Em entrevista exclusiva, Cristian Brayner discute os desafios de seu ofício à luz da Teoria Social, bibliotecas no Brasil e muito mais.
Entrevista por Bruno Leal
Quando falamos do campo da Biblioteconomia, não podemos ignorar a importância da questão técnica e dos padrões de tratamentos das fontes, bem como dos serviços e produtos – sobretudo em um mundo que tem sido transformado pelas novas tecnologias. No entanto, Cristian Brayner, nosso entrevistado, diz que precisamos “pôr sob permanente suspeita a independência da técnica frente à teoria social”. Em outras palavras, mais do que sistemas de classificação, a Biblioteconomia é uma atividade social e como tal, deve ser pensada em sua relação com a sociedade, a cultura e o poder. “O envolvimento ideológico da biblioteca é comprovado tanto pelas labaredas de fogo que dão cabo às suas fontes, quanto pela diligência por parte do Estado em construir edifícios nababescos para abrigarem a sua memória”, afirma Brayner.
Nos últimos anos, Brayner tem sido um dos mais engajados pensadores da Biblioteconomia no Brasil, autor de diversos artigos e entrevistas sobre o campo. Ele é também articulista da Biblioo – Cultura Informacional, da Revista Carta Capital. Doutor em Literatura pela Universidade de Brasília, foi diretor do Departamento de Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas do Ministério da Cultura. Recentemente foi agraciado com o Prêmio Casa de Las Américas e atua como bibliotecário na Câmara dos Deputados. Em entrevista exclusiva ao Café História, Brayner fala sobre os atuais desafios da Biblioteconomia e das bibliotecas no Brasil. Confira!
Bruno Leal: Como você enxerga a relação entre Biblioteconomia e História?
Cristian Brayner: Encaro a História como uma narrativa das subjetividades. Enquanto história-relato, destinada a contar o que foi visto e sentido, ela se erige por meio de uma seleção prévia de fontes acondicionadas em depósitos físicos e digitais, e alçadas à condição de documentos. Nesse sentido, a biblioteca é o locus privilegiado da forjatura dessa história-testemunhal, não apenas por ser um equipamento destinado a coletar e a disseminar vozes múltiplas, mas, também, por estar empenhada em invisibilizar narrativas consideradas impróprias ou inadequadas, silenciando, total ou parcialmente, sujeitos e coletividades. Sua topografia reflete a estrutura de poder vigente, subordinada às entidades políticas e aos saberes hegemônicos. Desse modo, a biblioteca possibilita ao historiador construir narrativas geminadas, tanto pelo que se é encontrado em suas estantes, salões e corpos, quanto por suas lacunas físicas e simbólicas.
Gostaria de me debruçar sobre duas relações mais específicas, uma pretérita, outra atual. A Biblioteconomia, nos oitocentos, sofreu um curioso processo de apropriação, tornando-se uma espécie de serva da História. Frédéric Mauro compreendeu esse fenômeno de vassalagem como sendo uma estratégia destinada a atribuir cientificidade à História. Vale ressaltar que essa relação, ainda que subordinativa, beneficiou a Biblioteconomia ao lhe outorgar, por certo tempo, status de ciência auxiliar. Acredito que a solidez dessa aliança se deu em virtude do enorme sucesso do aforismo de Leopold von Ranke entre os historiadores: Will bloss zeigen wie es eigentlich gewesen ist (“Apenas mostrar como realmente aconteceu”). Afinal de contas, dentro dessa perspectiva, como recuperar a pretensa verdade histórica sem recorrer às fontes custodiadas pelo bibliotecário?
Sinceramente, não me parece que os atores da Biblioteconomia contemporânea se sentiriam satisfeitos em encará-la como disciplina submetida ao saber histórico. Contudo, se é verdade que a sensatez tenha cassado o título de “ciência” atribuído à Biblioteconomia pela História, ela não perdeu seu ranço tecnicista. Isso justifica o investimento pesado em taxonomias no trato com os seus acervos e públicos, em especial a partir da segunda metade do século XIX. Isso se deve, em parte, ao abandono da matriz curricular de forte inspiração humanista, baseado na École des Chartes. Em prol de um acervo de livre acesso, os bibliotecários brasileiros dito “progressistas”, abraçaram, sem reservas, o modelo norte-americano. E cá estamos nós, ansiosos com o lançamento da nova edição da CDD1 e preocupadíssimos com a morte prenunciada da AACR2.2 Do bibliotecário erudito restaram as cinzas.
