Bibliografia inicial para estudar o mundo digital antropologicamente

O interesse de historiadores e antropólogos pela pesquisa no universo digital só cresce nos últimos anos. Confira a bibliografia comentada que o historiador e antropólogo Juliano Spyer escreveu sobre o tema para o Café História.
24 de dezembro de 2018
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Antropologia Digital
Interação de pessoas via computador em sido examinada por antropólogos. Fonte: Pixabay.

A antropologia digital soa ao mesmo tempo uma ideia esquisita e promissora. Promissora porque sugere campos ainda pouco pesquisados, apesar da importância global que equipamentos como o celular têm hoje. Esquisita porque, para muita gente, inclusive para alguns antropólogos, o nosso tema de pesquisa deveria ser gente; gente se relacionando frente a frente; de preferencia pessoas diferentes “da gente” e que moram em lugares muito muito muito distantes e difíceis de chegar. Mas apesar dessa desconfiança de alguns acadêmicos, o interesse pelas possibilidades de pesquisar temas relacionados ao digital vem emergindo em espaços acadêmicos.

Hoje existem – até onde eu sei, me corrijam, por favor – três departamentos no mundo anglófono que atraíram e constituíram grupos de antropólogos interessados em aspectos do impacto da comunicação digital na sociedade. Eles são o departamento de antropologia da Universidade da Califórnia em Irvine; o Digital Ethnography Research Centre em Melbourne; e o Centre for Digital Anthropology na University College London, que é onde eu fiz mestrado e doutorado.

A pedido do Café História ofereço aqui cinco indicações de livros para quem se interessar por esse tema e quiser ter um primeiro contato com essa literatura. Os livros desta lista não são necessariamente os mais importantes; são os que refletem a minha trajetória pesquisador brasileiro e como aluno do professor Daniel Miller da UCL, que é um dos antropólogos que desde 2001 faz pesquisa sobre esse tema. Divirta-se!

Trecos, Troços e Coisas (Zahar 2011)

Esse é um dos poucos livros de Miller disponíveis em português. É uma introdução ao tema de pesquisa anterior dele, que é a cultura material. É um bom ponto de partida para se pensar o mundo digital porque o caminho que Miller propõe vem de um entendimento material da internet e da comunicação digital. A gente se acostumou em falar do digital em relação a coisas imateriais como linhas de código, sequencias de zeros e uns que existem talvez como pulsos elétricos. Tudo parece estar nesse lugar abstrato que hoje chamamos de “nuvem”. Essa percepção obscurece o quanto existe de materialidade na nossa relação com a internet. Me refiro, por exemplo, aos equipamentos, os milhares de quilômetros de cabos e servidores em gigantescos galpões distantes, satélites de comunicação e finalmente dos equipamentos com os quais cada pessoa usa para acessar serviços digitais. Trocos, Troços e Coisas é um livro introdutório acessível para qualquer leitor que tenha terminado o ensino médio, então, você vai ter uma noção das pesquisas nesse campo da cultura material e também, possivelmente, se divertir aprendendo.

Coming to Age in Second Life (Princeton University Press, 2015)

De certo modo, este livro do americano Tom Bolellstorf, professor de antropologia da Universidade da Califórnia, Irvine, vai em um sentido diferente do apontado por Daniel Miller. Para quem não sabe ou não se lembra, o Second Life é um mundo virtual. Não é um jogo; é um espaço paralelo onde cada pessoa pode habitar a partir de um corpo digital que pode ser inventado. No Second Life você pode ser o que quiser. Ter outro sexo diferente do seu sexo biológico é o mais fácil; o limite do corpo que você quer habitar é o limite da sua imaginação e capacidade de realização. Esse estudo tem um aspecto metodológico importante: a ideia (muito antropológica) de que o antropólogo deve viver o mundo de quem se está estudando. No caso de Boelstorff, ele poderia ter encontrado e entrevistado as pessoas de carne e osso que usam o Second Life; em vez disso, ele criou um corpo virtual e foi encontrar as pessoas que vivem lá dentro, e conhece-las da maneira como elas escolheram se apresentar.

