A representação do personagem adolescente masculino gay no cinema americano

Como a ideia de que o par romântico heterossexual é parte essencial de um blockbuster foi forjada historicamente em detrimento de outros formatos de amor.
27 de março de 2017
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Menino de Ouro
"Menino de Ouro", de 1937. Foto: reprodução da internet.

É impossível conceber a ideia de blockbuster dissociada da de par romântico heterossexual. Ela está em quase todos os filmes, sejam os de ação, os de horror, as comédias românticas ou até os de super-heróis. Ainda que esse status quo – originado após a Segunda Guerra Mundial – esteja, atualmente, sofrendo severas alterações, com mulheres ganhando papéis de protagonismo e personagens homossexuais mais realistas sendo cada vez mais pontos de destaque da produção atual, é fundamental entendermos que nem sempre foi assim. E que a ideia de blockbuster tal como foi concebida tratou de apagar da produção cinematográfica hegemônica toda e qualquer possibilidade de amor que não o hétero-clichê: o galã womanizer e a mocinha seduzida.

Quando foi lançado nos cinemas, em 1937, o filme “Throughbreds Don’t Cry” trazia em seu elenco algumas das maiores promessas de Hollywood da época. Mickey Rooney, no momento com 17 anos, era uma estrela adolescente em plena ascensão. Judy Garland, com apenas 15 anos de idade, ganhava o seu primeiro papel de destaque. Ronald Sinclair, também, nos seus 15 anos, substituía – e havia até um trailer anunciando isso – a maior estrela juvenil da época, isto é, Freddie Bartholomew, cuja voz mudava e o tornava desinteressante para o papel em questão.

O filme, que seria um veículo para revelar Sinclair como substituto de Bartholomew, apresentava o menino como Roger, um aristocrata britânico que perdeu toda a sua riqueza, com exceção de um cavalo. Após uma corrida, ele se aproxima de Timmie, um jockey vivido por Rooney, com a proposta de que use seu cavalo nas corridas. Eles logo se tornam próximos e passam a dividir seu tempo com Cricket, vivida por Garland, filha da dona de uma pensão para os jockeys.

Ainda que não fosse o exato primeiro momento em que isso aconteceu na tela, o filme apresentou um casal adolescente, com repercussão até inesperada. Era uma das primeiras vezes em que se falava para um público que ainda não era privilegiado nas produções. Até então, ir ao cinema era uma atividade de família: “diferentemente da Ópera ou da Música Clássica, o cinema não procurava nenhuma audiência de nicho, mas aspirava ser uma arte verdadeiramente popular, um entretenimento universal para toda a família” [1].

Mas a dupla Garland-Rooney estabeleceu uma parceria que, muito antes de todo o processo de construção da juventude da década de 1950, inaugurava pontos de interesse para um nicho que sequer existia oficialmente. Os adolescentes, uma categoria da classe média norte-americana com tempo e recursos financeiros, só seriam mercado-alvo nos anos 1950. Ali, porém, já havia algo. Tão representativo que o sucesso imediato dos dois fez com que a parceria se repetisse por nove outros filmes. Curiosamente, porém, essa parceria não começara por personagens que representavam um casal romântico.

Em “Throughbreds Don’t Cry”, Garland e Rooney, de fato, disputam o afeto do personagem de Sinclair. O garoto anda de cavalo com o jockey e realizam movimentos que muitos podem julgar, a princípio, não intencionalmente cômicos. Porém, quando Roger, o personagem de Sinclair, cai do cavalo, Timmie, interpretado por Rooney, promete a ele uma massagem: “ele faz com que Roger deite na cama com suas calças arriadas e começa a passar entusiasticamente um óleo em suas pernas e coxas. Roger protesta que ele se sente bem e tenta se levantar, mas Timmie exclama, ‘Estou apenas começando!’ e o força a se deitar novamente. A óbvia satisfação de Timmie durante esse contato físico parece muito mais do que medicinal”. [2]

Do lado de fora, a personagem de Judy Garland apela para a sua melhor arma também: empunha um violão e canta uma canção que desperta a curiosidade do menino deitado. Sucede-se então uma gag cômica em que os 2 personagens, fisicamente, tentam fisgar o interesse do garoto. Ao término da canção, quando Timmie e Roger conversam sobre irem juntos ao cinema mais tarde, o personagem de Rooney não esconde a indignação por Cricket também querer ir: ela invade um terreno que deveria ser apenas dos dois garotos.

