Quando as indicações ao Oscar 2023 foram anunciadas, em fevereiro, o filme “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo” (Everything Everywhere all at Once, 2022) foi o centro das atenções. Com 11 indicações – o recorde da edição – a obra veio somar sua contribuição aos debates sobre diversidade que cercam o Oscar nos últimos anos. Dessa vez, a questão em pauta foi a representação asiática em Hollywood.
Neste artigo, pretendo explorar a representatividade asiática no Oscar, partindo de um panorama histórico das categorias de atuação que nos permitirá refletir sobre os dias atuais. Ressalto desde já que as cerimônias do Oscar são caracterizadas muito mais pela ausência do que pela presença desses profissionais. E mesmo quando estão presentes nos filmes indicados ou vencedores do prêmio, os asiáticos, muitas vezes, são representados de forma estereotipada e preconceituosa.
Os anos das “belezas exóticas” e do yellow face: 1920-1956
Neta de chineses, Ana May Wong (1905-1961) foi a primeira atriz de ascendência asiática a alcançar o patamar de estrela de Hollywood. Nascida em Los Angeles, ela iniciou sua carreira como figurante, logo chamando a atenção dos estúdios. Em 1922, conquistou seu primeiro papel como protagonista no filme “Toll of the Sea”, interpretando uma jovem chinesa que vive um romance trágico com um rapaz estadunidense.
O filme despertou o interesse do público e da crítica pela atriz de aparência considerada “exótica”, abrindo portas para Wong. A jovem estrela, contudo, era bastante crítica das propostas de trabalho que recebia: na maioria das vezes, ela revivia o tipo da “asiática trágica” que marcara sua grande estreia ou representava mulheres sensuais e perigosas.
Ao longo de sua carreira, Wong se viu obrigada a aceitar papéis estereotipados, embora se valesse da imprensa para destacar o orgulho de sua ascendência e defender as contribuições dos imigrantes chineses aos Estados Unidos. Apesar de seu sucesso, ela jamais recebeu qualquer distinção por parte do Oscar, embora tenha buscado conseguir um papel que, eventualmente, recebeu o prêmio ao ser interpretado por uma europeia.
Em 1936, Wong fez campanha para protagonizar “Terra dos Deuses” (The Good Earth, 1937), adaptação de um romance de sucesso sobre um casal de fazendeiros chineses que enfrenta uma série de adversidades no início do século XX. A MGM, estúdio responsável pela produção, preteriu Wong em favor de Luise Rainer, atriz austríaca que vencera o Oscar de Melhor Atriz naquele mesmo ano por “Ziegfeld, o Criador de Estrelas” (The Great Ziegfeld, 1936).
O estúdio argumentou que o sistema de censura existente à época impunha severas restrições à representação da miscigenação racial, de modo que Wong não poderia interpretar a esposa de Paul Muni, ator branco escalado para viver o protagonista.[1] Rainer e Muni atuaram utilizando pesadas maquiagens que lhes conferiam traços étnicos chineses – prática conhecida como yellow face [2]. Rainer recebeu um segundo Oscar pelo papel, enquanto Muni foi indicado na categoria de Melhor Ator.
Wong não escondeu seu descontentamento com a medida, especialmente após a MGM lhe oferecer o papel da vilã na trama. Ela negou a proposta. Tal posicionamento fez com que a atriz visse suas propostas de trabalho minguarem, restringindo-se a filmes de pouco prestígio. Desse modo, ela se voltou para o teatro e a televisão. Hoje, o trabalho de Wong vem sendo redescoberto por críticos, cinéfilos e historiadores.
Considera-se que a primeira pessoa asiática a concorrer ao Oscar foi Merle Oberon (1911-1979), na categoria de Melhor Atriz, por seu trabalho em “O Anjo das Trevas” (Dark Angel, 1935). Diferentemente de Wong, Oberon tinha uma relação conflituosa com suas próprias origens. Nascida de um estupro, ela foi criada pelos avós – um engenheiro inglês que atuava na Índia e sua esposa de origem eurasiática – e, desde jovem, encorajada pela família a esconder seu passado. A fim de evitar que seu passado lhe custasse trabalhos importantes em Hollywood, ela se apresentava como uma atriz inglesa nascida na Austrália. A farsa servia para justificar os traços físicos da atriz, considerados “exóticos” para os padrões hollywoodianos, mas que ainda permitiam à indústria classificá-la como branca. Em contraponto a Wong, Oberon gozou de uma carreira longeva, que se estendeu até os anos 1970.
