“Querido Sr. Hitler!
Gostaria de desejar-lhe muitas felicidades em seu aniversário e dizer que espero que o Senhor vença as eleições do próximo dia 24, para salvar a Alemanha!! 90% dos que moramos aqui em Liebenberg somosNazis [sic] e votamos no senhor. Nós também iremos seguir as suas ordens com alegria; e com bandeiras e emblemas vamos comemorar o seu aniversário!”
O trecho da carta escrita pela pequena Elga Janoljmek, de 12 anos, e endereçada a Hitler às vésperas de seu aniversário, revela um pouco do entusiasmo de setores da sociedade alemã com a possibilidade de os nazistas chegarem ao poder e “salvarem” a Alemanha. É possível que Elga tenha sobrevivido à guerra, casado e tido filhos e netos.
No entanto, parece muito pouco provável que seus possíveis filhos e netos tenham desenvolvido a mesma relação com a imagem do Führer que sua mãe a avó desenvolve nas décadas antes, durante o período do Terceiro Reich. Eles teriam, talvez, se colocado algumas questões fundamentais: como foi possível que Hitler tivesse se tornado chanceler alemão?
Mais ainda: como foi possível que ele – um fracassado artista austríaco, ex-cabo do exército alemão, veterano da Primeira Guerra Mundial sem qualidades militares excepcionais, afastado do front ocidental após apresentar um quadro de “cegueira histérica”, e que havia vivido no completo anonimato político pelo menos até o início de seus 30 anos de vida – arrebanhasse multidões com seu discurso de superioridade racial e as conduzisse à destruição nos campos de batalha da Europa, animadas pela defesa de um mito encarnado nele próprio?
Ou ainda: como foi possível que uma sociedade complexa, de um país moderno e desenvolvido econômica e tecnologicamente no centro do continente europeu, seguisse um tirano de personalidade narcisista e intenções megalomaníacas? Em suma, de que maneira relacionavam-se os alemães com o seu Führer?
Embora os filhos e netos de Elga Janoljmek sejam aqui fruto de um exercício de imaginação, as perguntas não o são. Além de terem ocupado os historiadores desde o fim da Segunda Guerra Mundial, elas enredam hoje a exposição “Hitler e os alemães: Volksgemeinschaf(2) e crime”, em cartaz de outubro deste ano a fevereiro de 2011 no Museu Histórico Alemão, em Berlim – na qual a carta da pequena Elga é apenas uma das peças expostas.
A exposição mostra que o regime nazista se manteve no poder – principalmente nos primeiros anos – graças a concessões habilmente feitas às elites e que, apesar da indiscutível aprovação de que gozava o governo de Hitler, pelo menos até 1938, houve importantes tentativas de sublevação, tanto em meios militares quanto civis, como a muito famosa Operação Valquíria, comandada pelo Conde von Stauffenberg, e também, a talvez menos conhecida dos brasileiros, organização “Rosa Branca”, dos jovens irmãos Hans e Sophie Scholl, que tentaram sublevar, em 1942, os estudantes de Munique contra o Terceiro Reich. Uma relação de fascinação, oportunismo e repulsa.
Organizada de forma temática, a exposição começa numa sala que busca explicar a origem do “mito do Führer”, que conferiu à liderança de Hitler essa característica mística que levou parcelas da população alemã a uma devoção quase religiosa ao culto de sua imagem. Entre bustos de Bismarck e do folclórico Siegfried, o herói da Canção dos Nibelungos, estão as conhecidas fotografias do ditador nazista ensaiando suas performances para os discursos, o que sugere uma adaptação mútua, de Hitler ao mito e do mito a Hitler, numa simbiose consolidada pelo trabalho de propaganda, tanto com os jornais e filmes, quanto com os onipresentes bustos e retratos do Führer nas praças e repartições públicas.
Entre imagens de massas de homens, mulheres e crianças sorridentes lançando-se uns sobre os outros, contidos pelos guardas (também sorridentes!), cenas de fuzilamentos de homens esquálidos enfileirados numa vala comum. Uma placa metálica pintada em azul com as bordas brancas e as letras igualmente em branco: “Adolf-Hitler-Platz”; outra, dessa vez branca com as bordas e as letras em tinta negra, dizia: “Adolf-Hitler-Straße”.
O homem que ofereceu seu nome de batismo às praças e ruas era o mesmo em nome do qual homens com uniformes militares fuzilavam civis em valas comuns na Europa oriental. A eutanásia, a perseguição aos judeus, ciganos, homossexuais e outros indivíduos que não se enquadravam nessa “Comunidade do Povo” (Volksgemeinschaft) criada pelos nazistas, todos esses temas cercam os visitantes nas fotografias e imagens de vídeo dispostas no alto das paredes da sala lotada.
