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“A semente do figo sagrado”: misoginia, totalitarismo e paranoia

Três personagens mulheres do filme A semente do figo sagrado estão na foto colorida, predominantemente azul Uma no primeiro plano, duas outras, desfocadas no segundo.

Cena de "A semente do figo sagrado". Foto: divulgação.

Ficus religiosa é uma árvore com um ciclo de vida incomum. A semente, contida nas fezes de aves, cai sobre outras árvores. Raízes aéreas são lançadas e crescem até alcançarem o solo. Em seguida, os galhos se enrolam na árvore hospedeira, estrangulando-a. Finalmente, o figo sagrado se mantém por si só.

 O trecho acima é a primeira coisa que lemos na abertura de “A Semente do Figo Sagrado”. A obra é um drama político de 2024 dirigido pelo cineasta iraniano Mohammad Rasoulof. Rasoulof conduziu a direção do filme de forma clandestina no Irã durante, aproximadamente, 70 dias, entre o final de dezembro de 2023 e março de 2024. Como consequência, ele foi condenado pelo regime totalitário iraniano a uma sentença de oito anos de prisão. Mas Mohammad conseguiu fugir do Irã e retomou o processo de pós-produção de sua obra em Hamburgo, na Alemanha.

O roteiro original, também assinado por Rasoulof, trata de Iman (Missagh Zareh), um delegado investigador do tribunal revolucionário de Teerã, com pretensões de se tornar juiz. Iman tem com sua esposa Najmeh (Soheila Golestani) duas filhas. A mais velha, Rezvan (Mahsa Rostami), já frequenta a universidade, enquanto a menor, Sana (Setareh Maleki), ainda completa a escola.

Ao mesmo tempo que Iman assume suas novas funções, ele também alimenta ambições de melhorar de posição dentro da estrutura do tribunal. É algo com o que sonha há 20 anos e que compartilha com a mulher, Najmeh.

Com o tempo, Iman experimenta uma nova forma de poder, em parte causada pelo dinheiro que garante à sua família melhores condições de vida, e em parte pela responsabilidade que lhe é colocada em mãos – Iman tem o poder de decidir entre a vida e a morte de protestantes e prisioneiros.

Como se isso ainda não fosse o suficiente para embaçar o seu julgamento sobre o que seria justo ou errado, Iman fica cada vez mais paranoico à medida que os protestos em todo o país aumentam após a morte de uma jovem que não estava usando o hijab – lenço tradicional muçulmano que cobre o cabelo das mulheres. Porém, é o desaparecimento de sua arma de serviço, a qual some de dentro de sua própria casa, o fato que intensifica sua crescente desconfiança em relação à esposa e às filhas.

Mohammad Rasoulof combina uma narrativa ficcional com imagens reais dos protestos iranianos que ocorreram entre 2022 e 2023, onde é claramente escancarado o clima político crescentemente opressivo no governo do Irã. Com isso, o cineasta colheu da crítica internacional elogios efusivos à narrativa corajosa e relevante de sua obra. Rasoulof arriscou sua vida, foi condenado, conseguiu fugir e se tornou exilado devido à sua denúncia.

Tudo isso atrela a “A Semente do Figo Sagrado” um imenso valor social e de luta pelos direitos humanos. O diretor que literalmente se sacrifica por sua obra. Que usa o cinema como forma de abrir os olhos de seu público, de colocar em nossas telas o seu repúdio à opressão do povo iraniano, em especial às mulheres, sendo o alvo mais “fácil” de fanatismos e comportamentos desumanos, misóginos e criminosos numa teocracia.

Nesse contexto, a “real” qualidade da produção e do roteiro acabam relegados a coadjuvantes. “A Semente do Figo Sagrado” é um pequeno filme, feito com poucos recursos, tem um enredo pouco criativo ao repetir os comportamentos e dinâmicas familiares já típicos dentro das obras do cinema iraniano. Foi filmado de forma simples e seus atores não são espetaculares.

Mas, como bem sabemos, a obra de arte também é o seu argumento e não somente a sua manifestação física e, nisso, Rasoulof se sobressai majestosamente. Acima de tudo, “A Semente do Figo Sagrado” é uma obra necessária e muito relevante do ponto de vista humanitário, pois nos mostra como, assim como na Ficus religiosa, a crueldade e a frieza podem aos poucos tomar conta, sufocar e acabar com a liberdade e a bondade de seu hospedeiro.

Onde ver “A semente do figo sagrado”

“A Semente do Figo Sagrado” estreou no 77º Festival de Cinema de Cannes em maio de 2024, recebeu o Prêmio Especial do Júri e foi ovacionado de pé. Posteriormente, foi lançado na França e na Alemanha ainda em 2024.

No momento, já abocanhou 27 prêmios de suas mais de 50 indicações em festivais, incluindo o de Melhor Filme Internacional pelo National Board of Review e uma indicação para Melhor Filme Estrangeiro no 82º Globo de Ouro. Além disso, foi selecionado como a entrada da Alemanha para Melhor Longa-Metragem Internacional no Oscar desse ano, no qual é considerado grande candidato a levar o troféu.

“A Semente do Figo Sagrado” estreou nos cinemas brasileiros no dia 9 de janeiro de 2025.

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