Um mosaico de passados: o Bairro Gótico de Barcelona

Como o nacionalismo catalão e o turismo histórico se encontraram na invenção arquitetônica de uma cidade medieval em pleno século XX.
16 de setembro de 2019

Especial “Passados presentes da Espanha”

Um gosto pelo passado parece alimentar a curiosidade de muitos visitantes que caminham pela Cidade Velha,em Barcelona. Os mais interessados certamente farão uma visita ao Museu de História, inaugurado alguns anos após o fim da Guerra Civil e localizado na Praça do Rei. O prédio que hoje abriga o museu havia sido um palácio privado construído em estilo gótico e oferece ao visitante um ótimo exemplo deste passado, que se constitui como elemento central na definição da identidade catalã.

Caso sinta cansaço após a visita, uma pausa poderá ser feita ali mesmo em frente ao museu, desfrutando de algumas tapas e cañas no bar L’Antiquari, cujo nome certamente contribui para manter a ambiência do passeio. Em seguida, a rápida caminhada por uma estreita viela levará o visitante até a Rua do Bispo, permitindo-lhe contemplar a famosa ponte, onde outros tantos turistas estarão com os pescoços esticados, os olhos atentos e celulares a postos observando e fotografando a ornamentada passagem de estilo gótico que une as duas construções emoldurando a paisagem.

Alguns passos mais e logo toda a atenção será concentrada no majestoso aspecto da Catedral, um edifício erigido no coração da cidade e que presenteia o visitante com uma vista fascinante de sua fachada gótica. O olhar, então, se perderá em meio a um sem-número de detalhes que causam ao mesmo tempo uma sensação de encanto e de assombro diante da imponência daquela imagem que se abre ao turista histórico.

Bairro Gótico de Barcelona - Catedral
Catedral de Barcelona, fachada gótica construída em 1913. Foto: Catharina Rytter.

Neste breve percurso de alguns poucos metros, certamente o apetite passadista do visitante será saciado com largas doses de história catalã, particularmente aquela que diz respeito ao período definidor do estilo arquitetônico que caracteriza e que dá nome ao famoso Bairro Gótico de Barcelona. A experiência de imersão será tamanha que o turista de hoje levará para casa a sensação de ter presenciado um passado distante que, neste caso, remete diretamente às primeiras décadas do século XX.

Um gótico do século XX?   

O antigo palácio onde o passeio foi iniciado, conhecido como Casa Padellàs, só está no lugar onde hoje se encontra porque na década de 1930 ele foi trasladada, pedra por pedra, da antiga rua Mercaders, onde havia sido erigida no século XV, para a atual Praça do Rei, ela própria um produto daquele mesmo contexto. A ponte localizada na Rua do Bispo, também conhecida como Ponte Gótica, é uma construção do final da década de 1920 e não tem ainda nem 100 anos de idade. Por fim, embora o prédio da Catedral seja do século XV, sua fachada só foi efetivamente construída a partir do final do século XIX, sendo finalizada apenas em 1912, o que certamente motivou esse interesse em harmonizar todo o entorno da igreja com o mesmo estilo arquitetônico.

Um dos principais pontos turísticos da cidade, o Bairro Gótico, nesse sentido, pode ser encarado enquanto uma invenção própria do século XX e se apresenta como um dos mais bem-sucedidos exemplos de usos do passado que consegue articular o interesse econômico do turismo com o anseio coletivo pela definição de uma identidade social.

Catedral Gótica de Barcelona
A mesma Catedral de Barcelona, mas 1880. Estilo gótico é do século XX. Fonte: Wikpedia.

Para além do gosto pelo passado, portanto, caminhar por este impressionante espaço permite também refletir sobre uma forma particular de experiência de tempo, por meio da qual o passado emerge tanto como um legado ou uma permanência de outrora, contribuindo para uma memória coletiva definidora de identidades nacionais, quanto como um artefato construído para determinados fins do presente, que podem ser, inclusive, a obtenção de lucro por meio da exploração turística da cidade.

A criação do Bairro Gótico

Desde meados do século XIX, um conjunto de reformas urbanas transformou profundamente Barcelona, cujo espaço histórico cercado pelas antigas muralhas romanas não conseguia mais acompanhar o crescimento vertiginoso da população.

Entre o começo do século XVIII e a década de 1830, o número de habitantes da cidade aumentou em quase quatro vezes. Por conta dessa expansão demográfica, em 1854 foi decidido que as muralhas seriam derrubadas e importantes alterações urbanísticas seriam então realizadas. Foram elaborados planos de reforma pelo engenheiro Ildefons Cerdà (1859), voltada sobretudo para as zonas que se encontravam fora do perímetro delimitado pelas antigas muralhas, e por Ángel Baixeras, arquiteto e urbanista que duas décadas depois voltou sua atenção para melhorar as condições de circulação do chamado casco viejo da cidade antiga.