[perfectpullquote align=”right” bordertop=”false” cite=”” link=”” color=”” class=”” size=””]A biblioteca possibilita ao historiador construir narrativas geminadas, tanto pelo que se é encontrado em suas estantes, salões e corpos, quanto por suas lacunas físicas e simbólicas.[/perfectpullquote]
Não se trata, evidentemente, de negar a importância dos padrões de tratamento das fontes e de construção de serviços e produtos, mas de pôr sob permanente suspeita a independência da técnica frente à teoria social. Esse temor não é recente. Lee Pierce Butler, professor de Biblioteconomia da Universidade de Chicago, já denunciava essa postura, em 1933: “Ao contrário de seus colegas de outros campos de atividade social, o bibliotecário é estranhamente desinteressado pelos aspectos teóricos de sua profissão. O bibliotecário é o único a permanecer na simplicidade de seu pragmatismo.” Aquele “gosto exclusivo pelo real e pelo útil”, tão apregoado por Auguste Comte, nos afetou profundamente. Esse divórcio entre teoria e técnica, também denunciado por Ortega y Gasset, introduziu o bibliotecário num estado de alienação, fragmentando tudo o que ele toca, como se o atuar não estivesse associado ao pensar.
Nesse cenário, penso que a História pode prestar um serviço para a Biblioteconomia, contemporizando a palavra, sua matéria-prima, desvendando suas cores e nuances. Não se trata de uma tarefa fácil. O culto respeitoso à verdade circunscrita às fontes e a modos particulares no trato documental arrefece o interesse coletivo em compreender as mecânicas de representação dos conteúdos. Há, inclusive, focos de resistências na superação da ideia de imparcialidade discursiva, como se a palavra, materializada em verbetes, números de chamada e taxonomias, não implicasse, em si mesma, num compromisso político. O envolvimento ideológico da biblioteca é comprovado tanto pelas labaredas de fogo que dão cabo às suas fontes, quanto pela diligência por parte do Estado em construir edifícios nababescos para abrigarem a sua memória. As duas faces da mesma moeda. Estou convencido de que as narrativas históricas podem diluir os dogmas do tecnicismo canhestro por meio do cruzamento das memórias, colaborando com o bibliotecário ao subjetivar seus modos de “fazer biblioteca”, levando-o a experenciar a técnica enquanto “agir produtivo na sua integridade.”
Burno Leal: Em 2015, o Ministério da Cultura (MinC) lançou uma plataforma muito interessante na qual é possível encontrar, no mapa do Brasil, as mais de 6 mil bibliotecas públicas (municipais e estaduais) e comunitárias identificadas no Cadastro Nacional de Bibliotecas e que integram o Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas (SNBP). Como você avalia as recentes políticas públicas do Brasil para as bibliotecas?
Cristian Brayner: O mapa ao qual você fez menção é prova de que algo tem sido feito na esfera federal. De todo modo, vale esclarecer que a letargia conscienciosa é política pública. Se, por exemplo, o atual Ministro da Cultura, Sérgio Sá Leitão, privilegiar a indústria cinematográfica, como me parece estar fazendo, ele poderá, ao final de 2018, afirmar, serenamente: “Desenvolvi políticas públicas para as bibliotecas brasileiras ao ignorá-las.”
De todo modo, observo que, nos últimos anos, o Brasil avançou, particularmente no campo da política pública regulatória. Ressalto, sobremaneira, a aprovação da Lei nº 12.244/2010, que dispôs sobre a obrigatoriedade da biblioteca em todas as escolas públicas e privadas do país. Essa medida, se cumprida até o prazo estabelecido pelo legislador, a saber, dia 24 de maio de 2020, fomentará hábitos permanentes quanto ao uso das fontes de informação.
Embora defenda a Lei supramencionada, reconheço que o legislador se equivocou ao estabelecer um único indicador, a saber, a quantidade de livros por número de alunos matriculados. Biblioteca envolve, além das coleções, tecnologia, produtos, serviços, processos e regulamentos. Biblioteca envolve, ainda, profissionais, e o Brasil não possui bibliotecários suficientes para atender a demanda futura. Nesse sentido, é importante que o Ministério da Educação protagonize uma ação em prol do estabelecimento de padrões mínimos, garantindo, assim, que a universalização das bibliotecas escolares se vincule, permanentemente, à qualidade. Recentemente, participei de uma audiência pública na Comissão de Educação da Câmara dos Deputados para discutir a matéria. Propus ao FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação) a criação de um grupo de trabalho destinado a estabelecer estes parâmetros. Aguardemos.