A primeira asiática vitoriosa no Oscar foi Vivien Leigh (1913-1967). A atriz nasceu na Índia, ainda sob o domínio colonial inglês. Embora os biógrafos concordem que seu pai era escocês, os dados sobre sua mãe são conflitantes e apontam para supostas origens irlandesas, indianas ou armênias. Tal qual Oberon, a origem de Leigh foi utilizada para publicizar sua “beleza exótica”, muito embora ela se apresentasse como britânica e fosse considerada suficientemente branca para ganhar papéis de prestígio. Ela se tornou uma estrela de primeira grandeza em Hollywood e recebeu, duas vezes, o Oscar de Melhor Atriz, por seus trabalhos em “…E o Vento Levou” (Gone with the Wind, 1939) e “Uma Rua Chamada Pecado” (A Streetcar Named Desire, 1951).
O yellow face, por sua vez, continuou sendo prática corrente em Hollywood, abrangendo desde filmes populares até produções de prestígio candidatas ao Oscar. Voltando-nos apenas para as categorias de atuação, profissionais brancos foram indicados por seus trabalhos com yellow face nas obras: “O General Morreu ao Amanhecer” (The General Died at Dawn, 1936)[3], “Horizonte Perdido” (Lost Horizon, 1937)[4], “A Estirpe do Dragão” (Dragon Seed, 1943)[5], “Anna e o Rei do Sião” (Anna and the King of Siam, 1945)[6] e “O Suplício de uma Saudade” (Love is a Many-Splendored Thing, 1955)[7]. O segundo caso de vitória ocorreu com a obra “O Rei e Eu” (The King and I, 1957), para Yul Brynner na categoria de Melhor Ator[8].
Da mudança aparente à presença esporádica: 1957-2019
A década de 1950 marca um período curioso na representatividade asiática em Hollywood. Se, por um lado, o yellow face permaneceu constante em filmes de sucesso[9], alguns atores asiáticos ganharam destaque em obras importantes. Em partes, essas mudanças foram impactadas pela necessidade de uma nova roupagem para o Japão, que emergia como um importante aliado dos Estados Unidos no cenário da Guerra Fria. Também é importante destacar a pressão por parte de segmentos que atuavam em defesa dos direitos da população de imigrantes ou descendentes de asiáticos no país.
A cerimônia de 1958 parecia indicar que mudanças estavam começando. Naquele ano, dois atores japoneses foram indicados ao Oscar: Sessue Hayakawa, na categoria de Melhor Ator Coadjuvante por “A Ponte do Rio Kwai” (The Bridge over River Kwai, 1957) e Miyoshi Umeki, como Melhor Atriz Coadjuvante pelo filme “Sayonara” (Idem, 1957). A personagem vivida por Umeki é a que melhor representa a nova roupagem conferida aos japoneses, aproximando-os dos padrões estadunidenses. Tal elemento pode ter contribuído para sua vitória naquele ano.
Em “Sayonara”, ela interpreta Katsumi, uma jovem que se casa com Joe (Red Buttons) um militar estadunidense, com quem estabelece uma vida no Japão pós-guerra. Trata-se de um papel voltado a despertar a simpatia do espectador, que se assemelha aos das esposas doces e dedicadas da Hollywood clássica. Por outro lado, Katsumi é submissa e tem poucas falas ou cenas de destaque ao longo da obra. Assim, ela contrasta com seu par romântico, uma vez que Joe é um personagem proeminente na trama.
Apesar da indicação de uma possível mudança, esta não se concretizou.
Ao longo dos anos 1960, somente dois profissionais de ascendência asiática concorreram às categorias de atuação do Oscar[10]. Nem mesmo a produção “Flor de Lótus” (The Flower Drum Song, 1961), estrelada por um elenco majoritariamente composto por atores de ascendência asiática, obteve indicações aos prêmios de atuação, embora tenha sido lembrada em outras cinco categorias. Na década seguinte, apenas o israelense Topol foi indicado ao Oscar de Melhor Ator pela produção hollywoodiana “O Violinista no Telhado” (Fiddler on the Roof, 1971).