A proposta de Baixeras, que apenas começou a ser implementada parcialmente pela prefeitura na primeira década do século XX, previa a abertura de três grandes vias retas que cortariam a parte central da cidade, atravessando antigas construções e ocasionando uma profunda remodelação da paisagem do que hoje é o Bairro Gótico. O início dos trabalhos ocorreu em março de 1908, com a demolição de centenas de edifícios para a abertura da Via Laietana, uma avenida que segue entre a praça Urquinaona até a praça Antonio López, próxima à zona portuária da cidade.

Para acompanhar os trabalhos, foi nomeada pela administração local uma Delegación Investigadora y de Vigilancia de las Obras de la Reforma, composta por profissionais das áreas da arquitetura e da história. Sua função era realizar um levantamento dos prédios que seriam demolidos, determinando o que deveria ser conservado e o que viraria entulho. A empresa contratada pelo serviço, assim, tinha como incumbência desmontar as peças que requeriam conservação e trasladá-las até um armazém municipal, onde ficariam à espera de decisões para novos possíveis usos. Ao mesmo tempo, a União dos Artistas de Barcelona organizou um concurso para fotografias e desenhos que documentassem as transformações que ocorreriam em função das reformas.

Ou seja, a modificação e a destruição dos passados acumulados naquela região da cidade seguiu concomitante com um esforço bastante organizado de preservação de uma determinada memória que, inclusive, era feita por meio da conservação material de partes daquele passado.

A abertura da Via Laietana acabou por mostrar uma outra Barcelona escondida por debaixo dos prédios que foram sendo erigidos ao longo dos séculos, revelando desde ruínas romanas até restos de construções góticas oriundas de um período de crescimento econômico e apogeu político da cidade, entre os séculos XIII e XV. Com isso, um importante problema se colocava para a população: como se define que passado preservar e a partir de qual memória estabelecer o vínculo com este passado.

A enorme quantidade de material selecionada pela Delegación e conservada pela prefeitura tornou inviável que ele fosse organizado em um único museu. Começa, então, a ser esboçada a ideia de criação de um bairro onde tudo aquilo que estava sendo armazenado pudesse ser contemplado pelo público. O arquiteto Antoni Gaudí sugeria que este material pudesse ser usado para melhorar a estética da cidade e seu colega de profissão Jeroni Martorell, assinando uma petição endereçada à prefeitura, propôs a construção de um grande museu ao ar livre.

Em 1911, o escritor Ramon Rucabado publicou um artigo na revista La Cataluña intitulado justamente “Um bairro gótico em Barcelona”. Ali, escreveu que “um bairro gótico tal como idealizamos seria como uma caixa preciosa que guardaria as joias preciosas de Barcelona […] Todas as ruas deveriam ser devolvidas não ao primitivo estado da época histórica em que se terminou a edificação delas, mas ao estilo gótico catalão, intervindo pela mão especializada e sábia dos melhores arquitetos modernos da Catalunha” (La Cataluña, 20/05/1911, p. 310). Estavam dadas as linhas gerais para a criação deste importante espaço de preservação histórica que, na verdade, recriava um determinado passado escolhido estrategicamente por parte da sociedade barcelonense desde o século XIX.

A recriação do passado gótico

A ideia de um Bairro Gótico nomeando uma parte turística de Barcelona só teve difusão mais intensa a partir de meados do século XX. Certamente os preparativos para a Exposição Universal de 1929 ajudaram a concretizar a ideia que em 1911 era colocada em discussão por Rucabado. Dois anos antes da Exposição havia sido criado pela prefeitura o Servicio para la Conservación y Restauración de Monumentos, que após o fim da Guerra Civil passou a se chamar Edificios Artísticos y Arqueológicos. O papel do arquiteto Adolf Florensa nessa instituição foi decisivo para que o Bairro pudesse efetivamente existir.

Na perspectiva de Florensa, três critérios foram fundamentais para que todo o entorno da Catedral pudesse adquirir a conotação gótica desejada. Em primeiro lugar, era necessário um esforço de restauração e de dignificação dos espaços considerados segundo sua importância histórica. Em segundo lugar, seria feito o traslado para o centro histórico de construções que, em função das reformas urbanas, tivessem que ser demolidos. O deslocamento da casa Padellàs é um dos exemplos deste critério. Finalmente, terceiro ponto importante, o que ele chamava de “harmonização do insulso”, que significa modificar os edifícios já existentes, construídos em épocas posteriores ao período do gótico catalão, de modo a homogeneizar com a paisagem medievalizada que estava sendo recriada.

Havia naquele contexto das primeiras décadas do século XX dois tipos de interesses que seguiam de forma convergente. De um lado, a valorização de elementos definidores da identidade catalã que, desde a primeira metade do século XIX, passou a ser elaborada e divulgada por meio do movimento catalanista conhecido como Renaixença. De outro, a emergência de uma burguesia que enxergava na cidade e na sua exploração turística uma forma rentável de lucro, organizada administrativamente a partir da Sociedad de Atracción de Forasteros, criada em 1908.

