Ditadura, resistência e justiça: a trama histórica de “Ainda Estou Aqui”

Super premiado, o filme "Ainda estou aqui" tem uma história real muito triste e bonita, ao mesmo tempo.
26 de janeiro de 2025
Família tira foto em casa para a imprensa. Cena de "Ainda estou aqui". Foto divulgação.
Família tira foto em casa para a imprensa. Cena de "Ainda estou aqui". Foto divulgação.

Três indicações ao Oscar 2025 (nas categorias de “melhor filme”, “melhor filme internacional” e “melhor atriz”) e muitos outros prêmios e indicações na bagagem têm feito muita gente se perguntar: o filme de Walter Salles, Fernanda Torres e Selton Mello conta mesmo uma história real?

A resposta é sim. O filme conta uma história real.

“Ainda estou aqui” retrata a trajetória de vida da advogada e ativista Eunice Paiva (1929-2018), que teve o marido, o ex-deputado Rubens Paiva (1929-1971), sequestrado e assassinado pela ditadura militar brasileira (1964-1985). Após saber que o marido foi morto pela repressão, Eunice iniciou uma incansável luta por justiça. Ela queria saber onde estava o seu marido e como ele havia sido morto. Essa luta, e algumas outras, fizeram dela uma liderança no campo dos direitos humanos.

Eunice e Rubens tiveram cinco filhos que fazem parte desta história: Marcelo Rubens Paiva, que escreve o livro que dá origem ao filme, Vera Paiva, Maria Eliana Facciolla Paiva, Ana Lucia Facciolla Paiva, Maria Beatriz Facciolla Paiva. Mas há muito mais o que dizer sobre essa história.

A ditadura militar

A ditadura militar no Brasil foi um regime autoritário que vigorou entre 1964 e 1985, marcado por violações de direitos humanos, censura e repressão política. O regime começou com o golpe civil-militar de 31 de março de 1964, que depôs o presidente democraticamente eleito João Goulart. Sob o pretexto de combater uma suposta ameaça comunista e preservar a ordem, os militares assumiram o controle do governo, implantando um sistema centralizado de poder que restringiu as liberdades democráticas e perseguiu opositores.

Centrais de trabalhadores, estudantes, partidos políticos, parlamentares, universidades, organizações não-governamentais, jornais, escritores e intelectuais: esses foram os principais alvos da repressão, que ao longo de 21 anos, prenderia, torturaria e mataria centenas de pessoas.

A ditadura sempre foi violenta, do primeiro ao último dia, mas a situação se tornou ainda mais perigosa a partir de 1968, quando várias liberdades importantes foram suprimidas com o Ato Institucional N.5. Um desses direitos foi o habeas corpus.

O habeas corpus é um instrumento jurídico destinado a proteger a liberdade de locomoção de alguém que esteja sofrendo ou podendo sofrer prisão ilegal, ou arbitrária. Garantido hoje pela Constituição, pode ser solicitado por qualquer pessoa, sem necessidade de advogado.

O golpe de 1964 foi motivado por um conjunto de fatores internos e externos. No plano interno, havia um clima de instabilidade política e econômica, alimentado pelas chamadas reformas de base propostas por Goulart, como a reforma agrária e a nacionalização de empresas estrangeiras, que enfrentaram forte resistência de setores conservadores, empresariais e das Forças Armadas.

Grupos estrangeiros, latifundiários e militares viam nas medidas do presidente uma ameaça aos seus interesses e/ou associavam suas políticas a uma aproximação com o socialismo. Mas Goulart jamais foi socialista ou comunista. Sua tradição política era o trabalhismo; era herdeiro de Vargas.

Ditadura-Militar-Brasilia
Policiais sobre o Congresso Nacional em outubro de 1966. Arquivo Nacional, Correio da Manhã, PH FOT 01996.005.

No contexto internacional, a Guerra Fria desempenhou um papel crucial. Os Estados Unidos, temendo a influência do comunismo na América Latina após a Revolução Cubana de 1959, apoiaram diretamente o golpe militar no Brasil, fornecendo suporte financeiro e logístico aos conspiradores, como já apontaram vários historiadores. Essa intervenção fazia parte de uma estratégia mais ampla para conter a expansão socialista na região.

Assim, o golpe de 1964 foi resultado de uma combinação de pressões domésticas e internacionais, levando ao estabelecimento de um regime que marcou profundamente a história política, econômica e social do país.

O fim da ditadura militar no Brasil, em 1985. Ele foi o ponto final de um processo político e social de redemocratização que envolveu milhares de pessoas, organizações e políticos. Seu ponto alto foram as chamadas Diretas Já, uma mobilização nacional que exigia o retorno das eleições diretas para presidente.