Ainda no domínio regulatório, será necessário descascar, mais cedo ou mais tarde, um abacaxi enorme: a precariedade da memória bibliográfica nacional, tanto em relação à sua preservação quanto à disseminação. Recentemente, a historiadora Georgete Medleg, juntamente com outro pesquisador da Universidade de Brasília, Carlos Henrique Juvêncio, publicaram um artigo em que pontuaram os graves problemas enfrentados pela Fundação Biblioteca Nacional (FBN), entidade responsável pela preservação de nossa memória bibliográfica. Embora reconhecendo o impacto negativo das limitações orçamentárias enfrentadas pela direção da FBN no cumprimento da missão a qual está legalmente investida, os dois pesquisadores apontaram outro aspecto que, embora estruturante, tem sido ignorado pela FBN: o descumprimento da Lei nº 10.994/2004, que dispõe sobre o depósito legal de publicações, na Biblioteca Nacional, e dá outras providências.
De fato, desde a sua promulgação, há 13 anos, a chamada Lei do Depósito Legal vem sendo desrespeitada em vários aspectos. Primeiro, por não haver controle quanto ao cumprimento do depósito das obras por parte dos impressores no prazo legalmente estabelecido, a saber, 30 dias após a sua publicação. Segundo, por não haver cobrança de multa a quem não efetuar o depósito, o que, de fato, não pode ocorrer, já que a mesma nunca foi regulamentada. Embora o legislador tenha estabelecido no teor da própria Lei o prazo de 90 dias para que o Poder Executivo o fizesse, 13 anos se passaram. Terceiro, pela Bibliografia Nacional não ser editada há dez anos. Quanto a esse último problema, se ligarem para a FBN, dirão, sem ruborizar, que a bibliografia nacional foi substituída pelo catálogo eletrônico que, simplesmente, não te possibilita, sequer, gerar, uma lista anual das fontes depositadas. Esse quadro catastrófico justifica o tom incisivo adotado pelo Medleg e Juvêncio:
A BN [Biblioteca Nacional] coopera com a invisibilidade do livro ao não exercer suas missões, ao não “difundir os registros da memória bibliográfica e documental nacional”; ao atuar, em parte, como “centro referencial de informações bibliográficas”; ao não atuar “como órgão responsável pelo controle bibliográfico nacional”; ao não “assegurar o cumprimento da legislação relativa ao depósito legal”; e ao não compreender a diferença entre um catálogo e uma bibliografia. […] É notório, e reiteramos, o descaso com a Nacional, mas, por sua vez, ela mesma é ativa no descaso com que trata o ‘Nacional’, os registros de memória da produção intelectual brasileira. […] É necessário despir-se da soberba e entender que o ‘Nacional’ que ela representa hoje está bem aquém do Nacional que o Brasil é, mesmo em termos bibliográficos.
O que fica claro é que o fim do descaso em relação à nossa memória passa, necessariamente, pela regulamentação da Lei do Depósito Legal. Por se tratar de um assunto de enorme relevância aos historiadores, creio que vocês podem colaborar, sobremaneira, com o debate.
Fiz questão de elencar duas medidas regulatórias claramente possíveis de ser realizadas porque, não raramente, a discussão em torno das políticas públicas para bibliotecas tende a emperrar sob a justificativa de não haver dinheiro para a efetivação das ações. Ao jogarmos luz sob compromissos legalmente firmados – universalização das bibliotecas escolares e preservação efetiva da memória bibliográfica nacional – abrimos canais de negociações com os gestores públicos para que as políticas públicas distributivas se concretizem.
Bruno Leal: Em agosto deste ano, você pediu exoneração do cargo de diretor do Departamento de Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas (DLLLB). Por quê?
Cristian Brayner: Durante os nove meses que estive à frente do DLLLB, enfrentei quatro ministros. O convite foi feito pelo Ministro da Cultura Marcelo Calero que, em nossos dois únicos encontros, foi bastante empático, manifestando interesse em instalar bibliotecas nos subúrbios do país. Ele ficou animado quando mencionei o Projeto de Lei nº 2.831/2015, que torna obrigatória a instalação de biblioteca nos projetos de conjuntos habitacionais financiados pelo governo federal. Ironicamente, fui nomeado no dia em que o ele pediu exoneração.