Nos anos 1980, uma nova mudança parecia estar acontecendo. Ben Kingsley, britânico de origem indiana, venceu o prêmio de Melhor Ator por interpretar o personagem-título em “Gandhi” (Idem, 1982). Dois anos mais tarde, o cambojano Haing S. Ngor fez história ao receber a estatueta de Melhor Ator Coadjuvante pelo filme “Os Gritos no Silêncio” (The Killing Fields, 1984). Médico por formação, ele sobreviveu ao genocídio promovido pelo Khmer Vermelho e migrou para os Estados Unidos, onde alcançou destaque por sua biografia. Embora não fosse ator profissional, sua experiência pessoal fez com que ele aceitasse a proposta do estúdio.
As mudanças não encontraram eco. Embora o número de profissionais com ascendência asiática indicado ou vencedor do prêmio tenha aumentado na mesma época, ainda assim, manteve-se notoriamente restrito. Além disso, parte dos vencedores não era diretamente reconhecido por sua ascendência asiática, estando muito mais associados à cultura estadunidense, como o caso da atriz e cantora Cher, de ascendência armênia[11].
O caso mais curioso da época, por sua vez, congrega uma espécie de retorno do yellow face com subversão dos papéis de gênero: em 1981, a australiana Linda Hunt venceu o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante por interpretar um homem (!) de ascendência asiática em “Ano que Vivemos em Perigo” (The Year of Living Dangerously, 1982).
A tendência de indicar atores de ascendência asiática nascidos nos Estados Unidos ou Europa se manteve nas três décadas seguintes, salvo raras exceções, como a iraniana Shohreh Aghdashloo e os japoneses Ken Watanabe e Rinko Kikuchi[12]. O reconhecimento também se manteve esparso, em partes, refletindo as poucas oportunidades de trabalho oferecidas a esses profissionais. Na maioria das vezes, esses profissionais ganharam destaque em biografias, filmes de época ou tramas em que a questão étnica constitui um elemento central no desenrolar dos conflitos representados. Nem mesmo o sucesso de um filme como “Parasita” (기생충, 2018) foi o suficiente para que a Academia indicasse qualquer membro do elenco aos prêmios de atuação.
A caminho de uma mudança real?
Ainda que estejamos na primeira metade desta década, é possível observar que profissionais asiáticos ou de ascendência asiática têm ganho maior proeminência nas últimas cerimônias do Oscar. Em 2021, o sul-coreano Steven Yeun (o Glenn, de The Walking Dead) e o britânico de origem paquistanesa Riz Ahmed concorreram ao prêmio de Melhor Ator. No mesmo ano, Youn Yuh-jung tornou-se a primeira sul-coreana a conquistar um Oscar, na categoria de Melhor Atriz Coadjuvante por “Minari” (Idem, 2020).
Foi apenas na cerimônia desse ano que, pela primeira vez, quatro profissionais asiáticos ou de origem asiática foram indicados às categorias de atuação: Michelle Yeoh (nascida na Malásia), Ke Huy Quan (nascido no Vietnã), Jennifer Hsu (estadunidense de origem chinesa) e Hong Chau (também nascida no Vientã)[13]. Tal feito lançou luzes sobre uma série de questionamentos que já vinham ganhando fôlego desde o lançamento de “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo”. Por que Yeoh recebeu sua primeira indicação ao Oscar somente aos 60 anos, mesmo tendo uma carreira profícua? Por que Quan, tão elogiado por seu desempenho, passou tantos anos longe do cinema devido à falta de bons papéis? Em especial: por que foram necessários mais de 90 anos para que uma obra estadunidense protagonizada por atores asiáticos despontasse com chances reais de vencer a mais popular honraria do cinema mundial?
Como já se tornou hábito em meus textos sobre o Oscar no Café História, tais perguntas escancaram a continuidade de preconceitos que ainda hoje permeiam a indústria hollywoodiana. Tais preconceitos limitam ofertas de trabalho, restringem possibilidades de representações e reproduzem parâmetros de exclusão cujas raízes vão além do cinema. Mais uma vez, parecemos estar diante de uma possível mudança na postura da Academia. Se ela irá se concretizar, apenas o tempo dirá.
Notas
[1] Conhecido como Hays Code, o código de censura hollywoodiano foi estabelecido em 1934, após pressão de organizações sociais que demandavam uma “moralização” do mundo do cinema. O código impedia, entre outras, a representação de casais interraciais de maneira positiva.
