Vinte e dois anos após o aclamado filme Cidade de Deus (2002) de Fernando Meirelles baseado no livro homônimo do autor carioca Paulo Lins de 1997 – que recebeu quatro indicações ao Oscar em 2004 (melhor diretor, melhor fotografia, melhor montagem e melhor roteiro adaptado) e que também foi indicado para o Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro – arrebanhar fãs por todo o mundo mostrando parte do dia a dia da comunidade Cidade De Deus no RJ, o canal de streaming Max, em parceria com a HBO Brasil, resolveu embarcar no trem das legacy sequels – continuações de filmes ou seriados famosos após a passagem de um tempo com um elenco formado por personagens novos e originais – que viraram mania em Hollywood nos últimos anos.
O filme de Meirelles e Kátia Lund com roteiro adaptado de Bráulio Mantovani foi retrabalhado para o formato de série e dessa vez a obra tem o nome de Meirelles (pelo menos até o momento) apenas nos créditos de produção. Já Mantovani é o criador e os episódios contam com um belo time de roteiristas, entre eles Sérgio Machado, Armando Praça, Renata Di Carmo, Estevão Ribeiro e Rodrigo Felha. A cadeira da direção é assumida por Aly Muritiba, que deixou de assumir a direção da bem-sucedida série Cangaço Novo (2023), em sua segunda temporada, para cair de cabeça no universo da comunidade carioca mais famosa do Brasil.
Como no original, temos o voice over em forma de diário de Buscapé (Alexandre Rodrigues), que mais de vinte anos após os acontecimentos do filme se tornou um premiado jornalista fotográfico e, em uma tentativa de se distanciar do seu passado, insiste que o chamem de Wilson, seu nome de batismo. Apesar disso o fotógrafo continua produzindo o mesmo tipo de material ao se arriscar em embates de grupos e facções entre si e com a polícia – o resultado de seu trabalho são imagens cruas da violência na favela e de suas repercussões diretas nos moradores, que muitas vezes se tornam vítimas do fogo cruzado, pelas quais jornais nacionais e internacionais, sedentos de sangue, pagam muito bem.
Além de Buscapé temos outros atores originais retornando à trama como Barbantinho (Edson Oliveira), que cresceu para se tornar o organizador da sociedade dos moradores e do centro comunitário onde Berenice (Roberta Rodrigues) e Cinthia (Sabrina Rosa) atuam com iniciativas como esporte e música para afastar jovens e crianças das tentações do dinheiro fácil (e da vida curta) através do crime. Do outro lado temos Bradock (Thiago Martins), que cresceu no crime e que agora tem a ambição de tirar do poder Curió (Marcos Palmeira), que um dia foi seu pai adotivo e mentor. Com a advogada de porta de cadeia Jerusa (Andréia Horta), Bradock forma uma dupla kamikaze e violenta que coloca a ambição de dominar a favela no centro dos conflitos violentos que reacendem nas vielas estreitas da Cidade de Deus.
Buscapé sempre buscou a neutralidade do observador, procurando não provocar poderosos e sem ter uma opinião aberta clara diante de toda a violência que explode em sua frente. Porém, ele acaba sendo sacudido por sua filha MC Leka (Luellem de Castro), uma moça engajada e que cobra de seu pai um posicionamento crítico em relação às imagens que registra e que vende.
Muritiba e os roteiristas foram bem-sucedidos na empreitada de captar a filmografia e a atmosfera do filme original, apesar de alguns momentos parecerem didáticos até demais com seus flashbacks, o resultado é uma homenagem e um esclarecimento sobre o contexto da história para os, imagino eu, poucos que ainda não sabiam da existência do fenômeno internacional no qual tinha se tornado o filme original de Meirelles. Porém, passada essa etapa, que ocupa boa parte do primeiro capítulo, adentramos a atualidade com a realidade de milícias que se distanciam do tráfico de drogas e geram outras relações de dependência com os moradores da comunidade, como o “gatonet”, construções ilegais, venda de gás e transportes. A escalada da violência periférica brasileira com a guinada para o crime mais pensado e organizado que se formou gradualmente nos últimos 30 anos, seus representantes e a crítica social estão no foco da série, assim como a denúncia do comportamento violento, virulento e preconceituoso de autoridades que por um lado dizem combater, mas por outro se locupletam do dinheiro do crime e do genocídio humano resultado do ataque aos mais pobres e vulneráveis.
“Cidade de Deus – A Luta Não” Para não possui grandes novidades estéticas, muitas de suas escolhas técnicas (como a tela dividida para realçar a dinâmica da cena) são bem manjadas, mas quando associadas ao filme original fazem sentido e trazem reconhecimento da obra ao público, assim como a narração quase neutra de Buscapé, que muitas vezes beira quase um audiodescrição jornalística. Em suma, é uma obra sempre necessária para um Brasil que repete suas atitudes e reforça suas mazelas em um loop que parece infinito apenas com o adicional dos avanços tecnológicos e mudanças culturais. A trilha continua sendo fantástica, contando com grandes nomes da MPB e uma boa dose de Tim Maia. Mas aqui faço também uma crítica à repetição musical que acaba dando a personagens um pano de fundo quase caricato e novelesco toda a vez que esse aparece. Variedade de sons e excelentes artistas contemporâneos é o que não nos falta por aqui para compor uma trilha sem precisarmos apelar para a música Easy de The Commodores, por exemplo.
Os novos episódios de “Cidade de Deus – A Luta Não Para” são lançados todos os domingos pela plataforma de streaming Max.