Apesar de o primeiro presidente civil, Tancredo Neves, ter sido eleito de forma indireta pelo colégio eleitoral, seu governo representou um símbolo de esperança para o restabelecimento das instituições democráticas. A Constituição de 1988 consolidou esse período, garantindo direitos fundamentais e fortalecendo a participação popular no país.

Rubens Paiva

Quando o golpe de 1964 aconteceu, vários parlamentares tiveram seus cargos cassados pelo Ato Institucional N.1. Rubens Paiva foi um desses parlamentares. Ele tinha sido eleito deputado federal pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), o mesmo de Goulart, em 1962.

Depois da cassação, sem direitos políticos, Paiva se autoexilou na Europa com a família. Mas pouco menos de cinco meses depois, retornou para o Brasil. Seu destino, pelas passagens compradas, era Montevidéu, no Uruguai, mas quando parou no Rio de Janeiro para fazer escala, despistou a tripulação e desembarcou. “Estou no Brasil e vou ficar no Brasil”. Não quero exílio nem clandestinidade”, disse.

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No país, Paiva, que era engenheiro formado, voltou a exercer a profissão, mas continuou agindo politicamente nos bastidores, sobretudo para ajudar pessoas que eram alvo da repressão. Segundo o seu biógrafo, Jason Tércio, havia registros de que Paiva participava de reuniões sindicais, professores e militantes. Além disso, ele mantinha algum tipo de relação com grupos revolucionários de esquerda, como o MR-8, e enviava cartas de militantes políticos exilados no Chile.

“A família nunca soube dessas atividades paralelas do Rubens. Então, ele tinha esse tipo de imprudência e idealismo. Ao mesmo tempo, era uma coragem política muito grande”, avalia Tércio.

A polícia política estava ciente dessas movimentações e monitorava atentamente seus passos, mas com discrição, já que Paiva, por ter sido, anos antes, um deputado popular, ganhara bastante projeção nacional.

Em janeiro de 1971, Paiva foi preso, acusado de ter ligações com grupos considerados subversivos pelo regime militar. Sua prisão aconteceu após a interceptação de uma carta endereçada a ele e supostamente enviada por um exilado político. Levado para o DOI-CODI, um dos mais temidos órgãos de repressão, Rubens foi torturado e desapareceu. Os historiadores estimam que sua morte ocorreu entre 10 e 22 de janeiro de 1971.

Eunice Paiva

Para Eunice Paiva, sua esposa, não adiantava saber quando o seu marido foi assassinado. Ela precisava de evidências, reconhecimento e justiça. Assim, ela começou uma longa jornada em busca de respostas. Isso, em plena ditadura militar, e após sofrer vários abusos psicológicos – Eunice e a filha Eliana, de 15 anos, ficaram detidas no DOI-CODI do Rio de Janeiro. Eliana permaneceu detida por 24 horas no local, Eunice por 12 dias.

Como muitas outras famílias de desaparecidos políticos, ela enfrentou o silêncio, a censura e a intimidação por parte das autoridades.

A imprensa, que era vigiada, censurada e, não raro, conivente, também não fez muita coisa. Ao mesmo tempo, Eunice precisava lidar com o desafio de criar cinco filhos pequenos sozinha. Apesar de seu sofrimento, Eunice não se deixou abater. Mudou-se para São Paulo, estudou Direito, formou-se e se tornou uma advogada respeitada, utilizando seus conhecimentos para atuar na defesa dos direitos humanos.

A busca pelo reconhecimento da morte de Rubens nunca saiu de pauta. Ela continuou pressionando as autoridades governamentais, principalmente após a abertura democrática, quando o cenário se tornou mais favorável.

Mas Eunice tinha outras bandeiras como advogada e militante dos direitos humanos. Seu trabalho como advogada foi marcado, por exemplo, pela dedicação em garantir que comunidades indígenas tivessem seus direitos reconhecidos e protegidos. Ela desempenhou um papel crucial na construção de uma legislação mais justa para essas populações, especialmente durante o processo de redemocratização do Brasil.

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O ex-deputado Rubens Paiva entre sua mulher, Eunice e a sua mãe . Ao redor, os cinco filhos – Reprodução/Memorial da Democracia

A luta de Eunice culminou com uma grande vitória na justiça em 1996. Naquele ano, ela finalmente conseguiu obter o atestado de óbito de Rubens Paiva, mais de 25 anos após seu desaparecimento. Esse documento oficializou aquilo que a família já sabia: que Rubens havia sido morto pelas forças de repressão do regime. Essa conquista, embora tardia, simbolizou um importante passo na luta por verdade e justiça em relação aos crimes cometidos durante a ditadura. E levou esperança a muitas outras famílias.

