As “cinderelas” na Segunda Guerra Mundial

Semelhantes aos selos postais, as cinderelas foram etiquetas usadas em correspondências como propaganda dos países beligerantes na Segunda Guerra Mundial.
10 de junho de 2024
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Cinderela de origem canadense fixada sobre o verso de envelope patriótico enviado ao Brasil, em 1942, em que aparece o Ministro Churchill seu gesto icônico. Coleção do autor.

Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), os serviços de correios foram um importante meio de veiculação de propaganda dos países beligerantes, por meio de marcas, selos e demais tipos de “papelaria postal”, como, por exemplo, aerogramas, bilhetes e cartões postais.

No Brasil, assim como em outros países da época, esse tipo de material circulante foi submetido à prática da censura postal e, principalmente, após a declaração de guerra contra a Alemanha e a Itália, em 31 de agosto de 1942, serviu de meio de divulgação de propaganda de guerra pró-aliada. O engajamento do público brasileiro no esforço de guerra foi motivado de diversas formas, com destaque para um tipo de estampilha publicitária conhecida entre os filatelistas (nome dado aos colecionadores e estudiosos dos selos postais) como “cinderela”.

A gata-borralheira” da filatelia

Assim como os selos postais, as cinderelas surgiram do desenvolvimento das artes gráficas, a partir da segunda metade do século XIX, no hemisfério norte. Igual aos selos, elas são pequenas estampas impressas com objetivos publicitários e são fixadas nas correspondências que transitam pelos correios diariamente. Porém, o que as diferenciam dos selos postais são sua origem privada e não possuir validade para franquia (pagamento) de correspondências e encomendas transportadas pelos correios. Ou seja, as cinderelas não têm validade postal.

Devido à sua natureza particular, as cinderelas são, geralmente, desprezadas pelos filatelistas, cujas coleções, especialmente quando reunidas para exposições filatélicas oficiais, são formadas essencialmente por itens emitidos oficialmente pelas autoridades postais nacionais ou sob sua autorização. Nos últimos anos, no entanto, o status das cinderelas está mudando. Por meio da Filatelia Aberta (ou Open Class), que permite que as coleções possuam até 50% de material não postal, as cinderelas passaram a ser valorizadas pelos colecionadores.

O front interno e as cinderelas

A mobilização da sociedade civil foi um dos desdobramentos do ingresso do Brasil na Segunda Guerra Mundial. Era necessário envolver a população com o esforço de guerra, conquistando os seus corações e suas mentes para a causa aliada. Não foi por acaso que, a partir de 1942, cessou no país a veiculação de notícias e propaganda de guerra do Eixo, em particular, de materiais jornalísticos e fotojornalísticos distribuídos à imprensa pelas sucursais brasileiras das agências alemãs RDV e Transoceânica, localizadas na cidade do Rio de Janeiro, na época, Distrito Federal.

O espaço deixado foi ocupado pelos órgãos de comunicação e propaganda aliados, como, por exemplo, o British News Service, do Reino Unidos, e o Serviço de Informações do Hemisfério (SIH), este último, ligado ao comitê brasileiro do Escritório do Coordenador de Assuntos Interamericanos, do governo dos Estados Unidos. Até o final do conflito, em 1945, o público brasileiro foi abastecido com caricaturas, cinejornais, filmes, fotografias, jornais e revistas voltados à divulgação da guerra sob a óptica aliada e dos Estados Unidos como modelo a ser seguido pelo Brasil.

Os selos postais e as cinderelas assimilaram e divulgaram no país os símbolos e os valores difundidos pela propaganda de guerra, principalmente, dos Estados Unidos. Contudo, as primeiras cinderelas foram colocadas em circulação entre o público brasileiro em 1939, quando ocorreu da invasão da Polônia por alemães e soviéticos. Na ocasião, o Comitê Brasileiro de Socorro às Vítimas de Guerra na Polônia arrecadou donativos com a venda de cinderelas em três valores: 500, 1.000 e 2.000 Réis.

Com a entrada do Brasil na guerra, diversas cinderelas foram ilustradas com temas acerca da compra de bônus de guerra, da unidade panamericana, da Força Expedicionária Brasileira (FEB) e da vitória, representada pela letra “V” ou pelo inconfundível gesto com a mão direita, com os dedos indicador e médio esticados, representando o vê de vitória, popularizado pelo então Chanceler Winston Churchill (1874-1965).

