Abrir o mapa-painel da Johns Hopkins University & Medicine para acompanhar as últimas informações sobre o COVID-19, a doença causada pelo novo coronavírus (SARS-CoV2) no mundo. Essa tem sido a rotina de muita gente. A pandemia despertou uma grande curiosidade sobre os mapas com informações georreferenciadas em tempo real sobre a doença.
Em artigo publicado no periódico científico Nature Index, Jeffrey M. Perkel explicou o sucesso por trás do painel da Johns Hopkins University, uma das mais prestigiadas universidades dos Estados Unidos. Desenvolvido por Ensheng Dong, aluno de graduação do curso de engenharia civil e de sistemas, e sua orientadora Lauren Gardner, o mapa se transformou na principal fonte de informações sobre o COVID-19, e chegou a receber mais de um bilhão de visitas em um único dia. Inicialmente pensado para a comunidade científica, o mapa tornou-se viral (com o perdão do trocadilho), e sua ideia está inspirando outras universidades e entidades, publicas e privadas, a fazerem os seus próprios mapas-painéis. Uma rápida pesquisa no Google e podemos encontrar uma infinidade de gráficos e mapas produzidos por serviços públicos de saúde, universidades e jornais.
Como afirma o filósofo Byung-Chul Han, a pandemia evoca sentimentos contraditórios, “o vírus nos isola e individualiza”, nos resguardando na quarentena pensamos no nosso instinto individual mais primitivo, a sobrevivência. Por outro lado, a procura pelos mapas-painéis evidencia a globalização do vírus e nos lembra de que não somos os únicos afetados.
Neste artigo, procuro explicar como os mapas podem nos ajudar a compreender melhor o comportamento da COVID-19 (e de nós mesmos em quarentena), além de evidenciar o uso da cartografia no campo das ciências da saúde.
Pandemia, dados, mapas
A luta pelo controle do novo coronavírus não é mais exclusividade dos virologistas e epidemiologistas: ela transformou-se em campo de batalha dos especialistas em informática e macrodados, da modelagem matemática e do georreferenciamento. Diante da pandemia, as tecnologias geoespaciais estão se mostrando ferramentas essenciais para visualização dos dados, a construção de cenários, a criação de previsões e no controle do contágio através da fiscalização das quarentenas. Não podemos esquecer que todos os celulares modernos emitem informações georreferenciadas e em São Paulo, por exemplo, o governo estadual já utiliza os dados fornecidos pelas companhias telefônicas para acompanhar a efetividade das restrições.
Cada vez mais somos capazes de produzir informações e, por isso, a ciência do big data[1] cresce de forma rápida em todas as direções. Quando vemos o COVID-19 Map na internet, não imaginamos a quantidade de informações e pessoas que são necessárias para mantê-lo funcionando. A revolução dos mapas-painéis de plataformas como o ArcGIS, desenvolvido pela empresa californiana Esri, está na simplicidade com que apresenta uma quantidade gigantesca de informações através de visualizações interativas intuitivas. A complexidade da engenharia de dados que está por trás desses mapas é quase desconhecida pelo público geral, que só consome o produto final.
Todavia, a correlação entre epidemiologia e geografia não é uma invenção do século XXI. Em artigo publicado no jornal Clarín, a geógrafa argentina Carla Lois relembra a importante correlação histórica entre mapas e epidemias, “a prática de mapear as doenças, pelo menos tal como pensamos hoje, foi uma inovação do final do século XVIII. E um século depois, se converteu em uma ferramenta chave, tanto para o estudo das doenças como para o desenho de programas de saúde pública.”[2]
Alguns exemplos históricos
Um dos primeiros estudos epidemiológicos que recorreu à cartografia como ferramenta de visualização foi o desenvolvido pelo médico Valentine Seaman (1770-1817), para estudar a febre amarela em Nova York, no final do século XVIII. Recorrendo ao mapeamento dos casos, Seaman procurava encontrar a resposta para a principal pergunta feita pelos médicos: a febre era de origem estrangeira ou doméstica? Em 1804, ele publicou o estudo An Inquiry into the cause of the prevalence of the Yellow Fever in New York, onde incluiu alguns mapas para fundamentar seu argumento. O médico mapeou todos os casos conhecidos na área de New Slip, com ênfase nos casos fatais. Depois, marcou os locais de depósito de lixo e outros resíduos. Ao comparar a distribuição das duas marcações chegou à conclusão de que a febre amarela se originava e se reproduzia em locais insalubres, especialmente perto dos portos. Os pesquisadores da época não foram capazes de perceber a importância do mosquito na transmissão da doença, mas identificaram o seu local de reprodução, o que ajudou o Comitê de Saúde de Nova York a promover a urbanização e a limpeza das áreas portuárias, a fim de livrar a cidade da doença.