Aí assumiu o Roberto Freire que, em seu curto espaço frente à pasta, priorizou, em palavras e ações, a leitura e as bibliotecas. Semanalmente, durante os despachos, ele ressaltava a necessidade de se investir em bibliotecas, justificando ser o equipamento cultural com maior capilaridade nacional. Trabalhamos muito! Desenvolvemos 28 ações, todas elas alinhavadas aos quatro eixos do Plano Nacional do Livro e Leitura. A título de ilustração, cito a criação do Prêmio Literário Ferreira Gullar; a elaboração de um projeto para a reconstrução da Biblioteca Demonstrativa de Brasília, separando um valor considerável para a empreitada; as ações destinadas a distribuir entre as bibliotecas públicas e comunitárias cerca de quinhentos mil livros armazenados no prédio anexo da FBN; a formação de uma biblioteca brasilianista na Casa de Las Américas, em Cuba; a indicação vitoriosa do Brasil como sede do Estágio do Iberbibliotecas; a autorização por parte da Academia Sueca de o Ministério da Cultura indicar, a partir de 2017, um escritor ou escritora para a disputa do Prêmio Nobel de Literatura; a criação de um Grupo de Trabalho encabeçado pela FBN para produzir uma minuta de decreto regulamentando a Lei do Depósito Legal, mas que, lamentavelmente, por malemolência de alguns, foi suspenso.
A empatia demonstrada pelo Ministro Freire fez com que diversas ações se desenvolvessem, apesar da escassez de dinheiro. Ao retomar o seu mandato de deputado federal, a penúria do DLLLB, já deflagrada com a sua alocação ao nível mais baixo da estrutura orgânica do MinC, se agravou: primeiro, em virtude dos cortes orçamentários contínuos; segundo, em decorrência de uma crise orgânica, fruto de uma disputa patética protagonizada por duas Secretarias do Ministério da Cultura.
De volta à Câmara, o que me resta é torcer para que o DLLLB não esteja sendo conduzido a partir da lógica da descontinuidade, numa tentativa clientelista e personalista de se apagar ações e invisibilizar atores que passaram por lá. Quem ganha com a prática do bom senso? Toda a sociedade brasileira.
Bruno Leal: Nas redes sociais, você tem lembrado bastante que a Lei 4.084/1962 estabelece que administrar biblioteca é competência exclusiva do bibliotecário. Porém, nem sempre são os bibliotecários que estão à frente das bibliotecas. Por que isso acontece? Será que a mencionada lei está sendo interpretada de forma diferente? Ou será que isso se deve a questões de ordem mais prática, como, por exemplo, dificuldades na contratação deste tipo de profissional?
Cristian Brayner: A gestão de bibliotecas é competência exclusiva do bibliotecário. É o que reza o ordenamento jurídico brasileiro. E para a regra não há exceção. Longe de ser mero corporativismo, trata-se de uma estratégia destinada a garantir a todo cidadão acesso a bibliotecas de qualidade.
O fato é que muitas bibliotecas continuam sendo dirigidas por gente inabilitada. E isso se deve, fundamentalmente, a duas posturas fortemente enraizadas na cultura brasileira. A primeira delas, a política de favores que, no caso da biblioteca, é agravada pelo seu baixo prestígio. De fato, na hora de fatiar o bolo, a biblioteca, quase sempre desvalida em méritos na estrutura orgânica, costuma ficar por último, sendo entregue de bandeja a correligionários de formação medíocre ou duvidosa. É terrível constatar que a biblioteca se tornou prêmio de consolação. Foi essa lógica hedionda que justificou a nomeação de um agrônomo para administrar a biblioteca de um importante Tribunal Superior.
Outro caso representativo é o da Fundação Biblioteca Nacional, a maior biblioteca do país, atualmente gerenciada por uma advogada. Aqui não se trata de personalizar a discussão, culpando quem assumiu o cargo, até porque esse quadro insólito, de flagrante desobediência ao ordenamento jurídico, não se iniciou no governo atual. De fato, há mais de 30 anos que o gabinete principal da Biblioteca Nacional não é ocupado por um bibliotecário, embora saibamos que a discricionariedade garantida ao administrador público não lhe dá o direito de ignorar os pressupostos exigidos pela Lei já citada. Acho pouco provável que esse quadro banalizado se deva à ignorância dos nossos oito últimos Presidentes da República.
