Foi uma ausência nas aulas de história que chamou a atenção da professora Andreia Costa Souza: onde estariam os conteúdos escolares dedicados às mulheres negras? Esse silenciamento presente em muitos livros didáticos de história e nas práticas docentes de um modo geral se transformaram em combustível para Souza realizar sua pesquisa para o mestrado profissional em História, o ProfHistória.
Como parte da dissertação “Ensino de História e mulher negra: um olhar interseccional sobre as percepções de estudantes em Conceição do Araguaia-PA”, defendida em 2020, na Universidade Federal do Tocantins, a professora desenvolveu a cartilha “Mulher Negra e Ensino de História: formação para o ensino das relações étnico-raciais e de gênero”. Nela, a historiadora propõe 8 oficinas que pretendem ajudar outros docentes a mobilizar os desafios e conquistas das mulheres negras na história brasileira.
Souza desenvolveu todas as 8 oficinas da cartilha em uma escola em que atuou no interior do Pará e que costuma receber estudantes de áreas rurais. Nessa escola, a professora escolheu uma turma de 8º ano considerada pelo corpo docente como “bastante indisciplinada” para aplicação do projeto. Apesar do contexto desafiador, o desenvolvimento das oficinas foi um grande sucesso e, agora, a professora espera que a experiência possa ser replicada em outras escolas, por outros professores
As oficinas
A primeira oficina é dedicada a uma conversa com a turma. Nessa conversa, a professora explicou aos alunos o que era o projeto e quais seriam os temas abordados nas oficinas, como o machismo e o racismo. Nesse papo, a professora também solicitou que os estudantes realizassem uma “microbiografia” de si e a compartilhassem com o grupo. Essa atividade foi relevante, segundo explicou Souza, para estabelecer uma aproximação com os estudantes.
Na segunda oficina, “Imaginando a África”, a professora convidou os estudantes a registrarem as primeiras palavras que vinham à cabeça quando pensavam no continente. As respostas mais recorrentes foram “fome”, “pobreza”, “doenças” e “animais”. A fim de desconstruir essa visão limitada e estereotipada do continente, a professora discutiu a pluralidade africana, mostrando que o continente é formado por países diferentes na política, nos hábitos, na cultura e no desenvolvimento econômico e industrial.
Na terceira oficina, Souza trabalhou o funk “Não foi Cabral”, de autoria da MC Carol de Niterói. Na letra da música, o eu-lírico provoca uma professora de História afirmando que não foi Pedro Álvares Cabral quem “descobriu” o Brasil. A funkeira desataca que populações indígenas já se encontravam nas Américas quando houve a chegada dos europeus e elenca os pontos negativos desse encontro. Além disso, MC Carol chama atenção para líderes quilombolas como Zumbi e Dandara.
Souza utilizou essa música para provocar os estudantes: quando eles aprenderam História do Brasil na escola tiveram contato com a perspectiva retratada na letra? Como a maioria das respostas foi negativa, a professora conversou com os estudantes a respeito dos autores dos livros didáticos e dos recortes por eles selecionados. Nessa etapa da oficina, Souza ainda chamou atenção para o fato de tais seleções priorizam as histórias dos homens brancos em detrimento de outras narrativas.
Nas demais oficinas, a professora trabalhou os conceitos de gênero e raça, mulheres negras inspiradoras, expressões racistas, o significado do racismo, cartazes temáticos e avaliação. Os professores que desejam conhecer o material na íntegra e aplicá-lo em sala de aula, podem baixar gratuitamente a dissertação e a cartilha aqui.
Silenciamento ainda é marca de materiais didáticos
De acordo com a professora, a maioria dos livros didáticos no Brasil ainda reserva pouco espaço para a História Afro-brasileira. E mesmo quando o tema aparece, quase sempre está relacionado ao período escravista e pela ótica do sofrimento. Quando se trata das mulheres negras, segundo a autora, a visibilidade é ainda menor.
Ao se utilizar de uma perspectiva teórica interseccional, a professora destaca que as mulheres negras sofrem as consequências do racismo e do machismo de forma imbricada. Isso quer dizer que as mulheres negras se encontraram em um “não-lugar” no Movimento Feminista e, por isso, precisaram levantar o debate racial para se fazerem ouvidas. Já no Movimento Negro, elas tiveram que levantar o debate de gênero.
Se historicamente a luta dessas mulheres por espaço e visibilidade gerou uma série de conquistas não apenas para as mulheres negras, mas para a sociedade como um todo, Souza percebe a ausência dessas histórias em sala de aula como um problema. No decorrer de sua pesquisa, a professora se engajou na busca por levar a temática à sala de aula ao apresentar mulheres negras pela ótica de suas potências e conquistas.
Segundo Souza, é essencial que as atividades abordadas na educação das relações étnico-raciais tenham como ponto de partida a escuta sensível das vozes estudantis. As percepções dos estudantes sobre o machismo e o racismo, como a historiadora apresenta em sua pesquisa, podem ser um primeiro passo para a ampliação do repertório de professores e estudantes sobre a temática. Afinal, de acordo com a autora, o “não saber” possui um papel fundamental na formação de professores e estudantes na busca por uma educação mais inclusiva e menos excludente.