Grande e cativante produção dirigida pelo espanhol Juan Antonio Bayona, que estreou nos cinemas em 14 de dezembro de 2023 e está disponível no catálogo da Netflix desde 4 de janeiro, A Sociedade da Neve – baseada no livro homônimo de Pablo Vierci – tem como referencial o trágico acidente aéreo que vitimou 45 passageiros a bordo de um avião fretado das Forças Armadas Uruguaias, que levava, de Montevidéu, um time de rugby para jogar em Santiago, no Chile, em outubro de 1972.
Ao se chocar e cair no Vale das Lágrimas, ponto inacessível da cordilheira dos Andes e pertencente às fronteiras argentinas, o evento ficou conhecido como “A Tragédia do Andes” ou, de outra perspectiva, “O Milagre dos Andes”, no qual mais da metade desse número de tripulantes não resistiu às condições inóspitas e hostis à vida humana e sucumbiu às mortes as mais terríveis, sobrevivendo, ao fim, apenas dezesseis. Será sobre esse grupo que a película centrará fogo, ao longo de boa parte das suas 2 horas e 24 minutos, a fim de conduzir a quem assiste às mais agoniantes e desesperadoras ações e estratégias para enfrentar os dilemas e as penúrias impostas pela carência do mínimo e básico recurso necessário à sobrevivência num ambiente totalmente adverso.
Além das dores das perdas dos queridos amigos de time e acompanhantes, podemos dizer que Numa Turcatti (Enzo Vogrincic), Nando Parrado (Agustín Pardella), Roberto Canessa (Matías Recalt) e demais experimentam uma regressão forçada, em termos materiais, à condição de horda primeva. Dotados de precários e improvisados meios, e tendo que reter o máximo de energia possível a fim de enfrentar a escassez de mantimentos disponíveis nas bagagens esparsas em meio aos destroços da aeronave, se encontram na natureza selvagem tal qual os nossos antepassados nômades em tempos de exígua caça e coleta, e sob temperaturas as mais rigorosas e infensas ao organismo da espécie. Nesse aspecto, o diretor não poupou esforços para dotar de dramaticidade e riqueza de detalhes os modos como os sobreviventes se viravam para, por exemplo, transformar em água o gelo lentamente derretido sobre calhas feitas de latões extraídos da carcaça do avião.
No que diz respeito aos dilemas, a certa altura do estágio de privação total, os corpos mortos e congelados – logo, conservados da deterioração – dos companheiros, após longos debates, hesitações e forte resistência da parte de alguns, como Numa, passaram a servir de alimento aos que ali lutavam instintivamente pela preservação de suas já combalidas vidas. Mas, para além das questões de ordem moral e religiosa em torno do canibalismo – eram, aliás, majoritariamente católicos apostólicos romanos –, e ao contrário do antecessor e apelativo filme Vivos (EUA, 1993), que enfatiza tal aspecto em sua mais explícita visceralidade, Bayona teve a perspicácia de evitar a produção de cenas escancaradas dos corpos sendo cortados para suprir tal dilacerante carência.
Tudo porque, a meu ver, a mensagem do longa orbita menos a crua realidade a que situações dessa natureza submetem seres humanos – e não que ela não esteja posta, o que seria um contrassenso imperdoável – do que questões de foro antropológico e, digamos, metafísico. O nosso diretor joga luzes sobre o caráter gregário e primevo da espécie para garantir a coesão de grupo e a vida de todos por meio da ação solidária possível e nos limites de cada um, em um ambiente de condições absolutamente desfavoráveis à vida e à sua reprodução. A propósito, não há, ao menos na trama de Bayona, um momento sequer em que os amigos de rugby se desentendem exasperadamente durante os 72 dias em que tiveram desaparecidos.
A outra questão, que não passa despercebida ao espectador e à espectadora atentos, está no fato de, ao alcançarem o paroxismo da inópia total e, consequentemente, das mortes lentas e agoniantes dos amigos e amigas, as falas sobre fé e as rezas, enfatizadas em seu aspecto fervorosamente católico pelo enredo desde o início da trama, já quando os passageiros se acomodam nos assentos para a partida, cessam por completo dentro da cabine-abrigo destroçada e meio submersa no gelo. O último momento em que isso se dá, à altura da 1 hora e 7 minutos do longa, é quando rezam o Pai Nosso, em virtude de uma avalanche gigantesca que desmorona em cheio sobre a cabine.
Ponto esse, de atenuação da fé, que chega ao seu cume em dois eloquentes momentos: num sombrio diálogo, por volta de 1 hora e 15 minutos de filme, entre Arturo Nogueira (Fernando Contigiani García), que não sobrevive, e Numa; e, alguns minutos depois, num shakespeareano diálogo entre Numa e Javier Methol (Esteban Bigliardi). Na primeira cena, entre tragos de cigarros, temos as seguintes palavras de Arturo dirigidas à Numa:
– Minha fé não está no seu deus. Porque esse deus me disse o que fazer em casa, mas não disse o que fazer na montanha. O que está acontecendo aqui não se pode ver com os olhos de antes.
