“Os mortos na Guerra Civil não são apenas dos familiares, são de todos nós”

O Congresso da Espanha aprovou em setembro de 2020 o anteprojeto da “Lei da Memória Democrática”, que pretende ampliar o anteparo jurídico para a busca de desaparecidos e a exumação de sepulturas no país. O estudo desses vestígios é a especialidade de González Ruibal, cientista do Conselho Superior de Investigações Científicas (CSIC) e ativo divulgador da arqueologia, disciplina que, segundo ele explica, “está acostumada a lidar com grupos silenciados”.
16 de novembro de 2020
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Alfredo González Ruibal é doutor em Arqueologia Pré-histórica pela Universidade Complutense de Madrid e cientista titular do Instituto de Ciências do Património do CSIC. / Álvaro Minguito Palomares
Alfredo González Ruibal é doutor em Arqueologia Pré-histórica pela Universidade Complutense de Madrid e cientista titular do Instituto de Ciências do Património do CSIC. / Álvaro Minguito Palomares

Alfredo González Ruibal é doutor em Arqueologia Pré-Histórica pela Universidade Complutense de Madrid e cientista titular do Instituto de Ciências do Património do CSIC. Ele é autor de “Voltar às trincheiras. Uma arqueologia da Guerra Civil” (sem tradução para o português). Em sua conta no Twitter (@GuerraenlaUni), o pesquisador costuma explicar suas próprias pesquisas e também as de outros colegas. Entre os temas que ele mais discute está a Guerra Civil Espanhola e o pós-guerra.

Quais são as deficiências da atual lei da memória histórica?

Apesar das grandes críticas que a Lei 52/2007 recebeu, creio que, no geral, ela foi valiosa e justa. Vários aspectos podem ser criticados, é claro, como a ênfase dada ao aspecto familiar, individual e pessoal da memória. Quando falamos da violência política, particularmente a do Estado, nós falamos de um fenômeno social e, portanto, da memória coletiva. Isso não implica uma única memória; há muita confusão sobre isso.

Também é condenável que os julgamentos do regime de Franco não tenham sido anulados, embora se trate de um assunto complicado e sobre o qual os juristas devem se pronunciar. A lei da memória, em todo caso, foi mal interpretada por algumas pessoas como uma tentativa totalitária de impor uma única verdade histórica. Mas a leitura da lei mostra como essa crítica é infundada. Ora, o fato de não haver intenção de impor uma história monolítica não significa que qualquer interpretação da história seja válida.

O que você acha da aprovação agora de uma nova lei da Memória Democrática?

É fundamental construir aquilo que os anglo-saxões chamam de “narrativa mestra”, algo como uma história básica e comum sobre o passado que seja capaz de captar o sentimento democrático da maior parte da sociedade e que, portanto, possa ser compartilhada pela maioria das pessoas. Isso não é incompatível com outras interpretações históricas. Essa narrativa não pode ser imposta por lei, é claro, mas a lei pode criar mecanismos que ajudem a gerar esse tipo de relato. Por exemplo, através de uma Comissão da Verdade, como aquelas que foram criadas em várias situações pós-ditatoriais ou pós-conflito, da Colômbia à África do Sul.

O que deve refletir?

Parece-me que duas coisas são essenciais em uma nova lei da memória. Por um lado, um maior envolvimento direto do Estado. Precisamos de algo como uma Comissão de Túmulos de Guerra da Commonwealth, que administre os túmulos (sejam civis ou militares, de um lado ou de outro), a recuperação de restos mortais, sua identificação e seu digno enterro com a presença das autoridades. Por outro lado, a promulgação da lei exige um importante trabalho pedagógico. Se isso não acontecer, voltaremos a ouvir histórias infundadas sobre a tentativa totalitária de impor uma memória única.

Também se fala em homenagear os antifascistas espanhóis.

