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“Babilônia”: os loucos anos 20 na devassa Hollywood

“Babilônia”: os loucos anos 20 na devassa Hollywood 1

"Babilônia", do diretor Damien Chazelle, mostra Hollywood sem pudores. Foto: divulgação.

“Hollywood Babylon” é o título de um livro do cineasta Kenneth Anger – mais conhecido pelo curta experimental “Scorpio Rising”, de 1964 – que lista com riqueza de detalhes os escândalos acontecidos em Hollywood entre 1900 e 1950. Tratado como uma Bíblia por muitos, com o tempo a veracidade do livro foi posta em xeque, hoje ele tem pouca credibilidade. Mas uma coisa ficou da obra publicada em 1959: a ideia de devassidão em Hollywood, principalmente durante a década de 1920, e essa ideia de que a cidade cenográfica era uma Babilônia moderna continua rendendo frutos. A ideia está, por exemplo, no título do novo espetáculo visual do diretor Damien Chazelle, ganhador do Oscar por “La La Land” (2016).

Estamos no ano de 1926 e Hollywood se encontra efervescente. Terra de construir sonhos durante o dia e de exageros em festas de arromba na parte da noite. É uma destas festas que inicia o filme, e é nela que somos apresentados aos nossos anti-heróis. Temos primeiro Manuel ‘Manny’ Torres (Diego Calva) um faz-tudo que sonha em um dia ver um set de cinema de perto, mesmo que isso não signifique atuar. Quem também sonha com um set de filmagens é a aspirante a atriz – mas já estrela, ela diz: “ou você é uma estrela ou não é” – Nellie LaRoy (Margot Robbie).

Nellie dança em cima de uma mesa, e seu número se faz notar, pois ela é escolhida para substituir no dia seguinte uma atriz que teve uma overdose naquela mesma festa. Manny ajuda o superastro Jack Conrad (Brad Pitt) e passa a ser empregado por ele novamente como um faz-tudo – mas agora no set de filmagem com o qual Manny sempre sonhou.

Tudo vai muito bem em Hollywood, até o evento de 1927 que muda a indústria inteira: a chegada dos filmes com som sincronizado, os filmes falados. De repente, descobriu-se que nem todos os astros da época poderiam fazer a transição para os filmes falados, por diversos motivos – um sotaque forte, um gaguejo, uma voz que não combinava com a imagem dos atores. A saída para esse desafio é contratar coaches de oratória, como vimos de maneira jocosa em “Cantando na Chuva”, clássico de 1952. É também uma época de mudança da imagem dos atores, com cada vez mais pessoas clamando pela decência nos filmes. É assim que Nellie e Manny, que haviam se conhecido naquela festa lá do começo do filme, vão parar no mesmo estúdio, com ele remodelando a imagem dela, de “garota ardente” para “sofisticada e recatada”.

As inspirações em figuras do passado de Hollywood são óbvias para quem conhece este passado. A estrela oriental lésbica Fay Zhu (Li Jun Li) é claramente modelada em Anna May Wong e Marlene Dietrich, completa com o ato de beijar uma mulher na festa, cena tirada direta e descaradamente de “Marrocos” (1930). A novidade em Fay Zhu é que, quando não conseguia emprego atrás das câmeras, ela se contentava em escrever as cartelas de texto que entremeavam as cenas do filme, explicando-as e expandindo-as. Elinor St. John (Jean Smart), jornalista, é já em seu nome amálgama de Elinor Glynn e Adela Rogers St. John, duas escritoras profícuas da época. Outros personagens são pessoas reais, como o executivo Irving Thalberg (Max Minghella), um garoto prodígio desta Hollywood em convulsão.

Não é apenas a chegada dos filmes com som sincronizado que estava sacudindo Hollywood no final dos anos 1920. O efeito de dois escândalos do começo da década ainda reverberava: o assassinato de William Desmond Taylor e o escândalo que acabou com a carreira do comediante Roscoe ‘Fatty’ Arbuckle, este tendo inspirado a cena da overdose na festa no início de “Babilônia”. Estes escândalos causaram o surgimento de um código de conduta para os estúdios, que precisaram, a partir de 1934, passar a fazer filmes mais “castos” e com menos protagonismo de mulheres fortes. Este código de conduta, chamado de Código Hays, existiu até finais dos anos 1960, mas recentemente surgiu um pequeno, mas insistente movimento pela sua volta.

Apesar de o foco ser a trajetória de Nellie LaRoy em uma Hollywood que se modifica, há a interessante subtrama do saxofonista Sidney Palmer (Jovan Adepo). Conhecemos Sidney na mesma festa lá do início, e quando Manny galga posições num estúdio de cinema, ele chama o saxofonista para ser estrela de cinema, pois o público estava interessado em ver mais negros e ouvir mais música negra nas telas. Logo o músico vira ator, e se vê cercado de pessoas cheias de boas intenções, mas nenhum conhecimento para discutir a representatividade. Mas até essa representatividade é falha em “Babilônia”, pois em suas mais de três horas de duração a trama de Palmer não é bem explorada, sendo preterida em favor de outras subtramas, como a da negociação de Manny com um sujeito esquisitíssimo, e vários momentos escatológicos ou puramente nojentos.

Como o supracitado “Cantando na Chuva”, o foco de “Babilônia” é a transição do cinema mudo para o falado. De repente, os sets super caóticos e barulhentos precisam se tornar estúdios ultrafechados e silenciosos, para que nenhum ruído atrapalhe o trabalho dos recém-chegados microfones. Carreiras são destruídas e outras construídas pela chegada do som, e uma coisa é certa: Hollywood nunca mais será a mesma.

A ascensão de Nellie é rápida, verdadeiramente meteórica, e acontece numa primeira hora de filme que também é bastante acelerada. É um verdadeiro “fever dream”, um sonho febril de um diretor ambicioso. Já não havia dúvidas de que Damien Chazelle é um diretor competente, e aqui fica mais do que provado. Ganhador do Oscar de Melhor Direção em 2017, Chazelle teve a ideia para “Babilônia” em 2009, mas, sendo ainda um desconhecido na época, não conseguiu financiamento para seu épico. Mais de uma década se passou e, com uma boa reputação já construída, a conversa foi diferente quando ele apresentou novamente o projeto aos estúdios.

“Babilônia” dividiu as opiniões em sua estreia. Alguns se maravilharam com a grandiosidade do projeto, enquanto outros acharam o filme vazio, existindo só com a intenção de chocar o público. Nem sempre verdadeiro, mas sempre interessante, “Babilônia” se destinou desde o começo a ser um espetáculo. E isso não podemos negar: logrou com louvor ser uma carta – talvez não de amor, nem de ódio – ao seu próprio passado, que é tão interessante quanto o próprio cinema que era feito na época.

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