O ano é 1939 e a Inglaterra acaba de declarar guerra à Alemanha após a tomada da Polônia pelos nazistas. Entre sirenes, máscaras de gás, exercícios de evacuação e acolhimento em bunkers improvisados, a população de Londres se aglomera em estações de trem e em vias de saída da cidade na busca de refúgio nas zonas rurais. A ameaça de bombardeio à metrópole inglesa por parte dos alemães acabava de se tornar uma possibilidade real. Em sua casa, no subúrbio londrino de Hampstead, Sigmund Freud (Anthony Hopkins) padece de um câncer bucal terminal enquanto tenta manter uma rotina de relativa normalidade. Acompanhado de sua filha – e fiel cuidadora – Anna (Liv Lisa Fries), o psicanalista se encontra em suas últimas semanas de vida. Anna, que seguiu os passos do pai e se especializou em psicanálise e pedagogia, leciona e comanda sua própria clínica direcionada ao tratamento de crianças ao lado de sua companheira de vida Dorothy (Jodi Balfour). Entre Freud e Anna a relação é de codependência e admiração. Anna coloca o pai em um pedestal e cuida dele como uma mãe.
Na zona central de Londres, em meio ao turbilhão de pessoas atarantadas, C.S. Lewis (Matthew Goode) inicia seu percurso até a casa de Freud. O professor de Oxford acabara ficando intrigado com o convite do terapeuta após esse ler o seu livro de ficção “The Pilgrim’s Regress” (1933). Freud era um notório ateísta e Lewis, até pouco tempo, compartilhava da mesma opinião. Mas, como é bastante comum entre pensadores questionadores, Lewis teve uma mudança radical de opinião e passou a defender a existência de Deus se dedicando ao estudo do cristianismo. Lewis fazia parte do grupo de ex-estudantes, escritores e professores da universidade de Oxford que se autointitulava “the inklings” e do qual J.J.R. Tolkien também participava. Além disso, ambos autores tiveram experiências traumáticas em suas épocas de soldados durante a Primeira Guerra Mundial, algo que, assim como ocorreu com Tolkien, marcou Lewis, e consequentemente sua obra, de uma forma profunda.
“Freud’s Last Session” nasceu como peça de teatro pelas mãos do dramaturgo Mark St. Germain. Germain, por sua vez, usou como base de seu roteiro a obra “The Question of God: C.S. Lewis and Sigmund Freud Debate God, Love, Sex, and the Meaning of Life” do professor de psiquiatria Armand Nicholi. A semente do encontro ficcional inusitado surgiu com o boato de que Freud, pouco antes de sua morte, havia passado o dia com um suposto professor da universidade de Oxford. A partir daí Nicholi e Germain criaram a conversa imaginária que poderia ter ocorrido entre os dois sobre os mais diversos campos da vida – morte, sexo, religião, família, política e trauma. A adaptação das obras originais de Nicholi e Germain para o cinema, veio pelas mãos do diretor e roteirista Matt Brown (The Man Who Knew Infinity / 2015). Brown pegou para si a complicada tarefa de tornar psicanálise, existencialismo e filosofia temas palatáveis para o grande público. Algo que não é novidade na Hollywood de obras como “Spellbound” (1945) de Hitchcock, “Kinsey” (2004) de Bill Condon ou “Um Método Perigoso” (2011) de David Cronenberg.
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A questão importante aqui é a abordagem escolhida em relação ao momento histórico e o contexto pessoal dos personagens. O mundo estava no início de mais uma guerra mundial, Freud estava à beira da morte e Lewis ainda lidava com os fantasmas de seus traumas relacionados ao tempo de soldado. O resultado é uma discussão extensa e soturna com elementos pragmáticos e um cenário centrado no escritório de Freud. Como contraponto o diretor nos oferece diferentes flashbacks de memórias de ambos os autores em seus devaneios e lembranças de infância, juventude e guerra. Nisso apenas dois personagens principais dividem o enorme vazio do palco (mais certeiramente eu diria que seria uma arena) em um combate derradeiro onde a espada é a palavra e o questionamento a munição. Temos Goode e Hopkins diante de uma situação extrema onde ambos baixam suas guardas e expõem suas fragilidades, porém sem nunca perder o humor – no caso de Freud – e o sarcasmo -no caso de Lewis.
Anthony Hopkins, do alto dos seus 86 anos é uma potência em frente à câmera. Sua energia e a paixão com a qual ele incorpora seus personagens é ainda mesmerizante, portanto independente da qualidade do roteiro, ele opera sua mágica. Dito isso, também é compreensível a enxurrada de críticas que acusou o filme de ser superficial e tratar mais das vidas dos autores do que realmente ter um aprofundamento dos assuntos discutidos. Ainda há a crítica de que o roteiro só funciona mesmo para o palco do teatro, e finalmente a acusação de que o filme é seco, monótono e vai do nada ao lugar nenhum. Tentando driblar essas questões, Matt Brown, propositalmente, deu espaço para a história pessoal de Anna Freud, que futuramente iria se tornar a mãe da psicanálise infantil, e suas questões afetivas com o pai e com a companheira. E aqui chamo a atenção para a sensacional atriz alemã Liv Lisa Fries (Babylon Berlin/2017) que executa a tarefa difícil de abordar as contradições de Anna e a profundidade de sua relação com o pai.
Freud’s Last Session, honestamente, não é um filme para quem busca mero entretenimento, assim como também não é feito para aqueles profundos estrudiosos e conhecedores de Sigmund Freud e da obra (além das Crônicas de Nárnia) de C.S. Lewis. É um filme na medida certa para se ter alguns insights na vida pessoal de ambos e em suas teorias. É um pequeno momento histórico ficcional para quem busca mais entendimento sobre os gênios de Freud e Lewis.
O filme estreou nos cinemas em dezembro de 2023 e está disponível para assinantes na plataforma de streaming HBO Max.