O bravo esforço daqueles que lutaram e se sacrificaram no cumprimento do dever durante a Segunda Guerra Mundial faz parte de nossa história coletiva. Ouvimos histórias de bravura, adversidade e triunfo sobre governos tirânicos. Relatos de unidades e soldados durões enchem estantes de livros, filmes e museus. Mas nem todo soldado, marinheiro, fuzileiro naval ou piloto compartilhou igualmente desse tipo de glória.
Apesar da retórica de luta pela liberdade no exterior, os afro-americanos enfrentaram preconceitos e animosidade racial dentro do próprio país e no teatro de guerra. A despeito de registrarem um número recorde de voluntários e de terem servido com honra em todos os conflitos desde a Revolução Americana, os militares negros foram tratados com severidade, tiveram facilidades negadas com base apenas na raça e a maioria só pôde ocupar papéis secundários.
A Segunda Guerra Mundial expôs muitas das disparidades e dos direitos desiguais enfrentados pela comunidade afro-americana. Tudo, desde alistamento, empregos na área da defesa e oferta de recursos adequados, lhe foi de alguma forma dificultado.
Campanha Duplo V
Muitos criticaram a hipocrisia de travar uma guerra pela igualdade quando os EUA não garantiam esses mesmos direitos aos cidadãos de todas as origens raciais. No início da guerra, vários jornais afro-americanos, como o Pittsburgh Courier, defenderam a “Campanha Duplo V” (V de vitória), pedindo um tratamento mais igualitário aos soldados negros no exterior para garantir os mesmos ideais democráticos que os EUA apoiaram na Europa contra a tirania nazista. A campanha destacou, por exemplo, os muitos riscos que os soldados negros enfrentaram e tiveram que enfrentar ao lutarem com equipamento inferior, treinamento e oficiais brancos racistas. Para a maioria dos soldados negros, os únicos empregos que lhes eram permitidos foram os de cozinheiros, motoristas de caminhão, manutenção, escriturários e outras funções não combatentes.
Muitos oficiais do Exército Branco, como Lesley McNair, no entanto, argumentaram que as unidades negras seriam unidades de combate eficazes e defenderam seu rápido emprego. Assim, unidades como o 761º Batalhão de Tanques, a 92ª Divisão de Infantaria, o 332º Grupo de Caças (Tuskegee Airmen) e a 93ª Divisão de Infantaria serviram com distinção em combate, e um punhado de homens recebeu a Medalha de Honra (embora muitos anos depois da guerra).
Contudo, as tensões raciais persistiram nos campos de treinamento e também no exterior. Na Europa, onde as leis de Jim Crow não se aplicavam, muitos militares negros ainda lidavam com preconceitos raciais de soldados e oficiais brancos, apesar de receberem as boas-vindas de civis britânicos e franceses.
Tensão racial na guerra
Em 24 de junho de 1943, ocorreu um conflito entre membros do 1511º Regimento de Intendente e a 234ª Polícia Militar que estourou em Bamber Bridge, Inglaterra. Os ingleses receberam calorosamente os regimentos afro-americanos e permitiram igual acesso às instalações – algo que lhes foi negado nos Estados Unidos. Quando alguns militares negros bebiam no Ye Olde Hob Inn, a polícia militar americana branca tentou prendê-los por não usarem os uniformes corretos em público.
A situação foi contornada, mas apenas temporariamente. Logo depois, uma briga começou e tiros foram disparados entre os dois lados. O confronto deixou uma pessoa morta e sete feridos, e os soldados negros foram acusados de motim no final do conflito. Apesar disso, muitos oficiais culparam a polícia militar branca pela violência por comportamento racista e calúnias, e o incidente levou à integração de várias unidades na Inglaterra para prevenir ocorrências futuras.
Front doméstico
A Campanha da Dupla Vitória visava não apenas a injustiça racial nas Forças Armadas, mas também no front doméstico. Com a rápida expansão do Exército e da Marinha, os empregos na área da defesa proporcionaram amplas oportunidades para todos os que não se alistaram. Muitos se mudaram para diferentes cidades para trabalhar em fábricas, estaleiros e aeroportos. Novamente, nem todos compartilharam as mesmas oportunidades. Congressistas e senadores dos estados do sul foram capazes de garantir lucrativos contratos de defesa, mas as leis locais Jim Crow sobre a segregação do local de trabalho e o afastamento dos trabalhadores negros de certos empregos ainda eram uma prática comum.
A discriminação racial na indústria de defesa foi recorrente durante a Segunda Guerra Mundial, e essas tensões às vezes se transformavam em confrontos físicos. Em resposta a essas discriminações, o presidente Franklin Roosevelt assinou uma série de ordens executivas destinadas a combater preconceitos raciais, tratamento desigual e práticas de emprego injustas. A Ordem Executiva 8802 proibiu a discriminação étnica e racial na indústria de defesa e estabeleceu o Comitê de Práticas Justas de Emprego. Apesar da orientação do governo federal, a segregação perdurou em muitas obras de defesa, mas os líderes cívicos afro-americanos viram isso como um passo à frente em direção à integração.
Os afro-americanos lutaram contra o racismo institucional com a mesma intensidade com que lutaram contra as potências do Eixo na Segunda Guerra Mundial. A campanha “Double V” resultou em um aumento do sentimento patriótico entre as comunidades afro-americanas e membros do serviço militar, mas o objetivo geral de garantir tratamento igual e acesso ainda era insuficiente.
Anos depois, o Movimento dos Direitos Civis usou muito da doutrina da campanha Double V em seus protestos e marchas por todo o sul dos Estados Unidos. O presidente Harry S. Truman integrou as Forças Armadas em 1948 com a Ordem Executiva 9981, e a última unidade totalmente negra foi dissolvida em 1954. Não importa o que eles enfrentaram no campo de batalha ou no front doméstico, os afro-americanos provaram aos seus homólogos brancos que eles conquistaram as mesmas liberdades e direitos democráticos que aqueles que foram chamados a defender na Segunda Guerra Mundial.
Esse texto foi originalmente publicado em inglês no blog Pieces of History, do National Archives, devidamente autorizado pela fonte. Tradução: Bruno Leal.
Como citar este artigo
RICHARDSON, Thomas. Vitória dentro e fora de casa: o combate à segregação nas Forças Armadas dos Estados Unidos. In: Café História. Tradução de Bruno Leal Pastor de Carvalho. Original em: Pieces of History. Publicado em 10 mai. de 2021. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/combate-a-segregacao-racial-nas-forcas-armadas-americanas/. ISSN: 2674-59.