Em última instância, o problema é que a Espanha esteve do lado dos “bandidos” durante a Segunda Guerra Mundial. O regime de Franco, embora oficialmente não beligerante, alinhou-se com as potências fascistas e enviou dezenas de milhares de soldados para lutar ao lado dos nazistas. Durante décadas, o único relato do papel da Espanha durante a guerra foi o da “Divisão Azul”, isto é, aquele de “combate o comunismo”. Na Guerra Fria, essa história encontrou um encaixe fácil e, por inércia, permaneceu no período democrático sem que houvesse qualquer tentativa oficial de mudá-la. Além disso, o Estado colaborou na exumação e repatriação dos combatentes da Divisão Azul, esquecendo os antifascistas e as vítimas dos campos de concentração nazistas.

Por que tanto demora para fazer algo que outros países fizeram por décadas?

Recuperar essa história sempre foi uma questão complicada, porque ela traria à tona a estreita relação de Franco com o nazismo, e teria minado a imagem mais ou menos benevolente do regime que se estendeu no fim da ditadura e durante a transição. Assim como nas exumações de indivíduos represaliados, lembrar as vítimas do nazismo e aqueles que o combateram seria “reabrir as feridas”, além de estender a guerra civil até a Segunda Guerra Mundial (na qual os espanhóis mais uma vez lutaram).

Isso pode explicar o contexto, mas por que nada foi feito antes? Era compreensível na Transição. Mas depois já não era. Como vimos, tomar decisões contundentes não supõe nenhum trauma.

Você estuda o patrimônio arqueológico da guerra civil. Ele está bem preservado na Espanha?

A guerra na Espanha foi em grande parte um fenômeno rural. Ao passar por áreas muitas vezes escassamente povoadas e posteriormente afetadas pelo êxodo para a cidade, a frente de batalha foi bem preservada em grande parte do país. Na verdade, os restos mortais aqui são geralmente muito mais bem preservados e mais visíveis do que no caso das duas guerras mundiais na Europa. É um recurso patrimonial excepcional que deveria ser aproveitado. Existem várias iniciativas em curso, mas seria necessária uma maior coordenação entre as administrações para definir objetivos mais ambiciosos.

Há casos como o da casamata de metralhadoras da Guerra Civil, que será movimentado pelas obras de expansão do IFEMA (Institución Ferial de Madrid). Que outros lugares foram recentemente destruídos ou removidos deste patrimônio?

A transferência de monumentos é relativamente comum. O ideal é que permaneçam onde foram construídos, mas nem sempre isso é possível. A “Puerta de Hierro” em Madrid mudou várias vezes de localização devido à expansão das estradas. Na Espanha existem milhares de quilômetros de trincheiras e milhares de fortes da Guerra Civil, não se pode esperar que tudo seja preservado ou musealizado. O que se exige é que exista uma boa documentação de tudo e que, antes de iniciar as obras, sejam realizadas as intervenções arqueológicas necessárias, como em qualquer outro tipo de patrimônio.

Houve algum progresso nessa direção nos últimos anos?

Avançou muito em várias comunidades, inclusive na Comunidade de Madrid, a fim de se proteger este legado. Contudo, a pergunta não é tanto por que um determinado monumento é destruído ou modificado, mas que tipo de política econômica temos que requer agressões constantes ao meio ambiente e ao patrimônio cultural para prosperar.

Você mencionou que, embora se diga muitas vezes que a Guerra Civil foi uma luta entre irmãos, os dados indicam que foi de classe. Como isso é documentado?

De fato, muitas famílias foram separadas pela guerra, mas a verdade é que era mais comum elas apoiarem um lado ou outro e que isso tinha muito a ver com a sua origem social. Embora não seja impossível, é raro um marquês defender o anarquismo ou um operário da Extremadura (comunidades autônoma da Espanha) se apresentar como falangista. De um modo geral, as classes populares apoiaram a República e os ricos a insurreição, embora haja, é claro, uma grande área cinzenta.

A que se refere?

