O editor do Café História , Bruno Leal, entrevistou Ronaldo G. Gurgel Pereira, um dos mais destacados nomes da nova geração de egiptólogos brasileiros. Nascido no Rio de Janeiro, mas vivendo desde 2011 em Lisboa, Portugal, onde é Investigador Integrado na Universidade Nova de Lisboa, Ronaldo é especialista em arte egípcia tardia e no pensamento religioso egípcio tardio. Pela editora Chiado, em 2015, ele publicou a “Gramática Fundamental de Egípcio Hieroglífico”, elogiada obra, atualmente em segunda edição. Única em língua portuguesa, sua gramática é referência hoje indispensável para jovens egiptólogos que se interessam pelo estudo do estágio inicial da língua egípcia.
Agora, em 2019, Pereira acaba de lançar seu segundo livro autoral, desta vez pela editora autografia: “Texto, imagem e retórica visual na arte funerária egípcia”. No livro, o historiador traça uma contextualização da estrutura e do funcionamento da escrita hieroglífica e das suas relações com o cânone das imagens. As fontes textuais e iconográficas somam dezenas de exemplos, abrangendo desde o período pré-dinástico até o greco-romano. O livro inclui ainda um apêndice com mais de 700 hieróglifos comentados.
Na conversa com o Café História, Pereira discute a aplicação do conceito de “arte”, o significado da morte para os antigos egípcios, a presença dos animais em diversas representações daquela sociedade e outros assuntos que fazem parte do novo livro. Segundo explica, “em linhas gerais, a morte [no Egito Antigo] era percebida como a transição para uma outra etapa da existência humana. A vida no além seguia tal como era no mundo físico: as pessoas comiam, bebiam, faziam sexo, trabalhavam, adoeciam, pagavam impostos e até podiam morrer uma segunda vez”.
Ronaldo G. Gurgel Pereira é Investigador Integrado (CHAM – FCSH da Universidade Nova de Lisboa). Doutor em Egiptologia pela Universidade de Basileia (2010). Pós-Doutorado pelo Departamento de História da FCSH-Universidade Nova de Lisboa (2012 – 2017). Docente de arte, literatura, gramática egípcia clássica e hierático para turmas de graduação e pós-graduação em História na FCSH da Universidade Nova de Lisboa. Bolseiro pós-doc FCT para o estudo da Época Baixa em coleções de museus Ibéricos e a epigrafia egípcia em museus portugueses. Em 2018 recebeu uma “Onassis fellowship” na Universidade do Egeu, Rodes, para o estudo das aegyptiaca do Egeu dos períodos Orientalizante e Arcaico e as relações entre gregos e egípcios entre os séculos VIII – VI a.C. Atualmente desenvolve um projeto sobre a presença de aegyptiaca no litoral Atlântico da Península Ibérica, no contexto da expansão fenícia entre os séculos VIII – VI aC. Sua área de atuação inclui o Egito da Época Baixa, e dos períodos Helenístico, Greco-Romano e Copta. Especialização em arte egípcia tardia e o pensamento religioso egípcio tardio.
Quando falamos em “arte funerária”, qual o sentido da palavra “arte”? É o mesmo sentido que empregamos atualmente? Ou há alguma diferença?
Há um debate bastante interessante promovido pela antropologia no sentido de compreender o fenômeno social das práticas artísticas. Para discutirmos essas três perguntas de modo aprofundado seria preciso um espaço maior. Portanto, trataremos deste tema aqui em linhas bem gerais.
Temos um impulso de classificar genericamente como “arte” tudo aquilo que reconhecemos como “belo” ou “bom”, certo? Logo, rotulamos como “arte” tudo aquilo que superar as nossas expectativas em relação a qualidade de um produto. Podemos buscar caracterizações e tipologias de arte a partir de estudos iconográficos e estilísticos, por exemplo. Porém, sob uma perspectiva antropológica, definimos “arte” a partir de uma observação do todo que é produzido, ou seja, tanto do objeto em si como das suas relações com a sociedade.. Se considerarmos que “arte” é um conceito definido após o Renascimento europeu, lidamos com uma categoria problemática, uma vez que ela admite múltiplas definições.