Muito antes de Hollywood tornar o romance heterossexual o seu guia de quase qualquer história a ser contada, a relação próxima entre dois garotos era vista como um padrão que, ao contrário do que hoje se imagina, afastava dos garotos qualquer possibilidade de serem (ou de se tornarem) afeminados. “Homens jovens poderiam canalizar o seu desejo por intimidade física para o objetivo socialmente aceito do casamento. (…) Mas meninos adolescentes representavam um problema. Eles tinham a mesma potência sexual de um homem, talvez até mais, mas estavam de 5 a 10 anos distantes da possibilidade de entrar num casamento”. [3]

Personagens masculinos: mudanças a partir do pós-guerra

Em dezenas de filmes entre as décadas de 1920 e 1940, os adolescentes do sexo masculino construíram relacionamentos entre si “com um laço que os outros reconheciam como exclusivo, com a intensidade emocional e intimidade física que evocam um homo-romance ao invés de camaradagem”. [4] A ameaça do feminino – seja da persona queer ou do processo industrial civilizador e sua divisão de papéis – atuava diretamente na formação de casais de meninos que não apenas afastavam a ameaça da afetação da paixão pelo sexo oposto, como também permitia, muitas vezes, que um dos componentes do par ensinasse ao outro como se portar decididamente como um homem.

Tudo isso, porém, mudaria de forma definitiva durante a 2a Guerra Mundial e, posteriormente, na década de 1950. O personagem adolescente masculino passaria a ser acometido por uma febre que o tornaria cego a qualquer outro tema que não o sexo oposto. Inúmeras questões podem iluminar os porquês desse movimento: o medo do processo de feminização de meninos adolescentes que se viam sem uma figura paterna, ausente na Guerra; a criação e aplicação de mecanismos de controle no cinema estadunidense, como o Código de Hays; [5] ou até mesmo a paranoia da guerra que procurava separar qualquer cidadão que apresentasse um comportamento fora do normal.

Os registros anteriormente descritos não eram mais possíveis: qualquer cena ou argumento que tratasse o personagem gay de forma aberta estava destinado a alguma censura, fosse da MPAA [6] ou dos próprios produtores/cineastas. Dessa forma, um romance sobre um escritor alcoólatra e sexualmente confuso (“Farrapo Humano”, 1945) virou um filme sobre um escritor alcoólatra com bloqueio. Outro romance, sobre ataques a homossexuais e assassinato, se tornou um filme sobre antissemitismo e assassinato (“Rancor”, 1947).

O filme adolescente, como um gênero cinematográfico, por sua vez, “começa por volta de 1955, um produto do declínio do cinema clássico hollywoodiano e do crescimento do economicamente privilegiado adolescente americano” [7]. Com ele também, o cinema estadunidense aprofunda um formato do registro de um personagem adolescente homossexual: o velado, aquele que se manifesta diluído dentro da obra audiovisual, por vezes ajudando a definir a sua própria estética. E o próprio marco dessa mudança já trazia consigo tal registro: em “Juventude Transviada” (1955), é difícil ignorar – e a documentação de análises disso só cresce – os olhares furtivos trocados entre o personagem de James Dean e o de Sal Mineo. O próprio sacrifício final deste reiterava que, por trás de tudo aquilo, havia uma história de amor escondida. E trágica, tal qual muitas vezes se repetiria em filmes com personagens dessa natureza. O happy end para jovens gays no cinema foi por décadas proibido, e é válido dizer, muitas vezes pela auto-censura diante do criar dentro do status quo.

Ainda que os movimentos de contracultura tenham marcado as décadas de 1960 e 1970, o personagem adolescente homossexual ganhou poucas oportunidades de registro, mesmo o velado, no cinema estadunidense. Uma década que reavivou o queer nas telas independentes em filmes como “Rocky Horror Picture Show” (1975) ou em produções de John Waters como “Pink Flamingos” (1972) e “Female Trouble” (1974), os anos 1970 passaram quase sem registo de adolescentes com a sua sexualidade em questão nos EUA. Pode-se dizer que a falta de representação marginalizava o adolescente gay e lhe deixava como opção a posterior reunião em guetos quando jovem adulto e também a militância. De fato, os mais significativos exemplares desses personagens seriam encontrados no cinema europeu, como no dinamarquês “You Are Not Alone” (1978), um filme impressionantemente ousado ao retratar o relacionamento adolescente gay em uma escola, ou o italiano “Ernesto” (1979).

Já a década de 1980, em toda a sua retomada da produção comercial em moldes similares ao realizado nos anos 1950, viu o ressurgimento desse personagem em inúmeras produções. Ainda que tal produção usasse majoritariamente o termo “gay” (ou “fag”) para segregar o adolescente homossexual e colocá-lo na posição mais baixa da hierarquia masculina na escola. Houve, porém, exceções, com uma proliferação curiosa em filmes de terror.

Em “Night of the Creeps” (1986), filme de Fred Dekker com sugestivo título, Chris conta com seu amigo J.C., deficiente físico, para ajudá-lo a conquistar a garota dos seus sonhos. Não fossem os parasitas alienígenas que atacam a faculdade deles. O tom do filme é um cruzamento entre comédia e terror. Mas numa única cena, os diálogos entre Chris e J.C., sempre pautados pela ironia, mudam de tom. Chris duvida de sua capacidade e J.C. declara, ainda que não diretamente, seu amor por ele e o quanto quer e faz tudo para que ele dê certo.

1987
“A Hora do Pesadelo 2” (Night of the Creeps), de 1987. Foto: reprodução da internet.