Última sala. Um nome sugestivo: “Hitler e o ‘sem-fim’” (Hitler und kein Ende). A exposição termina, mas não no museu. Cheia de recursos interativos, nesta sala o visitante pode clicar nos monitores e assistir a vídeos curtos do YouTube que parodiam cenas do filme “A Queda: as últimas horas de Hitler”, ou a bem-humorados curtas-metragens de animação sobre os últimos momentos do ditador nazista em seu Bunker na capital alemã cercada pelos soviéticos.
Nas paredes, acima dos monitores, inúmeras capas de reportagens especiais da revista Der Spiegel sobre o tema do nacional-socialismo nos fazem entender que o nome da sala não foi dado à toa: refere-se ao contato que se tem, e que se deve ter, com a história do regime nazista.
Esta é a primeira vez que uma exposição tem por objetivo discutir a relação entre a sociedade alemã e Hitler. Não seria, portanto, dessa vez que passaria sem gerar muita polêmica. Impossível, porém, vir num momento mais oportuno. Desde os anos 1990 o número de testemunhas vivas do horror do Holocausto vem diminuindo muito. Também são poucos os que estão vivos daqueles que durante o Terceiro Reich tinham idade suficiente para trabalhar para o regime ou servir na frente de batalha. Com o desaparecimento destes, cresce a primeira geração que não terá contato ou com um sobrevivente dos campos de concentração, ou com um ex-membro do partido nazista.
Entretanto, uma pesquisa publicada na edição da semana de 10 de novembro de 2010 do jornal Die Zeit mostra que boa parte dos jovens alemães ainda se interessam pelo tema e dedicam-se a tomar mais conhecimento sobre o assunto. A pesquisa mostra, por exemplo, que 67% dos jovens entrevistados concordam com a afirmação de que é uma obrigação de sua geração preocupar-se para que a história do nacional-socialismo e do Holocausto não caia no esquecimento. No entanto, apenas 29% dos jovens entrevistados são da opinião de que existe a possibilidade de que algo como o nacional-socialismo possa voltar a passar na Alemanha.
Esse é um tipo de certeza perigosa. Desde setembro de 2009, quando o então senador de Berlim, Thilo Sarrazin, expressou abertamente suas idéias sobre os imigrantes árabes e turcos na Alemanha, o debate sobre o extremismo de direita tomou uma nova densidade. Segundo ele, os árabes e turcos não se integrariam à sociedade alemã, não porque não desejassem, mas porque seriam incapazes.
Segundo suas próprias palavras, um número de aproximadamente 20% da população de Berlim não poderia ser “usada economicamente” e ele propõe, então, a completa suspensão do auxílio financeiro fornecido pelo Estado alemão aos imigrantes das camadas sociais inferiores. Sarrazin, entretanto, não é um aventureiro na política alemã: tem 35 anos de vida pública à frente de órgãos importantes, como a Deutsche Bahn (as ferrovias alemãs) e o Banco Federal Alemão.
Este ano, Sarrazin publicou um livro intitulado “A Alemanha se destrói” (“Deutschland schafft sich ab”), no qual desenvolve mais as teses expostas acima. Membro do SPD, o partido social-democrata alemão, ele não foi expulso do partido porquê, segundo dizem, existe o temor de que sua fama aumente, caso seja “martirizado”. Suas ideias já encontram admiradores não apenas nos meios neo-nazistas alemães, mas em diversos setores da sociedade, defensores de uma política de integração “mais enérgica”.
O cuidado para que essas ideias de exclusão social não encontrem cada vez mais adeptos no mundo de hoje passa pelo recurso a alternativas educacionais e de difusão da informação sobre o regime nacional-socialista, sobre os crimes cometidos sob a liderança nazista e a respeito da fascinação exercida pela imagem do Führer sobre a sociedade alemã. Certamente, as palavras da pequena Elga refletiam o orgulho dos pais, vizinhos e professores, empolgados pela possibilidade de serem conduzidos, por Hitler, para uma “glória alemã” ansiosamente esperada desde o fim da Primeira Guerra Mundial.
Iniciativas como a exposição do Museu Histórico Alemão ajudam muito no intuito de impedir que tais ideologias encontrem tão facilmente novos adeptos, mas é também no movimento cotidiano de busca do fortalecimento de valores humanistas e democráticos que o combate ao extremismo político deve se tornar real e constante. Sobretudo no mundo pós-1945 não existe a possibilidade de esquivar-se da responsabilidade de buscar evitar que uma ideologia radical como o nacional-socialismo volte ao poder.
Como citar este artigo
GAK, Igor. Ao Führer, com carinho: Hitler de novo em Berlim(artigo). In: Café História – história feita com cliques. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/ao-fuhrer-com-carinho Publicado em: 16 nov. 2010.