Esse “conceito problemático” foi estabelecido no século XV com a criação das Belas Artes. O surgimento das ciências sociais cultivadas no Iluminismo e desenvolvidas ao longo do século XIX estabeleceu critérios etnocêntricos situando a “arte” como um fenômeno exclusivamente moderno.
Em oposição a uma categoria de “obras de arte”, estabeleceu-se ainda uma série termos antropológicos para descrever o que o mundo produzia “antes da arte”. Assim surgiram diversas classificações, como por exemplo, “objeto etnográfico”, cuja “função” é fornecer meios materiais para o estudo de sociedades ditas “primitivas”. Nesse sentido, os objetos eram classificados quanto a um suposto “grau de sofisticação” (ou seja, um juízo estético europeu). Outro termo proposto no século XIX é o “objeto arqueológico”, que consiste da produção de cultura material de povos desaparecidos.
Sob essa perspectiva comparativa, os conceitos de “arte” e “artefato” divergem. “Arte” aplica-se apenas aos objetos desprovidos de utilidade prática social. Já “artefato” aplica-se a objetos funcionais, como os objetos etnográficos e/ou arqueológicos, que estão associados a prática de rituais mágicos, religiosos ou quotidianos. Mas como assim?
A função do artefato era complementada pela decoração, ou seja, dependendo de cada caso ela poderia ter um valor mágico (garantia de eficácia), ou religioso (uma função protetora/profilática), ou mesmo socioeconómico (conferir prestígio ao seu proprietário). O artefato e a sua decoração formavam uma unidade. Nesse sentido, o “artista” era um artesão que produzia um objeto munido de utilidade bem definida na sua sociedade.
Agora sim, se tratarmos a “arte funerária egípcia” como um “artefato”, a sua “utilidade bem definida” na sociedade era de natureza mágica e religiosa. Texto e iconografia estavam ali muito bem articulados para protegerem a múmia e provisionarem o espírito no pós-vida com todos os tipos de mantimentos e víveres necessários para o seu conforto na eternidade. Havia um cânone rígido – técnico e social – para preservar a eficácia dessa decoração. Por isso, cada cor, cada figura, cada objeto que compunha as cenas, cada ícone, eram detalhadamente planejados, pois tudo era permeado por referenciais mágicos e religiosos bem específicos.
Naturalmente, a decoração de um túmulo poderia ser mais cara ou mais barata, conforme se investisse na qualidade de materiais e de mão-de-obra. Mas a sofisticação artística da iconografia e o talento do escultor/pintor não afetavam a eficácia mágica da decoração. Por exemplo, a cena dispondo uma mesa oferendas cumpria uma determinada função mágica, visando garantir a regeneração do espírito. Bastava que a mesa de oferendas estivesse ali representada, independentemente da habilidade do seu escultor/pintor. Mas então, por que investir verdadeiras fortunas no requinte e opulência das decorações?
O túmulo era construído e provisionado ainda durante o tempo de vida do seu ocupante (pelo menos idealmente). A decoração e o enxoval funerários eram um privilégio da realeza e da aristocracia egípcia. Havia um monopólio real sobre o uso dos pigmentos das tintas, pedras da maçonaria e mão-de-obra para a confecção e decoração dos túmulos. Assim, o requinte da decoração de um túmulo também era instrumentalizado por um discurso social de identidade e de poder das elites egípcias.
Que tipo de fontes você utilizou para fazer um trabalho como esse?
A sociedade egípcia era essencialmente analfabeta. Também havia uma série de níveis parciais de alfabetização cuja variedade desconhecemos. Bem, a alfabetização era feita com aquela escrita quotidiana e cursiva que hoje denominamos “hierática”. A razão para isso é um tanto óbvia. O hierático era empregado em todas as situações “profanas” da civilização egípcia: correspondências, listas de compra, contabilidade, recibos legais de compra e venda, literatura, etc. Apenas uma pequena elite intelectual recebia alguma formação na escrita monumental – sacralizada e mágica – dos hieróglifos. Esses poucos escribas eram também os responsáveis pela preservação daquele conhecimento.