How the World Changed Social Media (UCL Press 2016, baixe PDF grátis https://goo.gl/nKboU3)

Esse é o produto da primeira pesquisa comparativa sobre como pessoas de lugares diferentes do mundo pensam e usam as mídias sociais. Eu fui um dos nove pesquisadores que participaram desse estudo de seis anos e que resultou, entre outras coisas, neste livro. A semente deste projeto, chamado Why We Post, foi a percepção de que falar de internet geralmente significa pensar em um grupo de pessoas muito específico. Porque a internet é geralmente associada a modernidade e futuro, falar de internet traz à mente pessoas jovens, geralmente com curso universitário, geralmente moradores da América do Norte ou da Europa, geralmente brancos e geralmente do sexo masculino. O entendimento dessa associação é que todos as outras maneiras de pensar e usar a internet e as mídias sociais é menos importante e provavelmente menos qualificada. Por isso, os integrantes dessa equipe se mudaram para localidades em países como Turquia, Índia, Chile, Brasil e China para, ao longo de 15 meses, ver como os moradores locais percebiam e usavam essas tecnologias de comunicação. E essa maneira de fazer pesquisa vai no sentido oposto do livro sobre o Second Life. Em vez de conhecer as pessoas apenas digitalmente, para o nosso grupo, era importante conhecer a pessoa quando ela estava e também quanto ela não estava online. O contraste dessas duas perspectivas pode ser útil para quem for escrever um projeto de pesquisa e for falar sobre método.

Mídias Sociais no Brasil Emergente (educ 2018)

Como os outros pesquisadores do Why We Post, eu também publiquei a minha monografia, e ela está disponível em português e – olha que bacana – pode ser comprada em papel ou baixada grátis em PDF(aqui https://goo.gl/D34HKY ). Esse estudo aconteceu em um bairro trabalhador no interior do estado da Bahia e eu quis estudar por que motivo o brasileiro das classes C e D dá tanto valor à internet a ponto de ele ter financiado grande parte de sua inclusão digital. Esses brasileiros precisam fazer um esforço maior para comprar equipamentos para acessar a Rede e também para compensar pela baixa escolaridade na medida em que ler e escrever são práticas importantes para se acionar um computador (ou um smartphone) para utilizar serviços digitais. Por que eles fizeram isso? O que eles viram e veem de importante na internet? A minha pesquisa busca respostas para questões como estas. Assim como no caso dos meus colegas de projeto, examino no caso brasileiro como esse grupo, que representa mais de 50% da sociedade, reinventou e reinventa o uso da internet a partir de suas necessidades.

Hanging Out, Messing Around, Geeking Out

Minha última recomendação é de um livro de outro antropólogo da Universidade da Califórnia, Irvine, a japonesa Mimi Ito. Este também é o resultado de um estudo comparativo que envolveu um grupo de pesquisadores fazendo trabalho de campo conjuntamente (o que não é muito comum na antropologia). Existe uma percepção difundida em setores da nossa sociedade de que a internet é um espaço que cria problemas para a educação. É comum a gente ouvir profissionais da educação reclamarem da queda de atenção nas aulas que resulta, por exemplo, da popularização do uso dos telefones celulares. Esta pesquisa liderada por Ito se baseia em estudos anteriores no campo da antropologia do aprendizado. Esses estudos sobre aprendizado ajudam a mostrar como os ambientes de relacionamento e socialização em rede – como são, por exemplo, Instagram e YouTube – são locais onde pessoas com interesses compartilhados se encontram e que, por isso, elas estabelecem uma dinâmica de aprendizado; que pode ser ou não ser o aprendizado que os educadores gostariam. Esse aprendizado por ser: como fazer programas, como editar vídeos, como tirar fotos, etc. E os resultados desse estudo (existem outros conteúdos além do livro), apesar de estarem em inglês, também podem ser baixados online gratuitamente aqui https://goo.gl/Ldd4BR .

Como citar essa bibliografia comentada

SPYER, Juliano. Bibliografia inicial para estudar o mundo digital antropologicamente. (Bibliografia Comentada). In: Café Históriau. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/antropologia-digital/.  ISSN: 2674-5917. Publicado em: 24 dez. 2018.

Juliano Spyer

Doutor pelo Programa de Antropologia Digital, da University College London, orientado pelo professor Daniel Miller. Possui mestrado em antropologia digital (com distinção) pela mesma instituição. É graduado em história pela Universidade de São Paulo (USP). Faz parte do Global Social Media Impact Study, financiado pelo European Research Council. É autor do livro Conectado - o que a Internet fez com você e o que você pode fazer com ela (Jorge Zahar, 2007) e Mídias Sociais no Brasil Emergente (Educ, 2018).

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