“Assassinos da Lua das Flores”: uma história sobre conspiração, racismo, ganância e os primórdios do FBI

Em seu mais novo filme Martin Scorsese traz para as telas a história verídica contada no livro homônimo de David Grann sobre uma série de assassinatos de indígenas nos anos 1920 nos Estados Unidos.
17 de janeiro de 2024
por
"Assassinos da Lua das Flores": uma história sobre conspiração, racismo, ganância e os primórdios do FBI 1
Scorcese está de volta aos cinemas. Foto: Paramount Pictures/Apple TV+

A Nação de Osage é uma tribo norte-americana primeiramente assentada durante o século XVII perto da confluência dos rios Missouri e Mississippi, como resultado da expansão no condado de Ohio dos Iroquois – mais conhecidos como as Cinco Nações: Mohawk, Oneida, Onondaga, Cayuga e Seneca – originárias do noroeste dos EUA. Durante o século XIX os Osage foram forçados pelo governo americano da época a migrarem do território que hoje forma o Kansas, para o chamado “indian territory”, hoje Oklahoma.

 No início do sec.20, acidentalmente, os indígenas descobriram petróleo em suas terras – o ouro negro da virada energética mundial com o advento dos motores alimentados pelo combustível fóssil. Essa descoberta tornou rapidamente o povo Osage um dos mais afluentes dos EUA, e, ao mesmo tempo, despertou a cobiça dos homens brancos de todos os lados do país. Os Osage mantiveram os direitos irrestritos sobre os minerais encontrados sob suas terras, o que também incluía a proibição de sua venda a indivíduos fora das tribos, restringindo a mudança de posse à herança dentro das famílias. Esse direito foi regulado e reconhecido pelo governo norte-americano.

Porém, motivados por cobiça e racismo, a população branca norte-americana, representada por seus políticos e juízes, elaborou uma lei permitindo que os brancos se tornassem tutores dos indígenas, por motivos dos mais variados e estapafúrdios, além de incentivar os casamentos inter-raciais com mulheres indígenas buscando o fruto de suas heranças. Um processo desenfreado de embranquecimento do povo Osage foi, assim, iniciado. Casamentos, em sua maioria, não ocorriam por amor, mas sim por interesse financeiro, e a prática culminou em uma monstruosa série de assassinatos de indígenas visando eliminar os herdeiros diretos da linhagem dos Osage – pais, tios, irmãos e irmãs das esposas – em detrimento aos descendentes brancos ou miscigenados da união das mulheres com os homens brancos.

Em uma época em que investigações criminais e perícias legais existiam apenas em sua mais primitiva forma – sendo os famosos Pinkertons, os prestigiados (e praticamente os únicos) detetives de seu tempo – a quase totalidade das mortes não era minimamente investigada, ora por incompetência, ora por desinteresse. As condições perfeitas para o abuso e o crime estavam dadas, e dezenas de assassinatos ocorreram antes que o governe federal americano decidisse investigar as mortes por meio de seu mais novo órgão – o FBI.

E é nesse contexto histórico que Scorsese situa sua obra, não poupando nada em recursos técnicos e em seu, habitual, elenco estelar de primeira classe. Seu “muso” Leonardo DiCaprio interpreta Ernest Burkhart, um veterano da Primeira Guerra Mundial que retorna à casa do influente tio William Hale, incorporado por Robert De Niro, em busca de dinheiro fácil e tranquilidade. Ernest deixa claro desde o princípio que não é muito chegado em trabalho e que não tem nenhuma aversão ao crime, o quem calha para os planos de expansão do domínio branco sobre as terras indígenas de William. Mollie, papel premiado de Lily Gladstone, uma mulher indígena, acaba se apaixonando e se casando com Ernest, e passa a vivenciar a morte de diversos familiares quase que imediatamente após a união. Mollie sofre de grave diabete, e a piora de sua saúde é gradativa após aceitar os cuidados médicos indicados por Hale e Burkhart.