Identidade coletiva e lucro econômico, neste caso, eram duas faces de uma mesma moeda, cujo lastro que definia seu valor vinculava-se à dimensão histórica proposta e aos usos do passado que poderiam ser feitos. A cidade se converte, assim, em um espaço onde a memória social passa a ser monumentalizada, valorizando determinados anseios políticos que instrumentalizam certas disputas (como o independentismo catalão o mostra), ao mesmo tempo em que se valoriza enquanto forma de exploração comercial a partir da transformação do passado em uma commodity a qual se agrega determinado valor.  

Turismo histórico e usos do passado

Em sua famosa conferência intitulada O culto moderno dos monumentos, de 1903, o historiador da arte austríaco Aloïs Riegl sugere um importante processo pelo qual a percepção moderna dos monumentos se transforma no século XX. Segundo Riegl, o contexto em que sua conferência foi pronunciada, o mesmo em que os esboços da construção do Bairro Gótico começaram a ser desenhados, era o momento em que o valor imputado aos monumentos do passado passava por uma mutação significativa, transitando do que ele chamou de “valor histórico” para o “valor de antiguidade”.  

Valor histórico é aquele que, para ser usufruído, implica uma atividade intelectual vinculada a um conhecimento científico específico. É o tipo de valor que ligado à unicidade do objeto, a sua dimensão documental e ao tipo de informação que ele oferece sobre os fatos do passado. A Casa Padellàs, por exemplo, permite o conhecimento de vários elementos a respeito da arquitetura e da vida doméstica catalã do século XV.

Por outro lado, o valor de antiguidade vincula-se mais ao caráter estético do objeto, à aparência de tempo transcorrido que as marcas incrustradas em sua superfície oferecem ao observador. Ao contrário da atividade intelectual exigida para se perceber o valor histórico, a antiguidade se revela por meio da experiência sensorial, pela impressão subjetiva que o monumento de outro tempo apresenta ao observador. A mesma Casa Padellàs, com suas paredes impregnadas de marcas temporais permite ao visitante a percepção concreta do passado.

Nesse sentido, como destaca Riegl, se o valor histórico se restringe a uma camada cultivada da sociedade, o valor de antiguidade se abre para que um número mais amplo de curiosos tire proveito deste tipo de valor rememorativo. O turismo de passado, portanto, é atravessado tanto por um tipo de valor quanto por outro. Seria possível mesmo sugerir que sua eficácia, seja do ponto de vista da história, seja do ponto de vista econômico, depende de uma justa medida entre ambos: nem algo excessivamente erudito e voltado para poucos, nem algo puramente estético e massificado, desprovido de lastro documental.

O Bairro Gótico de Barcelona, esse mosaico de passados e presentes interagindo entre si, oferece um exemplo significativo de uma forma de uso do passado em que a autenticidade do material e o seu potencial de consumo coexistem em uma tênue linha que separa o autêntico do falso e o possivelmente pedagógico do puramente lucrativo. Trata-se de uma linha que, em última instância, cabe àquele visitante mencionado mais acima decidir se atravessa ou não.

Referências Bibliográficas

ALBERT, Joan Roca i. “Intervención arqueológica, discurso histórico y monumentalización en Barcelona”. In: V Congreso Internacional Musealización de Yacimientos Arqueológicos, Cartagena, 2008.

GANT, Agustín Cócola. El Barrio Gótico de Barcelona. Planificación del pasado e imagen de marca. 2º. Edición. Barcelona: Ediciones Madroño, 2014.

GANAU, Joan. “Invention and authenticity in Barcelona’s Barri Gótic”. In: Future Anterior, vol. 3, n. 2, 2006.

PALMER, Catherine; TIVERS, Jacqueline (edited by). Creating heritage for tourism. London: Routledge, 2019.

RIGEL, Aloïs. El culto moderno a los monumentos. Madrid: La Balsa de la Medusa, 2008.

Como citar este artigo

NICOLLAZI, Fernando. Um mosaico de passados: o Bairro Gótico de Barcelona (Artigo). In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/bairro-gotico-de-barcelona/ Publicado em: 16 set. 2019. Acesso:

Fernando Nicolazzi

Graduação em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR – 2001), mestrado (2004) e doutorado (2008) em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, membro dos Programas de Pós-Graduação em História e do Mestrado Profissional em Ensino da História (PROFHistória) da UFRGS. É pesquisador do Laboratório de Estudos sobre os Usos Políticos do Passado (LUPPA-UFRGS) e pesquisador-colaborador do Núcleo de Estudos em História da Historiografia e Modernidade (NEHM-UFOP). Foi coordenador do GT Teoria da História e Historiografia da ANPUH-RS (2012-2015). Tem experiência na área de História, com ênfase em Teoria da História e Historiografia, atuando principalmente nos seguintes temas: teoria da história, historiografia moderna e historiografia brasileira.

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