O mapeamento de doenças mais emblemático foi o realizado pelo inglês John Snow (1813-1858) ao estudar o comportamento da cólera em Londres, em 1855. O livro O Mapa Fantasma, de Steven Johnson, conta muito bem essa história. Um surto da doença atingiu o distrito de Soho e para entender o porquê da concentração da doença naquele local, Snow decidiu mapear os dados que coletou de uma forma diferente. Cada incidente fatal foi representado com uma barra preta e cada bomba de água pública com um ponto. Nas casas onde registravam casos múltiplos, as barras eram empilhadas formando um infográfico sobre a incidência e distribuição da doença. Analisando os dados geograficamente dispostos, Snow percebeu que quase todas as mortes ocorreram a uma curta distância da bomba de água de Broad Street, por isso sugeriu que a bomba fosse inutilizada. Com essa medida experimental, os casos deixaram de se propagar, confirmando as suspeitas de Snow de que a Cólera era transmitida através da água contaminada. Sua descoberta refutou completamente a crença de que a doença se espalhava pelo ar (teoria miasmática) e ainda ajudou a cidade a projetar novas políticas urbanas e de saúde pública. Além disso, seu mapa representou um marco na história do mapeamento das doenças, pois foi pioneiro em trabalhar com dados de forma gráfica, geográfica e histórica.
No século XX, o Brasil enfrentou diversas epidemias como tuberculose, febre amarela, peste bubônica e a gripe espanhola, e a cartografia foi uma importante ferramenta para o entendimento e controle dessas doenças. Um dos primeiros registros cartográficos sobre epidemias foi o realizado em 1904, pelo médico sanitarista Victor Godinho (1862-1922), sobre a peste bubônica no Maranhão. Com o objetivo de conhecer a distribuição espacial da peste, Godinho publicou uma Carta Epidemiológica da Peste que mostra a expansão da doença por todo o centro urbano de São Luís.
Entre 1923 a 1939 a Fundação Rockfeller atuou no Brasil contribuindo para as pesquisas sobre a febre amarela. A descoberta do ciclo silvestre da doença, em 1932, intensificou as pesquisas sobre os prováveis vetores e hospedeiros e sua distribuição geográfica. Nessa busca, a Fundação produziu um enorme acervo, que pode ser consultado no Acervo da Casa de Oswaldo Cruz, com cerca de 15 mil fotos, gráficos, desenhos, mapas aéreos e temáticos que municiaram a organização das práticas sanitárias de combate da doença.
Prática difundida
Atualmente a conjugação entre banco de dados sobre doenças e mapas é uma prática altamente difundida entre os pesquisadores da saúde. Inclusive no Brasil, o SUS (Sistema Única de Saúde) desenvolveu sua própria metodologia, o chamado Mapa da Saúde, composto pelo GeoSaúde – o sistema de georreferenciamento de dados – e a Análise em Saúde.
A curiosidade sobre os mapas do COVID-19 também revela o interesse pela ciência. Em um momento de disputa, especialmente no Brasil, entre o discurso negacionista e o discurso científico, a produção de mapas com dados sobre a pandemia transformou-se em fonte de fácil entendimento para a população, uma maneira rápida e interativa de entender a expansão do vírus. Também é uma mostra da sede por informações e de como os mapas estão cada vez mais inseridos no cotidiano da população.
Se no século passado os mapas da saúde eram exclusivamente feitos para os especialistas, hoje eles são ferramentas de informação em massa.
Notas
[1] Nome dad a área do conhecimento que estuda como tratar, analisar e obter informações a partir de conjuntos de dados grandes demais para serem analisados por sistemas tradicionais.
[2] “La práctica de mapear enfermedades, al menos tal como la pensamos hoy, fue una innovación de finales del siglo XVIII. Y un siglo después, se convirtió en una herramienta clave, tanto para los estudios de enfermedades en medicina como para el diseño de programas de salud pública.”
Referências Bibliográficas
KILLINGSWORTH, Lauren B. Mapping Public Health in Nineteenth-Century Oxford. The Portolan: Journal of the Washington Map Society. 101, Spring, 2018, p.7-21
JOHNSON, Steven. O mapa fantasma. Como a luta de dois homens contra a cólera mudou o destino de nossas metrópoles. São Paulo: Zahar, 2008.
Nardi SMT, Paschoal JAA, Pedro HSP, Paschoal VDA, Sichieri EP. Geoprocessamento em Saúde Pública: fundamentos e aplicações. Rev Inst Adolfo Lutz. São Paulo, 2013; 72(3):185-91.
IBIAPINA, Érico e BERNARDES, Anita. O mapa da saúde e o regime de visibilidade contemporâneo. Saúde Soc. São Paulo, v.28, n.I, p.322-336, 2019.
BEZERRA, Mariza Pinheiro. O tanatopoder e as epidemias: discurso civilizador e saúde pública no centro urbano de São Luís no início do século XX / Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Maranhão, Programa de Pós-Graduação Cultura e Sociedade, 2012.
COSTA ZGA, et al. Evolução histórica da vigilância epidemiológica e do controle da febre amarela no Brasil. Rev Pan-Amaz Saude 2011; 2(1):11-26.
Como citar este artigo
RODRIGUES, Carmem Marques. Colocando o coronavírus no mapa: a cartografia a serviço das ciências da saúde. In: Café História – história feita com cliques. Publicado em 18 mai. 2020. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/cartografica-do-covid19/. ISSN: 2674-59.