Para realizar uma obra sobre retórica visual egípcia era preciso “equipar” o leitor com as mesmas ferramentas que os antigos egípcios utilizariam na interpretação de uma cena. Foi necessário recorrer a uma gramática e um dicionário egípcio para discutir os “trocadilhos mágicos” que podiam ser fonéticos ou visuais. Esses trocadilhos geralmente podiam ser percebidos sem a necessidade da alfabetização formal na escrita hieroglífica, desde que se conhecesse a língua. A primeira unidade do livro é dedicada ao sistema de escrita hieroglífico e confere noções básicas sobre a sua estrutura.
Os textos e imagens ligados à religião também foram muito importantes. Muitas vezes o espectador poderia reconhecer referenciais mágicos ocultos pela aparente inocência de cenas quotidianas, bastando para isso valer-se da sua “cultura geral” sobre a religião funerária. Uma vez que o leitor perceba como se estabelece essa relação entre as cenas do quotidiano/material e o referencial mítico/transcendente, a análise da iconografia se torna uma tarefa muito mais fácil. A segunda unidade do livro compara os cânones da escrita e das representações visuais, e explora a diluição da linha que os separa.
Mas a compreensão dos enunciados nunca era homogênea. Diferentes graus de alfabetização e de erudição permitiam ao espectador o acesso a mensagens mais sutis e criptografadas. Este livro debate justamente esse processo de formulação de discursos visuais.
A maior parte do público que visitasse um túmulo precisaria complementar o seu pouco ou nenhum conhecimento da escrita hieroglífica com as imagens fornecidas pela iconografia. Por isso, os cânones da escrita e da representação visual estiveram intimamente ligados, de modo a permitirem a formulação de enunciados simples e fáceis de serem compreendidos. Para isso bastava que o espectador compreendesse a língua egípcia e reconhecesse os referenciais míticos e religiosos sugeridos nas cenas. Essa “literacia visual” é discutida na última unidade da obra.
Como os antigos egípcios lidavam com a morte? Na escola aprendemos muito sobre o processo de mumificação. Mas indo além da questão técnica, como eles enceravam a morte do ponto de vista social? Essa visão refletia o politeísmo?
A morte é, possivelmente, o principal fator de interesse moderno pelo antigo Egito. O interessante é que a maior parte do nosso conhecimento sobre a vida quotidiana dos egípcios provenha justamente das suas necrópoles. Em linhas gerais, a morte era percebida como a transição para uma outra etapa da existência humana. A vida no além seguia tal como era no mundo físico: as pessoas comiam, bebiam, faziam sexo, trabalhavam, adoeciam, pagavam impostos e até podiam morrer uma segunda vez.
Via de regra, uma vez que um faraó começasse a construir o seu túmulo, os oficiais da sua corte buscavam situar as suas mastabas ao seu redor. Isso permitia que as relações de clientelismo permanecessem no além, tendo o faraó o dever de proteger o seu séquito. Os túmulos da aristocracia identificavam títulos e cargos honoríficos do morto e eram decorados com cenas quotidianas variadas, como por exemplo, atividades de lazer com a família, supervisão de serviçais realizando tarefas domésticas, trabalhos braçais no campo, etc. Essa decoração preservava simbolicamente o status quo e a autoridade dos respectivos dignitários no além, sempre rodeados de servidores obedientes.
Diferentemente do que ocorre nos monoteísmos modernos, o pós-vida egípcio não tinha qualquer apelo consolador. Servos permaneciam servos, elites continuavam elites, as margens do rio ainda eram perigosas e as exigências quotidianas eram as mesmas. A relação entre religião e magia é ainda mais interessante. Pode-se dizer que “teoricamente” existia uma prerrogativa onde apenas pessoas moralmente merecedoras eram capazes de saírem-se bem-sucedidas no famoso “julgamento das almas”. Nesse quadro, apenas os puros de coração seriam, a princípio, capazes de cruzar os portais para a vida eterna.