Defendo que, além das medidas judiciais, o Conselho Federal de Biblioteconomia atue na esfera política, convencendo o morador do Alvorada a nomear um bibliotecário para o cargo. Quem sabe uma lista tríplice, aos moldes dos operadores do Direito? Creio que, após mais de um século da criação da primeira escola de Biblioteconomia, o país possua gente gabaritadíssima para assumir o posto citado, inclusive entre os bibliotecários da própria Biblioteca Nacional.
O segundo ponto que me parece nevrálgico ao tratar do descumprimento da Lei nº 4.084/1962 é o desprezo das autoridades públicas quanto à biblioteca escolar. Minha esperança em relação a um Brasil decente passa pelo ambiente escolar. Mas o que estão fazendo com as bibliotecas escolares? A geografia destinada a fomentar a cidadania de crianças e adolescentes por meio do treinamento das habilidades informacionais, se converteu em oásis terapêutico para tipos patológicos, ou seja, professores readaptados, muitos deles sofrendo de transtornos psiquiátricos graves. Infelizmente, essa prática tem sido recorrente em diversas regiões do país. Em alguns casos, o destrato tem alcançado níveis alarmantes, a ponto de o professor readaptado auferir, em portaria assinada pelo Prefeito do Município, o título de bibliotecário.
Pergunto-me: o que leva um agente público legitimar esta ilegalidade? Penso que Edson Nery da Fonseca, em 1982, respondeu a essa questão da seguinte maneira: “De modo geral, as autoridades brasileiras (governamentais e universitárias) não reconhecem a importância das bibliotecas porque elas próprias não se beneficiaram de bons serviços bibliotecários.” Não tenho porque duvidar de Nery. Afinal, nossas autoridades, antes de ocuparem as tribunas e os parlatórios, frequentaram os bancos escolares, deparando-se, tantas vezes, com salas horrendas e soturnas apelidadas de bibliotecas, e guardadas a sete chaves por “tias”.
Além disso, ao contrário do hospital ou do tribunal, espaços estes erigidos e destinados a reordenar o corpo físico e social, a biblioteca, no imaginário de nossos prefeitos e secretários de educação, é o locus por excelência da inação. Desse modo, se é esperado da parte do médico ou do magistrado a destreza em proferir a verdade destinada a sanar um conflito, o que pressupõe o fazer falar, espera-se do professor readaptado, vulgo “bibliotecário”, apenas algum nível de habilidade em preservar o silêncio, garantindo-lhe, quem sabe, recuperar certo nível de sanidade perdido na sala de aula barulhenta. É triste observar que o amadorismo na biblioteca escolar tenha crescido e ganho feições de legitimidade, trazendo prejuízos para um país em que, apenas, 8% da população é plenamente alfabetizada.
Enfim, essas duas práticas – a partidarização das bibliotecas por meio da designação de indicados políticos e a patologização da biblioteca escolar – representam, no fundo, uma ameaça única: desqualificar a Biblioteconomia e, consequentemente, o equipamento cultural biblioteca. Não deixa de ser curioso observar que, se os historiadores dos oitocentos nos ofereciam coroas de louros, a burocracia moderna tende a esvaziar nosso papel, relativizando a necessidade de bacharéis em Biblioteconomia nas bibliotecas e, em certos casos, justificando esse discurso em virtude do número insuficiente de bibliotecários. Ora, se o problema é falta de profissionais, que se multipliquem os cursos de Biblioteconomia no Brasil
As bibliotecas financiadas com dinheiro público, e aqui eu incluo também a Biblioteca Nacional, permanecerão sob ameaça enquanto deputados e governadores continuarem chamando a “tia da biblioteca” de “bibliotecária”, e conceberem a biblioteca como espaço terapêutico. Embora essas autoridades costumem adotar, em solenidades, um tom laudatório às bibliotecas, não costumam deixar de indicar compadres e docentes adaptados para dirigi-las. O que nos resta é se valer da palavra. Afinal de contas, como diz Miguel de Unamuno, “há momentos em que silenciar é mentir.”
