequentadores dos pubs detestaram a nacionalização, certo? Bom, parece que não. Segundo Brown, os cervejeiros, no início, não gostaram das “inovações”. Achavam que o governo estava se intrometendo demais nos negócios. Mas os pubs do Estado acabaram se tornando muito populares.
“Por alguma razão insondável, as pessoas pareciam gostar das melhores instalações, da comida e do ambiente agradável. Alguns setores do movimento pela temperança ficaram indignados, mas, ao transformar o pub em um espaço mais equilibrado, com menos foco na busca obstinada pela embriaguez, foi possível implementar o verdadeiro espírito da temperança – beber com moderação. Isso provou que, dadas as circunstâncias certas, as pessoas podiam ser confiáveis com a bebida e que isso não precisava ser prejudicial.”
Fim da guerra
Depois da guerra, o que os veteranos e qualquer outro britânico mais precisavam mesmo era de uma boa cerveja. Nada de cerveja diluída em álcool. Gradualmente, os pubs e estabelecimentos semelhantes foram voltando às suas antigas formas, seguindo as velhas regras, embora um ou outro tenha normalizado algumas diretrizes dos tempos de guerra.
Em Carlisle, os pubs montados pelo Estado ainda fizeram sucesso por um bom tempo, com alguns sobrevivendo até o início dos anos 1970. O que mostra, talvez, que é possível mexer nos pubs, mas acabar com eles, nunca!
Referências
BROWN, Pete. Man Walks Into A Pub: A Sociable History of Beer (Fully Updated Second Edition). Pan Macmillan, 2011.
KERSHAW, Roger. The Carlisle Experiment – limiting alcohol in wartime. The National Archives Blog, 15 jan. 2015. Disponível em: https://blog.nationalarchives.gov.uk/pubs-vs-first-world-war/. Acesso em: 13 fev. 2025.
HISTORIC ENGLAND. The ‘Carlisle Experiment’ – Government Takes Control of Public Houses. Historic England, [s.d.]. Disponível em: https://historicengland.org.uk/research/current/discover-and-understand/military/first-world-war-home-front/land/state-control-of-pubs/. Acesso em: 13 fev. 2025.
DUNCAN, Robert RG. Panic over the pub: drink and the First World War. 2008. Tese de Doutorado. University of St Andrews.
Como citar este artigo
CARVALHO, Bruno Leal Pastor de. Como a Primeira Guerra Mundial mudou a rotina dos pubs britânicos (artigo). In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/como-a-primeira-guerra-mundial-mudou-os-pubs/. Publicado em: 14 fev. 2025. ISSN: 2674-5917.
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