Na imagem a seguir, é possível ver uma dessas cinderelas. Com destaque para “Defenda o Brasil”, ela convoca o público para comprar bônus de guerra. A imagem do Cristo Redentor reforça a identidade católica do país e o soldado em posição de vigilância é um recurso recorrente na propaganda de guerra brasileira, que sugere que o país está de prontidão contra os seus inimigos. Como em outras cinderelas, a responsável pela sua emissão foi uma empresa privada, o Banco Nacional de Descontos, na época, situado na Rua da Alfândega, número 50. O Brasil esteve em guerra entre 1942 e 1945, período em que foram comuns manifestações de patriotismo por entidades da sociedade civil e empresas privadas, como, por exemplo, a subsidiária brasileira da Shell Oil Company.

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Cinderela publicitária emitida pelo Banco Nacional de Descontos, Rio de Janeiro-RJ. Pelo carimbo aplicado em uma agência postal do então Distrito Federal, ela foi colocada em circulação entre 1942 e 1943. Coleção do autor.

A vilania e a desqualificação dos inimigos também foram temas presentes nas cinderelas. As blitzen dos submarinos alemães contra os navios da marinha mercante brasileira foram representadas como atos de pirataria, responsáveis pela “alta dos preços”, conforme é possível constatar na imagem a seguir, em que aparece um envelope circulado entre as cidades do Rio de Janeiro-DF e Joinville, de 28 a 30 de abril de 1943, sobre o qual foi fixada uma cinderela ilustrada com uma embarcação civil de bandeira brasileira queimando e afundando após o ataque de um submarino, cuja silhueta em branco pode ser vista ao fundo da ilustração. Há náufragos em um barco salva-vidas e os seguintes dizeres: “A alta dos preços é uma consequência da pirataria nazista!”.

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Envelope circulado entre as cidades do Rio de Janeiro e Joinville sobre o qual foi fixada uma cinderela de propaganda antialemã. Coleção do autor. Detalhe na cinderela: com setas apontando para a silhueta do submarino alemão e o barco salva-vidas.

Outras representações sobre os alemães/nazistas que apareceram nas cinderelas são a ameaça da “quinta-coluna” e a tirania.

Devido ao seu caráter particular, é difícil estimar o total de cinderelas produzidas e colocadas em circulação no Brasil, durante a Segunda Guerra Mundial, bem como os seus respectivos temas. A falta de interesse como item colecionável e, em consequência, comercializável fizeram com que não existam trabalhos sistemáticos de coleção e catalogação desse tipo de fonte visual.

Porém, como um dos produtos da era da reprodutibilidade técnica da imagem (brincando com o título do célebre ensaio do filósofo alemão Walter Benjamin), as cinderelas são uma fonte histórica potente sobre as formas com as quais o público brasileiro foi envolvido com a Segunda Guerra Mundial e engajado com seus símbolos e esforços, especialmente, após a entrada do Brasil no conflito, no final de agosto de 1942, quando a guerra chegou às pessoas pelos correios.

Referências

CAMPIANI, Cesar. 120 objetos que contam a história do Brasil na Segunda Guerra Mundial. São Paulo: Livros de Guerra, 2019.

CYTRYNOWICZ, Roney. Guerra sem guerra: a mobilização e o cotidiano em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial. São Paulo: Geração Editorial, 2000.

SILVA, Sergio Marques da. Selos postais no mundo. Filatelia: sua história, hobby, cultura e investimento. São Paulo: João Scortecci Editora, 1995.

Como citar este artigo

NETO, Wilson de Oliveira. As “cinderelas” na Segunda Guerra Mundial. In: Café História. Publicado em 10 jun. de 2024. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/as-cinderelas-na-segunda-guerra-mundial/. ISSN: 2674-5917.

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Wilson de Oliveira Neto

Doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ. Possui Estágio Pós-Doutoral em História pelo PPGHS/UeL. Professor Adjunto da Univille Universidade, onde leciona, pesquisa e orienta estudos sobre fontes visuais, impressos e história militar com ênfases no fascismo histórico e na Segunda Guerra Mundial. Autor de artigos e livros, com destaque para o verbete “Segunda Guerra Mundial. Participação Brasileira (historiografia)” publicado no volume II do Dicionário de História Militar Brasileira.

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