Eunice Paiva faleceu em 2018, aos 86 anos, após uma longa batalha contra o Alzheimer. Mesmo com os desafios impostos pela doença, seu legado permanece vivo. Ela não apenas lutou por sua família, mas também por um país mais justo e consciente de seu passado. Sua história é um lembrete poderoso da importância de nunca desistir diante das adversidades e de lutar por aquilo que é certo, mesmo em tempos de escuridão.

Avanço em 2024

A luta e o trabalho de Eunice continuaram dando frutos mesmo depois de sua morte. Em 2024, a certidão de óbito de Rubens Paiva foi reemitida, com uma nova descrição, mais justa e correta: “não natural”, violenta e causada pelo estado brasileiro. No documento de 1971, o cartório da Sé, em São Paulo, registrou apenas o seu desaparecimento em 1971. 

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O processo de retificação das certidões de óbito das vítimas da ditadura militar segue o fluxo estabelecido pela Resolução nº 601 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), mas o filme de Walter Salles certamente teve papel na aceleração do processo. Agora, outras 413 famílias esperam a retificação nos documentos de mortos e desaparecidos políticos no período da ditadura militar no Brasil. É justiça sendo feita.

Marcelo Rubens Paiva

O impacto do desaparecimento de Rubens e da luta de Eunice também deixou marcas profundas na vida de seus filhos. Marcelo Rubens Paiva, escritor e dramaturgo, transformou essa experiência em matéria-prima para sua obra. Em 2015, publicou o livro Ainda Estou Aqui, que narra a história de sua família, a violência do regime militar e o corajoso enfrentamento de sua mãe contra a opressão. O livro mescla memórias pessoais com reflexões sobre o impacto da ditadura, resultando em um relato íntimo e potente.

Em entrevista recente a Nina Lemos, da Deustche Welle, publicada em novembro de 2024, Paiva falou sobre a mãe:

“A minha mãe é uma heroína mesmo. Ela e muitas outras mulheres eram tudo isso que você falou. A gente vive em uma sociedade patriarcal, né? Existe aquela frase horrorosa: “Atrás de cada homem existe uma grande mulher”, sendo que não é nada disso. Na verdade, do lado de um grande homem existe uma grande mulher. Os dois têm a mesma importância”.

Marcelo também disse que passou a entender mais a mãe depois que teve filho: 

“A minha mãe exerceu um papel mais importante na nossa vida do que o meu pai. Eu fui perceber isso depois de ter filho. E eu acho que o impacto mundial do filme vem justamente dessa necessidade de valorizar as mulheres que não se entregam, que mesmo vítimas de tortura, de mortes horrorosas, elas se reerguem, repensam suas vidas, se reconstroem.”

Em um palco, estão sentados, da esquerda para a direita: Marcelo Rubens Paiva, Zuenir ventura e Ivo Herzog. Paiva é autor de Ainda estou aqui.
Marcelo Rubens Paiva e Ivo Herzog debatem com o jornalista Zuenir Ventura os casos de tortura e morte de seus pais, Rubens Paiva e Vladimir Herzog, durante a ditadura miitar no Brasil(Fernando Frazão/Agência Brasil)

Marcelo Rubens Paiva é um dos mais renomados escritores e dramaturgos brasileiros, conhecido por sua capacidade de transformar experiências pessoais em literatura universal. Além de Ainda Estou Aqui, ele é autor de outras obras icônicas, como Feliz Ano Velho, um livro autobiográfico que aborda o acidente que o deixou tetraplégico e suas reflexões sobre a vida. Seu trabalho é marcado por uma escrita visceral, bem-humorada e sensível, que explora temas como memória, identidade e resistência.

O filme “Ainda estou aqui”

Em Ainda Estou Aqui Fernanda Torres entrega uma interpretação sensível e complexa de Eunice Paiva, capturando tanto a fragilidade e a contradição quanto a força de uma mulher que carregava o peso de uma perda imensa. A direção de Walter Salles, conhecida por seu estilo humanista e detalhista, dá à narrativa um tom visceral e envolvente, transportando o público para os cenários de dor e resistência vividos por Eunice.

Para além de contar a história de uma família, Ainda Estou Aqui lança luz sobre um período sombrio da história brasileira, marcado pela repressão, censura e violação sistemática dos direitos humanos. Ao humanizar a experiência das vítimas da ditadura, o filme contribui para o debate sobre memória e justiça, temas que continuam relevantes no Brasil contemporâneo.

Bruno Leal

Fundador e editor do Café História. É professor adjunto de História Contemporânea do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB). Doutor em História Social. Pesquisa História Pública, História Digital e Divulgação Científica. Também desenvolve pesquisas sobre crimes nazistas, justiça no pós-guerra e as duas guerras mundiais. Autor de "Quero fazer mestrado em história" (2022) e "O homem dos pedalinhos"(2021).

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