Bruno Leal: O desenvolvimento tecnológico nos últimos anos provocou uma série de transformações nas bibliotecas: a digitalização de acervos, o tagueamento de objetos digitais, os algoritmos usados em sistemas de busca, a introdução do computador e da Internet em espaços onde antes predominavam o papel e o microfilme. Tudo isso passou a fazer parte do vocabulário corrente dos(as) bibliotecários(as). Como isso tem impactado na função social da biblioteca? E mais: como você acha que as bibliotecas estão se preparando para lidar com o gigantesco volume de objetos digitais?
Cristian Brayner: Você elencou algumas transformações nas bibliotecas provocadas pela tecnologia digital. Quanto à digitalização, é admirável constatar a possibilidade de se consultar os maiores acervos bibliográficos do mundo no sofá de casa, o que antes só era possível dirigindo-se ao prédio da biblioteca. Desenvolvi parte considerável da minha pesquisa de doutorado na Biblioteca Nacional da França sem ter pisado os pés em Paris. Contudo, noto que muitas instituições de memória ainda têm uma visão da biblioteca digital somente enquanto mímesis da biblioteca física. Assim, escaneamos milhões de páginas, sem nos preocuparmos em apresentar essa massa documental de maneira inteligente, o que envolveria o uso das ferramentas Web 2.0. O que torna a biblioteca digital particularmente interessante é a oferta de uma série de mecanismos destinados a facilitar o uso dessas informações através de novas ferramentas de trabalho. Por exemplo, o OCR (Reconhecimento de Caráter Ótico), na maioria das vezes, tem sido utilizado apenas como facilitador de buscas de palavras, quando, na verdade, ele oferece maior potencial de uso, como a mineração de texto e a extração de palavras para análise de frequência semântica.
Durante o meu pós-doutorado em História, enfrentei uma via crucis na recuperação das caricaturas produzidas por Angelo Agostini, publicadas nos jornais do Império. É que a Hemeroteca Digital Brasileira, embora abarque um universo impressionante, não oferece um instrumento inteligente de busca. Isso poderia ser solucionado por meio do uso de OCRs, como já tem sido feito por algumas instituições. A British Library, por exemplo, tem adotado os OCRs para identificar e extrair imagens de seus acervos físicos, construindo, assim, bancos de dados iconográficos.
A prática da folksonomia, através da etiquetagem (tagueamento), garante a interatividade entre o usuário e a informação, possibilitando o enriquecimento dos catálogos institucionais. Plataformas que possibilitam busca integrada em catálogos bibliográficos se beneficiam dessas ações, como é o caso do WorldCat. Esse novo modo de tratamento ainda não tem sido explorado de forma muito expressiva no Brasil, isso talvez porque as bibliotecas brasileiras ainda não encarem a folksonomia como mais-valia, tanto para os usuários quanto para as bibliotecas, mas como ameaça ao controle linguístico. Isso gera alguma resistência em relação a esses novos modelos de tratamento informacional em ambientes digitais.
A serendipidade, esse encontro inusitado, não agendado, entre o indivíduo e um componente informacional, é um fenômeno recorrente na era digital. Nesse sentido, o uso de algoritmos é uma prática destinada a auxiliar o usuário a reconhecer as suas próprias necessidades. Embora as livrarias brasileiras estejam recorrendo aos algoritmos há um bom tempo, isso ainda é tímido em relação aos catálogos de nossas bibliotecas.
Penso que o uso massivo dessas ferramentas no espaço das bibliotecas passa, necessariamente, pela discussão a respeito das fronteiras simbólicas erigidas entre os atores envolvidos na produção, representação e consumo da informação. Talvez tenhamos passado da hora de investirmos na adoção de práticas cooperativas destinadas a enriquecer as nossas ferramentas e acervos.
Bruno Leal: Você está prestes a lançar um novo livro, “A Biblioteca de Foucault”. Fale um pouco sobre a proposta do livro: o que você busca discutir nele?
Cristian Brayner: Contam que a assistente de Husserl, Edith Stein, em férias na Baviera, ao procurar na biblioteca dos Conrad-Martius, seus anfitriões, algo interessante para ler, deparou-se com a autobiografia de Teresa de Jesus. Apaixonada pela “mulher inquieta, errante, desobediente e contumaz”,3 Edith, até então ateia, se converte ao catolicismo, buscando o refúgio do claustro. Com Foucault, tive uma experiência aos avessos. Era um jovem bibliotecário. Antes da leitura de sua aula inaugural no Collège de France, creditava à biblioteca os atributos de continuidade e universalidade. Não vislumbrava outro caminho aceitável senão o do sujeito racional plasmado por Descartes, Galileu e Bacon.