[2] Literalmente, “rosto amarelo”. Cabe lembrar que não se tratava de uma estratégia nova, uma vez que vinha sendo empregada desde o período do cinema silencioso.
[3] Embora nascido na atual Armênia, Akim Tamiroff interpretou um chinês pelo papel que lhe valeu uma indicação ao prêmio de Melhor Ator Coadjuvante.
[4] Em sua indicação à categoria de Melhor Ator Coadjuvante, H. B. Warner interpretou um morador do Himalaia.
[5] A estadunidense Aline McMahon recebeu sua única indicação ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante por interpretar uma chinesa. No mesmo filme, estrelas como Katharine Hepburn e Walter Huston performaram com o uso de yellow face.
[6] Estadunidense com ascendência dinamarquesa, Gale Sondergaard interpretou uma mulher siamesa na produção que lhe garantiu uma indicação ao Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante.
[7] A estrela Jennifer Jones conquistou sua última indicação ao Oscar de Melhor Atriz por interpretar uma médica chinesa que vive um romance com um estadunidense casado. A produção apresenta um conflito, no mínimo, curioso para os padrões atuais: os protagonistas enfrentam o preconceito da sociedade chinesa com relação ao romance interracial.
[8] Embora tenha nascido na porção asiática da Rússia, Brynner utilizou uma maquiagem que escurecia sua pele e modificava o formato de seus olhos. No mesmo filme, a atriz porto-riquenha Rita Moreno também interpretou uma mulher asiática.
[9] Podemos citar como exemplo “A Morada da Sexta Felicidade” (The Inn of Sixth Happiness, 1958), “Sob o Domínio do Mal” (The Manchurian Candidate, 1962) e “As Sete Faces do Dr. Lao” (7 Faces of Dr. Lao, 1964).
[10] Ambos na categoria de Melhor Ator Coadjuvante: o egípcio de origem libanesa: Omar Shariff, indicado pela superprodução “Lawrence da Arábia” (Lawrence of Arabia, 1962); e o estadunidense de família japonesa Mako, indicado pelo drama de guerra “O Canhoneiro do Yang-Tsé” (The Sand Peebles, 1966)
[11] Ela venceu o prêmio de Melhor Atriz por “Feitiço da Lua” (Moonstruck, 1987) e recebeu uma indicação a Melhor Atriz Coadjuvante por “O Retrato da Coragem” (Silkwood, 1983).
[12] Indicados, respectivamente, nas categorias de Melhor Atriz Coadjuvante por “Casa de Areia e Névoa” (House of Sand and Fog, 2003), Melhor Ator Coadjuvante por “O Último Samurai” (The Last Samurai, 2003) e Melhor Atriz Coadjuvante por Babel (Idem, 2006).
[13] Os três primeiros foram indicados, respectivamente, aos prêmios de Melhor Atriz, Melhor Ator Coadjuvante e Melhor Atriz Coadjuvante por “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo”, enquanto Chau concorre na categoria de Melhor Atriz Coadjuvante por “A Baleia” (The Whale, 2022).
Referências
HODGES, Graham Russell Gao. Anna May Wong: From Laundryman’s Daughter to Hollywood Legend. Londres: Palgrave Macmillan, 2004.
MOON, Krystin R. Yellowface: Creating the Chinese in American Popular Music and Performance, 1850s-1920s. New Brunswick: Rutgers University Press, 2005.
NGOR, Haing; WARNER, Roger. Survival in the Killing Fields. Nova Iorque: Carroll & Graf Publishers, 2003.
STEAD, Lisa. Reframing Vivien Leigh: Stardom, Gender, and the Archive. Oxford: Oxford University Press, 2021.
WOOLLACOOT, Angela. Colonial Origins and Audience Collusion: The Merle Oberon Story in 1930s Australia. In: DEACON, Desley; RUSSELL, Penny, WOOLLACOOT, Angela (eds.). Transnational Lives: Biographies of Global Modernity, 1700-present. Londres: Palgrave Macmillan, 2010, p. 96-108.
Como citar este artigo
CLARO, Celso Fernando. A representatividade asiática na história do Oscar (Artigo). In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/a-representatividade-asiatica-na-historia-do-oscar/. ISSN: 2674-5917. Publicado em: 27 Fev. 2023.