O conflito de classes é visto claramente nos túmulos. Vítimas de violência direitista são de baixa estatura, seus ossos mostram sinais de desnutrição e lesões causadas por esforço físico, seus dentes estão em más condições e os objetos associados a elas indicam pobreza (por exemplo, alpargatas de pneu de borracha). No caso das vítimas da violência revolucionária, devemos recorrer aos relatórios da Causa Geral, visto que as exumações foram realizadas no pós-guerra, mas os objetos mencionados geralmente indicam um status elevado (canetas-tinteiro, ternos, chapéus , dentaduras).

Estamos falando sobre a guerra na retaguarda. Na linha de frente da batalha, a situação é diferente, pelo menos desde o início de 1937, visto que os combatentes vêm cada vez mais de levas obrigatórias e o elemento de classe é mais difuso.

Existem numerosos estudos sobre valas comuns da Guerra Civil. Que parte da história ainda está enterrada com esses corpos?

As valas comuns oferecem um retrato único da sociedade espanhola de 1936 por meio de objetos e restos de esqueletos. Eles nos falam sobre a ocupação do povo, suas ideologias, suas aspirações, suas doenças e seu estado de saúde. Também de pessoas como indivíduos únicos, algo que a violência política tentou aniquilar. Os túmulos também são um retrato tão preciso quanto aterrorizante da forma como foi feita a repressão, algo que não pode ser acessado apenas por meio de fontes escritas, pois grande parte da violência foi irregular e não deixou registro documental.

Por que é necessário trazê-lo à luz, senão para que seus parentes recuperem os restos?

Graças às exumações, conhecemos muitos detalhes do modus operandi dos assassinos e o impacto da violência em diferentes partes da Espanha e em diferentes grupos, como as mulheres. Por outro lado, os mortos da Guerra Civil não são apenas mortos dos familiares, mas de todos nós. Devemos nos preocupar com eles, assumir responsabilidades, seja qual for o lado que estejam. É uma questão de humanidade.

O que você está pesquisando atualmente?

Um dos aspectos que me interessa como pesquisador é o período do pós-guerra, principalmente do ponto de vista das vivências de mulheres e os familiares de prisioneiros. As mulheres, em particular, foram duplamente silenciadas, como republicanas e por causa de sua feminilidade.

A arqueologia costuma lidar com grupos silenciados, pois aborda o passado por meio de objetos silenciosos e pode explorar as experiências cotidianas de grupos marginalizados por meio da cultura material. No caso do pós-guerra, verificamos que este estudo é viável por meio da análise dos assentamentos improvisados ​​que proliferaram em torno dos destacamentos penais, onde prisioneiros republicanos resgataram suas sentenças. É um projeto que iniciamos há anos e que agora estou tentando retomar.

Como citar este artigo

RUIBAL, González. “”Os mortos na Guerra Civil não são apenas dos familiares, são de todos nós” (Entrevista por Eva Rodriguez). In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/arqueologia-e-guerra-civil-espanhola/. Publicado em: 16 out. 2020. ISSN: 2674-5917.Texto publicado originalmente em espanhol no blog SiNC, com direitos cedidos por Creative Commons. Tradução: Bruno Leal.

Eva-Rodríguez-Nieto

Jornalista e redatora do SINC, portal espanhol especializado em informação em ciências naturais e sociais.

2 Comments Deixe um comentário

  1. Muito interessante artigo , a entrevista, creio que nos, brasileiros, podemos usar desses recursos para as questões nacionais durante os “anos de chumbo”

  2. Excelente texto, pois desnuda aspectos tanto da Guerra Civil Espanhola, quanto da Espanha durante a 2ª Guerra Mundial, quando houve “campos de concentração na Espanha.” Tudo muito triste e desumano. Somos humanos, fazemos parte de uma mesma família, a humanidade, e quando um povo ou país é trucidado, toda a HUMANIDADE É ATINGIDA.

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