Foucault me desarranjou. Aprendi com ele não haver entidades supra-históricas. Passei a suspeitar de saberes, objetos, métodos e sujeitos perenes. Se o discurso é instrumento de desejo e, ao mesmo tempo, de poder, não podia encarar a biblioteca como espaço franco e neutro, alheia aos conflitos e motins, mas sim como um dos equipamentos onde o poder tem feições terríveis ao ser exercido quase sempre de forma dissimulada. A cada periódico indexado, a cada atendimento no balcão, fui observando que a biblioteca, com seus ditos e não ditos, esteve profundamente comprometida com um regime histórico de produção de verdades destinado a preservar uma ordem de coisas.
O livro nasceu daí, dessa experiência. Tenho por pretensão analisar a biblioteca como forma histórica de poder, forjada em função do advento do homem. Afinal, “antes do fim do século XVIII, o homem não existia”, disse Foucault em “As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas”. Preocupei-me em compreender como as bibliotecas foram se erigindo e atuando como equipamento burguês, tendo por fim último produzir corpos dóceis e úteis. A maximização dessas forças corpóreas destinadas a garantir o máximo rendimento pressupõe, certamente, um investimento em técnicas de controle, de vigilância, de delimitação de espaço e de tempo, bem como ao culto de determinadas práticas, como o silêncio. Essas estratégias docilizadoras me interessam, particularmente.
O bibliotecário tem se comprometido com uma forma particular de verdade. Verdade límpida, livre de qualquer mancha de opacidade relativista. A verdade, para o bibliotecário, está submetida à clareza e a universalidade. Foucault me convenceu de que, longe de ser mero espelho da infraestrutura econômica, a biblioteca, por meio de seus produtos e serviços, retroalimenta o regime. Ao refutar a concepção da biblioteca dentro da lógica do espelhamento, me foi permitido discutir as possibilidades éticas dos agentes que ali atuam. Em síntese, A Biblioteca de Foucault tem por fim analisar o poder sofrido e, principalmente, exercido pela biblioteca a partir da identificação de certos mecanismos ali presente, como os separação, interdição e vontade de verdade, ressaltando as possibilidades de resistência.
Notas
1 A Classificação Decimal de Dewey (CDD) é um sistema de classificação documentária desenvolvido pelo bibliotecário norte-americano Melvil Dewey em 1876. Já na 23ª edição, tem recebido críticas pelo seu anglocentrismo e conservadorismo, propensos a reduzir ou desqualificar as experiências socioculturais de outros povos em suas notações.
2 O Código de Catalogação Anglo-Americano – 2ª edição (AACR2) é um compêndio de regras para descrever fontes bibliográficas representando pessoas, localizações geográficas e entidades coletivas.
3 SAGGI, Ludovico. “Vetera et nova” nella biografia di Santa Teresa. Carmelus, Roma, v. 18, n. 1, p. 142-150, 1971.
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FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 9. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
Cristian Brayner é pós-doutor em História, doutor em Literatura pela Universidade de Brasília, mestre em Ciência da Informação e graduado em Biblioteconomia, Tradução, Filosofia e Letras (Língua e Literatura Francesas). É ex-diretor do Departamento de Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas do Ministério da Cultura. Foi agraciado com o Prêmio Casa de Las Américas.
Bruno Leal Pastor de Carvalho é professor do Instituto de História pelo programa Nacional de Pós-Doutorado (PNPD), vinculado ao Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É doutor em História Social pela UFRJ (2015), mestre em Memória Social pela UNIRIO (2009) e especialista em História Contemporânea pela PUCRS (2010). Graduado em História pela UERJ (2006) e em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo pela UFRJ (2006). É fundador e editor do portal Café História, além de cocoordenador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos e Árabes da UFRJ (NIEJ). É membro da Rede Brasileira de História Pública e da Associação das Humanidades Digitais. Seu campo de interesses inclui: holocausto, crimes de guerra, história pública digital e divulgação de história.
Como citar essa entrevista
BRAYNER, Cristian. Biblioteconomia e bibliotecas: muito além do tecnicismo (Entrevista). Entrevista concedida a Bruno Leal Pastor de Carvalho. In: Café História – história feita com cliques. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/biblioteconomia-e-biblioteca/. Publicado em: 11 dez. 2017. Acesso: [informar data].