Estudo da Fundação Getulio Vargas realizou survey online com 439 profissionais que atuam na “linha de frente” de serviços de assistência social de todas as regiões do país.
Agência Bori
O crescimento da disseminação do novo coronavírus no país evidencia que seus efeitos são expressivos e heterogêneos, com consequências devastadoras para populações que moram em áreas urbanas mais pobres e densamente povoadas, já expostas à maior vulnerabilidade social. Esse é também o perfil da maior parte das famílias atendidas pela política de assistência social. Neste cenário, a área da assistência social adquire papel estratégico para minimizar os danos da crise entre os mais pobres, viabilizando medidas econômicas e sociais coerentes com esse segmento populacional. Diante disso e da emergência de relatos de mortes e afastamentos de trabalhadores da rede socioassistencial por conta da Covid-19, vem crescendo a preocupação com os profissionais desta área que atuam na “linha de frente” do combate à pandemia.
Para tentar compreender o impacto da Covid-19 sobre as profissionais da linha de frente da assistência social, o Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB), da Escola de Administração de Empresa de São Paulo (EAESP) da Fundação Getulio Vargas (FGV), realizou a pesquisa “A pandemia de Covid-19 e os profissionais da assistência social no Brasil”. O survey online foi realizado com 439 trabalhadores de todas as regiões do Brasil, entre os dias 15 de abril e 1º de maio de 2020.
Dos 439 respondentes, 85,88% são mulheres, 12,76% homens e 1,37% preferiram não declarar. Quanto ao tempo de atuação, 34,17% do total de respondentes atua há pelo menos 10 anos na área socioassistencial. No que se refere ao perfil da amostra, há uma concentração de respondentes que atuam na região Sudeste do país (53,99%), com destaque ao estado de São Paulo que sozinho computa mais da metade de todos os participantes.
Em média, 61,5% dos profissionais entrevistados não se sentem preparados para lidar com a crise da Covid-19. Apenas 12,8% se sentem preparados e o resto não sabe responder. Os resultados também indicam que o medo é um sentimento comum entre esses profissionais. Segundo os dados coletados, 90,66% dos profissionais sentem medo da doença e 43,5% deles conhecem amigos ou colegas que já se contaminaram com a doença. Além do medo de contaminação da doença, os profissionais sentem receio de levar o coronavírus para dentro de casa.
“A pesquisa mostra que alguns profissionais da assistência, como os que atuam em serviços de acolhimento, precisam continuar na ativa, em um trabalho que é eminentemente interativo e que está, portanto, mais sujeito ao contágio. Além disso, indica que serviços socioassistenciais de atendimento com baixa complexidade estão com atividades presenciais suspensas ou reduzidas. Tudo isso aumenta o medo desses profissionais e a preocupação com a população de maior vulnerabilidade, que vem enfrentando dificuldades socioeconômicas adicionais com a pandemia” avalia Gabriela Lotta, professora da EAESP FGV, coordenadora do NEB e pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole.
EPI, suporte e treinamento
De acordo com o estudo, a sensação de medo e de despreparo podem ser explicados por outros indicadores do questionário, como a disponibilidade de equipamentos de proteção individual (EPIs), o suporte governamental e o acesso a treinamentos. Apenas 38,5% dos profissionais apontam ter recebido EPI, com uma variação entre as regiões, se destacando positivamente a região Nordeste, onde 51,78% dos profissionais receberam equipamentos, em contraposição à região Norte, onde o indicador chega a 33,33%.
Com relação ao suporte governamental, mais da metade dos entrevistados (66,51%) afirmam não sentir que o governo federal os apoia. Já os governos subnacionais são vistos de forma ligeiramente mais positiva: 55,35% e 50,57% dos respondentes sentem que, respectivamente, governos estaduais e governos municipais realizam ações para proteger os profissionais da assistência social. Sobre ao apoio direto de seus superiores, 41,46% dizem não sentir esse suporte e 54,67% disseram ter recebido instruções das chefias sobre como atuar diante da crise.
A grande maioria afirma não ter recebido orientações ou ações oficiais de formação. Apenas 12,98% relatam ter recebido treinamento para lidar com o coronavírus, se destacando de forma positiva a região Nordeste, onde 37,5% dos profissionais disseram ter participado de treinamentos, em contraposição à região Norte, onde nenhum respondente respondeu positivamente.
“O surgimento da Covid-19 agravou ainda mais as dificuldades de atendimento da população vulnerável. Os profissionais que trabalham na entrega dos serviços socioassistenciais vêm se deparando com orientações difusas, recursos e EPIs restritos. Além do quadro de funcionários já ser tradicionalmente baixo, alguns profissionais estão de licença por integrarem grupos vulneráveis ou por estarem contaminados ou com sintomas do coronavírus. Outros serviços, principalmente os de baixa complexidade, estão com atividades presenciais suspensas ou bastante alteradas. Tem sido cada dia mais difícil manter a qualidade do trabalho e o atendimento aos usuários dos serviços”, afirma Fernanda Lima, pesquisadora do NEB.
Distanciamento na relação com usuários
O estudo também analisou em que medida a crise alterou os processos de trabalho e as interações entre os profissionais da assistência social e os cidadãos. 63,46% dos respondentes relatam que a dinâmica de trabalhou foi alterada com a pandemia, havendo relatos recorrentes de atendimento à distância, trabalho em escala, redução ou suspensão dos atendimentos. E 74,26% dos respondentes afirmaram que mudaram as interações com os usuários dos serviços. Segundo uma das respondentes, psicóloga que atua na área socioassistencial, o cotidiano passou a ser permeado pelo medo, “pois o trabalho exige contato muito próximo”.
Entre as principais mudanças relatadas estão a realização de atendimentos presenciais com distanciamento físico, atendimentos remotos (online ou telefone), suspensos ou reduzidos. Também apontam como alteração importante a emergência de impactos emocionais negativos, como medo, frustração e preocupação na relação com os usuários.
“Essa situação acaba trazendo também consequências muito ruins para a qualidade do atendimento. A relação com os usuários, que pelas normativas da política deve almejar a construção de vínculos e o acesso a outras políticas públicas, se transforma. Se tradicionalmente foi pautada pela relação presencial, ela se reduz ou se metamorfoseia e assume um caráter presencial, mas sem contato físico, ou um caráter puramente remoto e virtual”, afirma Giordano Magri, pesquisador do NEB que também coordenou a pesquisa.