O filme é produzido e dirigido por Scorsese com roteiro adaptado do premiadíssimo Eric Roth, que tem em seu currículo filmes como Forrest Gump (1994), Dune (2021), A Star Is Born (2018), entre outros grandes sucessos de bilheteria. A elaborada produção iniciou ainda em 2016, foi interrompida pela Covid 19, e o aguardado lançamento ocorreu apenas em Cannes em maio de 2023. Com tanta expectativa, a obra teria claramente dificuldades de não desapontar os fãs da dobradinha Scorsese e DiCaprio.

Em primeiro lugar, a opção por uma duração total de 3 horas e 26 minutos acaba estendendo a narrativa muito além de seus elementos interessantes, uma boa hora poderia ter ficado na sala de edição sem prejudicar em nada o roteiro ou a qualidade final. O filme se concentra demais no one-man-show DiCaprio e seu humor desconcertante, o que, nesse caso, considero pouco apropriado dada a seriedade do tema e a proximidade das questões racistas em relação a povos indígenas que determinam a sua raiz. Como sou fã de true crime, já era familiarizada com essa e várias outras histórias de inenarráveis abusos contra povos originários. O tom não caiu bem. De Niro como o malandro/mafioso/bonachão tira o peso da triste história de vida de pessoas como Mollie, de tal forma que isso nos impede de assimilar efetivamente a intensidade de sua interpretação.

O que deveria causar reflexão e indignação acaba apenas sendo entretenimento. Ao receber recentemente o Globo de Ouro de melhor atriz em drama, Lily Gladstone fez história como a primeira mulher indígena a ganhar o troféu, e em seu discurso de agradecimento, ela fez questão de falar na língua nativa de seus antepassados, emocionando o público. Em resumo, onde o foco deveria ser a barbaridade dos assassinatos e o sofrimento indígena, temos o holofote, de novo, sobre inteiramente de Niro e DiCaprio em diálogos absurdos/divertidos. Um filme de alto padrão, impecavelmente produzido com parceria da produtora Apple, para dar palco para aos engraçadinhos prata da casa. Por outro lado, atores incríveis como Brendan Fraser, John Lithgow e Jesse Plemons são subutilizados em pequenos papéis, assim como o final meta, estilo homenagem a fãs de true crime e do rádio moderno (Podcast) fica apagado e parece gratuito, mesmo com o cameo de Jack White no papel de um dos atores.

 “Assassinos da Lua das Flores”: uma história sobre conspiração, racismo, ganância e os primórdios do FBI parece ser mais uma prova de que em cinema menos também é mais (ou mais também é menos?). Roteiros enxutos podem, sim, favorecer muito histórias importantes e mais complexas e o poder de síntese é uma arte que anda bastante subestimada em prol do chá de cadeira nas salas de cinema.  Eu confesso para vocês, em determinado momento eu peguei no sono. Tive que acordar e rever o que tinha perdido para poder ser honesta no meu comentário. Para esse fim é conveniente assistir ao filme na plataforma de streaming Apple TV+ onde esse foi lançado agora em janeiro. Dessa forma dá para parar, tomar um café, respirar um ar fresco ou até mesmo assistir ao resto em outro dia.

Chegamos ao ponto em que a máxima bigger-better-brighter acaba se tornando uma tarefa maçante para o espectador. Talvez tenha chegado a hora de rever o formato. Principalmente em um mundo onde narrativas longas são hoje separadas em episódios de no máximo 1 hora de duração. E não, não estou defendendo o extermínio de longas-metragens, incito apenas uma reflexão sobre o sobrepeso do excesso de imagens. Um bom longa pode tranquilamente contar sua história em 90 minutos sem prejudicar o entendimento. Lily Gladstone sozinha, por exemplo, poderia ser a personagem principal de um filme enxuto sobre os abomináveis crimes. Os Golden Globes parecem concordar comigo pois de sete indicações – entre elas melhor filme, roteiro e direção – Lily foi a única a ser congratulada com o prêmio.

Tais Zago

Tem 46 anos. É gaúcha que morou quase a metade da vida na Alemanha mas retornou a Porto Alegre. Se formou em Design e fez metade do curso de Artes Plásticas na UFRGS, trabalha com TI mas é apaixonada por cinema.

Deixe um comentário

Your email address will not be published.

Don't Miss