Batendo com a mão no teto da aeronave, continua:
– Numa, este é o meu céu. E eu creio em outros deuses. Eu creio no deus que o Roberto [o médico do grupo] tem na cabeça quando trata das minhas feridas. No deus que o Nando tem nas pernas para sair pra caminhar a qualquer custo. Eu creio nas mãos do Daniel [Francisco Romero] quando ele corta a carne. E no Fito [Esteban Kukuriczka], quando ele a reparte, sem dizer a que amigo pertenceu. E assim podemos comer a carne sem nos lembrar do olhar da pessoa. Eu creio nesse deus. Creio no Roberto, no Nando, no Daniel, no Fito, nos nossos amigos mortos.
Quanto à segunda cena, Numa e Javier se perguntam sobre o sentido daquilo tudo. Como se, tacitamente, fossem cúmplices da pergunta que não foi posta às claras: como pode haver um deus onipotentemente bom e misericordioso que expõe as suas frágeis criaturas a tais agruras? Inicia Numa:
– Que sentido tem? Que sentido tem a morte de Arturo, do Vasco [Benjamín Segura] e de todos os outros?
Ao que completa Javier, sobre a morte da sua esposa:
– A Liliana [Paula Baldini] dava tudo de si. Sempre. Durante a avalanche, sob a neve, eu sentia o corpo dela debaixo de mim. Eu estava a poucos centímetros da superfície, então consegui tirar a cabeça. Gritei o mais alto que consegui: “Liliana, aguente firme! Vou tirar você daí! Estou vivo!” Eu os via passando por cima dela e gritava: “Por favor, não pisem aí!” Ela não podia sair se eu não saísse primeiro. Eu não podia me mexer porque meus pés estavam em cima do peito dela. Se eu fizesse força pra sair, acabaria a enterrando ainda mais. Que sentido tem isso, Numa?
E aqui vale fazer um parêntese: independentemente de ter sido, de fato, essa a atitude desoladora e de arrefecimento da fé por parte dos membros do grupo, no evento real, J. A. Bayona se permite a licença ficcional para suscitar tal reflexão existencial. Afinal, qual seria a vantagem e a graça de se adotar o expediente do nosso velho e prejudicial controle do imaginário e reproduzir apenas o pretenso realismo bruto dos “fatos reais”?
Nesses momentos, então, em que nos percebemos como meros seres desamparados perante a perplexidade da vastidão da natureza e do cosmos, no qual houve eternidades em que o intelecto humano não estava, e quando outra vez ele tiver passado, nada terá acontecido, não há deuses ou qualquer pensamento mágico que ampare a ação, única e exclusivamente humana, material e social – que não se perca de vista o “sociedade” no título da produção –, para a sobrevivência da espécie que, se chegou até aqui, foi por seu caráter instintualmente gregário.
Para Freud, todo ajuntamento humano preserva certas revivescências da horda primeva. O que consideramos, hoje, como psicologia individual, emerge, segundo o pai da psicanálise, somente depois, na longa duração do desenvolvimento da civilização, e como que parcialmente ainda, a partir da velha “psicologia da massa”. Sendo assim, em casos extremos como foi o do referencial para o filme, a ideia do individualismo radical se torna completamente enfraquecida para dar lugar à autoconservação, ao instinto de alimentação e ao gregarismo. Porém, ao contrário de teóricos com os quais dialoga, como Trotter, Freud leva em consideração o papel fundamental que o líder exerce sobre o agrupamento. Grosso modo, a figura do líder se destaca relativamente do grupo, dando-lhe coesão e motivações de variada natureza sobre o agir.
E qual não é salvaguardadas as proporções, o papel de Numa, crucial para manter, até o fim, o grupo coeso e motivado? O até então inabalável amigo do time, que, lembremos, não faz parte da equipe e realiza a viagem apenas pela diversão, é o onipresente narrador que, mesmo após a morte há poucos dias antes do resgate, por consequência de uma infecção na perna, continua ecoando na memória dos sobreviventes até que apelem ao último recurso para a busca de salvação. O fato de Bayona ter deliberadamente escolhido, para narrar toda a trama, uma personagem que não sobreviveu, conota a sóbria homenagem rendida aos mortos e ao próprio evento, para que sempre seja rememorado como um epítome da amizade, da obstinação e, claro, da esperança.
Por último, deve-se destacar a fotografia da produção, que, pelas lentes de Pedro Luque, nos conduz ao espetáculo imagético que se afirma, magistralmente, do início ao fim. Quando, por exemplo, e a despeito de toda a imensidão monótona e desconfortadora das geleiras, temos a abertura para belas cenas do despontar intermitente dos escassos raios de sol, ficam sugeridos alguns lampejos de esperança aos sobreviventes e aos espectadores. Estes esperam, no conforto do seu aquecido e aconchegante lar, o desfecho final bem-sucedido – graças à insistência, à força da amizade e à coragem de Nando Parrado e Roberto Canessa –, a fim de aplacar a aflição e as vozes embargadas que os acompanharam até essa altura da grande produção cujas projeções da crítica já a lançam na lista de forte candidata a dar à Espanha o Oscar na categoria de Melhor Filme Internacional.