Elisabeth (Demi Moore) está à beira dos 50 anos. Sua carreira, um dia gloriosa, agora se encontra em estado agonizante. Ela protagoniza um datado programa de aeróbica em um canal de TV – qualquer semelhança com Jane Fonda aqui é mera coincidência – e vê o fim de seus dias de atuação chegar ao fim justamente no dia de seu aniversário. O executivo de TV Harvey – aqui a semelhança é proposital mesmo – interpretado por Dennis Quaid, dá à carreira de Elisabeth a sentença de morte ao demiti-la brutamente enquanto devora um prato de camarões gigantes em um restaurante luxuoso. Para Harvey, somente corpos femininos jovens e abaixo dos 30 anos têm relevância e merecem o sucesso e a atenção masculina (e feminina para reforçar estereótipos). Deparada com sua nova realidade, Elisabeth entra em desespero e, após um acidente de carro, recebe a dica de um enfermeiro sobre um suposto “tratamento” de multiplicação celular que gera uma espécie de clone jovem da própria pessoa. No caso de Elisabeth, seu outro eu é Sue (Elisabeth Qualley). Uma jovem de beleza deslumbrante que preenche todos os requisitos da idealização masculina da mulher dita “perfeita”. Mas como todo pacto com o diabo – no caso aqui, o pacto com uma ciência bastante duvidosa – o acordo tem suas condições, e essas são inegociáveis e irreversíveis.
“A Substância” é escrito e dirigido por Coralie Fargeat, a diretora francesa que já havia impressionado com seu debut Revenge (2017) e até mesmo dirigiu um episódio da aclamada série Sandman (2022), do Netflix. Fargeat parece ter muitos ídolos no cinema de ficção científica e horror. Já iniciamos o filme com Elisabeth percorrendo um longo corredor vermelho que nos remete, invariavelmente, ao filme Shining (1980) de Stanley Kubrick. Outras menções a Kubrick surgem ao longo do filme, inclusive, em um momento ácido e irônico de uma das cenas finais onde temos a utilização da trilha de 2001: A Space Odyssey (1968), além de outros elementos estéticos oriundos de uma pop art sessentista. E a lista segue, vemos inspiração também na beleza artificial e ideal glorificada por Ryan Murphy (AHS, Nip Tuck, etc.) assim como procedimentos absurdos e bizarros que causam metamorfoses. Pegando esse gancho, temos ainda David Cronenberg vibes sem estarmos realmente numa distopia. O mundo de Elisabeth é exageradamente brilhante, com cor neon, primárias e secundárias – uma certa almodovarização da fotografia parece estar em alta nas produções atuais. Sem dar spoilers, posso também revelar que teremos um momento meio Carrie (1976), a versão, claro, de Brian de Palma. Em resumo, Coralie Fargeat deve devorar os livros de Stephen King, tamanha são as suas referências ao mestre da literatura de ficção e terror.
Acima de tudo, A Substância é um body horror. Uma categoria de filmes que não mede limites quando o assunto é provocar nojo, repulsa e até mesmo risos com o banho de sague, tripas e fluidos corporais no melhor estilo slasher. Me pergunto se Fargeat assistiu ao episódio The Outside da série O Gabinete de Curiosidades de Guillermo del Toro (Netflix/2022), onde a protagonista descobre um creme milagroso de beleza, ou viu alguma temporada da série Physical (Apple tv+/2021) onde o tema também é uma mulher com um programa de aeróbica na tv – dessa vez realmente nos anos 80 – que sofre de dismorfia corporal e transtornos alimentares.
Apesar de todo apuro técnico e da bela fotografia, A Substância impressiona ainda mais pela crueldade de sua mensagem. Na verdade, pela crueldade do seu choque de realidade. O filme é, obviamente, completamente surreal e absurdo, é um delírio de uma fantasia doente, mas a sua raiz está fortemente cravada na visão feminina ainda atualmente, na sexualização do corpo feminino sob o male gaze, na objetificação de mulheres e na banalização dos traumas frutos desse comportamento violento. De novo temos um pacto faustiano onde a vaidade é a moeda de troca que se alimenta das inseguranças plantadas por uma sociedade basicamente patriarcal onde homens grisalhos, carecas ou barrigudos de meia, ou terceira idade definem como as mulheres devem ser vistas por elas mesmas e pelo resto do mundo. O filme é um absoluto pesadelo para quem sofre de transtornos alimentares e para quem não sofre, continua sendo matéria para péssimos sonhos. As prisões da juventude e da beleza são montadas e desmontadas. As duas partes do eu de Elisabeth, do eu de Demi Moore.
É preciso admitir – Demi Moore faz um trabalho incrível, e não permite que nenhuma barreira permaneça em pé, tanto física quanto emocionalmente. Em “A Substância”, vemos a entrega total de uma atriz, muitas vezes, subutilizada na indústria cinematográfica norte-americana, explorada enquanto jovem e abandonada pelas grandes produções quando a idade chega. Moore é cirurgicamente autoirônica e está simplesmente perfeita no papel de Elisabeth.
Outro que surpreende pela sua capacidade de incorporar tudo de nojento que existe na indústria dos executivos de Hollywood é Dennis Quaid. Um homem de meia-idade que simplesmente não suporta mulheres chamado Harvey, e não há acaso nem sutileza nessa oportuna escolha. Para ele, a vida pública de uma mulher sob os holofotes acaba no máximo aos 50 anos. Junto a ele temos uma miríade de homens velhos ou jovens que constroem uma paródia cruel, mas infelizmente clássica, da imagem devastadora criada por milênios acumulados de energia machista que não quer descansar em sua militância constante contra os direitos iguais para todos os sexos e gêneros. A masculinidade frágil que coloca todo o poder e o dinheiro nas mãos de homens (quase que todos) brancos e sem pré-requisitos visuais ou etários para alcançarem seus sonhos enquanto enterra as mulheres já na meia-idade, condenadas ao abandono e à troca “por um modelo mais novo”. O nojo e o ranço dessa disparidade de visões e de imagens é explorado por Fargeat até o limite. E chegando nele, ela o transpõe. A Substância é um filme que nos faz crer que homens em posição de poder genuinamente odeiam mulheres e que sempre investiram fortemente em fazê-las odiarem também a si mesmas. Margaret Qualley como Sue, nos mostra até onde pode ir o pavor de não nutrir mais essa adoração artificial de corpos e rostos femininos. Sue é perversa em seu medo, e inconsequente em sua busca. A talentosa filha da atriz Andie MacDowell se solidifica aqui mais uma vez como uma das melhores jovens atrizes de Hollywood da atualidade, beleza à parte.
“A Substância” é propositalmente grotesca e visa causar repulsa. A repulsa, inclusive, que muitas mulheres ainda são induzidas a sentirem sobre si mesmas no nosso dito mundo moderno. É uma parábola do incrível medo da velhice como um fenômeno sociocultural e uma forma de controle. O lado bom disso tudo, fora escancarar o problema, é que as interpretações fantásticas, principalmente a de Demi Moore, trarão certamente frutos. Talvez até uma estatueta dourada. O filme entrou para o catálogo da plataforma de streaming Mubi no dia 31 de outubro.