Mas havia formas de se “apelar” nesse julgamento, graças aos aspectos mágicos da religião egípcia. Encantamentos para viciar a balança que pesava o coração, segredos para chantagear os deuses, amuletos mágicos, etc, permitiam que pessoas menos virtuosas ascendessem para a Eternidade. Valer-se desses subterfúgios não era sequer considerado uma transgressão. Todavia, os antigos egípcios percebiam ali alguma contradição e discutiam a respeito. Mas magia e religião eram praticamente sinónimos no antigo Egito e nunca se buscou dissociá-las. Assim, a decoração dos túmulos oferecia proteção e poderes mágicos para garantir ao seu ocupante alcançar a eternidade e lá prosperar.
O Egito Antigo tinha uma sociedade heterogênea. Qual era a diferença, por exemplo, entre os rituais fúnebres entre um homem comum e de um faraó?
O antigo Egito possuía uma sociedade rigorosamente hierarquizada. Mas só havia um único homem que não era “comum”: o faraó. Não se tratava de apenas um rei. Ele era um delegado que exercia um mandato divino sobre a terra. O faraó era o responsável pelas cheias do Nilo, pelas vitórias militares, pelo nascer e pôr do Sol, enfim, ele garantia o reinado da Ordem sobre o Caos. Mas isso não é uma descrição metafórica ou poética do cargo. A religião egípcia foi organizada sob a premissa da divindade do faraó.
Os ritos fúnebres faraónicos visavam garantir que ele retornaria para o lugar de onde viera ao nascer: para junto dos demais deuses. Originalmente apenas o faraó podia ter o túmulo decorado, uma vez que a decoração funerária era parte integrante dos ritos secretos para a sua imortalização. Gradativamente as elites conquistaram esse privilégio, embora com restrições canónicas de limitarem a sua decoração a cenas quotidianas. Esse tabu eventualmente caiu, mas a linguagem da decoração das elites não-reais manteve-se basicamente como no princípio.
As demais “pessoas comuns” simplesmente não podiam recorrer aos benefícios mágicos da decoração funerária, pois estavam excluídas do monopólio. Restava-lhes um culto muito mais simples, de natureza doméstica e familiar.
Fala-se muito dos gatos nas representações visuais dos antigos egípcios. Mas há vários outros animais nessas representações. Você pode falar um pouco sobre o lugar que os animais ocupavam nessas narrativas artísticas funerárias?
Esse tipo de representação é muito amplo. Os significados podem variar imensamente. Tomemos por exemplo um ganso. Dependendo de onde ele esteja representado, pode-se tratar de uma alusão a Amon-Rá. Uma revoada deles no pântano pode representar as forças do caos primordial. Uma gaiola com gansos pode implicar no triunfo da Ordem sobre o Caos. Pode-se recorrer a animais numa cena para a criação de trocadilhos mágicos, como a palavra “serpente”, que é homófona de “eternidade” em egípcio.
Animais domésticos/domesticados (cães, gatos, babuínos) também são comuns em cenas de lazer (caça e pesca) ou auxiliando em tarefas (mulas carregando fardos de trigo), personificando divindades (falcão-Hórus, leão-Sekhmet, babuíno-Toth, …) e demônios (hipopótamos, crocodilos, …). A presença de animais pode ser constatada sob a forma de alimentos em cenas de oferenda e procissões. Eles ainda podem aparecer em estado selvagem (caótico) e/ou em processo de captura/caça (submetidos pela Ordem).
Como citar esta entrevista
PEREIRA, Ronaldo G. Gurgel. Uma história da arte funerária egípcia: entrevista com Ronaldo G. Gurgel Pereira. Entrevista a Bruno Leal. In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/arte-funeraria-egipcia/. Publicado em: 28 out. 2019. Acesso: [informar data].