O mesmo subtexto pôde ser observado em clássicos como “Garotos Perdidos” (1987), em que um garoto é o alvo de uma trupe de vampiros, ou “A Hora do Espanto” (1985), em que um adolescente sofre investidas do vizinho (também) vampiro. Curiosamente, é o melhor amigo dele que o vampiro “conquista”, dando sequência à tradição da tragédia como resolução final ao personagem gay. Nenhum filme desse período, porém, é mais lembrado do que a sequência do hit “A Hora do Pesadelo” (1984), “A Hora do Pesadelo 2 – A Vingança de Freddy” (1985). Hoje um filme cultuado, à época certamente não recebeu boas críticas, talvez porque contava uma outra história, sem envolver a protagonista do filme anterior. Para além de todas as sequências de suadouros e corpos masculinos desnudos, o protagonista sofre com a ideia de que a garota na festa possa beijá-lo e corre para o quarto onde está o melhor amigo em determinado momento. Freddy Kruger – ainda hoje um dos mais potentes monstros da História do Cinema – tenta possuir o seu corpo, uma metáfora precisa para o desejo latente homossexual e o horror que ele poderia provocar nos anos 1980.

Ao longo dos anos 1990, essa abertura prosseguiu em ritmo lento. Foi apenas nos anos 2000 que o personagem adolescente gay conseguiu espaço em filmes que de fato explorassem mais abertamente os inúmeros aspectos, comportamentos e aspirações dele. Do docu-drama biográfico “Tarnation” (2004) às adaptações cinematográficas de romances-ícone da literatura young adult contemporânea como “As Vantagens de Ser Invisível” (2012), pela primeira vez se pôde utilizar o plural, representações, para a presença do adolescente masculino homossexual no cinema.

A Noite dos Arrepios
“A Noite dos Arrepios” (Night of the Creeps), de 1986. Foto: reprodução da internet.

Muito disso está ligado diretamente ao barateamento dos custos de produção de um filme: se filmar é mais barato, pode-se assumir com mais facilidade os riscos de contar histórias fora do comum. Enquanto produções estrangeiras de nacionalidades tão distintas, como o belga “North Sea Texas” (2011), o canadense “Eu Matei a Minha Mãe” (2009) e o tailandês “Love of Siam” (2007) foram especialmente felizes em explorar as potências desse tipo de personagem, o cinema norte-americano também dá sinais de que pode apresentar esse mesmo resultado quando se considera filmes como “Shelter” (2007) ou o multi-indicado ao Oscar “Moonlight” (2016).

Curiosamente, os seriados americanos parecem ter entendido um pouco mais a necessidade de desenvolver a fundo esse tipo de personagem e todas as suas facetas. Ainda que recorram a ele com alguma frequência para fazer queer bating (o uso da constante sugestão de um interesse amoroso gay que nunca se concretiza), se considerarmos séries tão distintas como “Shameless”, “Teen Wolf”, “Ugly Betty” ou “Glee”, elas nos apontam um caminho que o cinema mainstream norte-americano ainda tem a percorrer: o uso corriqueiro da representação do personagem adolescente gay removido da carga de conflitos que se pressupõe ser pertinente exclusivamente a ele e a inserção dessa representação em qualquer gênero de filme. Inclusive como protagonista.

Notas

[1] DOHERTY, Thomas. Teenagers and Teenpics: The Juvenilization of American Movies in the 1950’s. Philadelphia: Temple University Press, 2002.

[2] DENNIS, Jeffrey P. We Boys Together: Teenagers in Love Before Girl-Craziness. Nashville: Vanderbilt University Press, 2007.

[3] Idem.

[4] Idem.

[5] Expressão que designa o conjunto de regras de censura adotado em 31 de março de 1930 nos Estados Unidos com o objetivo de subordinar as produções teatrais e de cinema naquele país a padrões determinados por um grupo de instituições religiosas capitaneado pelo advogado presbiteriano William H. Hays, que presidia a poderosa Motion Picture Association of America (MPAA). Fonte: Wikipedia.

[6] Motion Picture Association of America (MPAA).

[7] DOHERTY, Thomas. Teenagers and Teenpics: The Juvenilization of American Movies in the 1950’s. Philadelphia: Temple University Press, 2002.

Fábio Silveira

Formado em Comunicação Social - Jornalismo pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Trabalha com cinema e música. Foi Analista de Projetos Especiais no Instituto Gênesis (PUC-Rio) e International and New Media Manager na Deckdisc. Atualmente, é Label Manager Brazil da Altafonre Music Network. 

5 Comments Deixe um comentário

  1. Texto muito interessante, exposição clara e abrangente, citando exemplos pouco conhecidos, como o filmes do chamado cinema queer. Bom tema para uma linha de pesquisa. No cinema brasileiro, temos alguns poucos exemplos. Um abraço.

  2. Texto bem escrito e reflexivo sobre como a indústria cultural trabalha manutenção de certos srtatus quo. Vale ressaltar os filmes que procuraram focar no valor do bromance e acabaram despertando o preconceito do público. Quanta desconfiança foi levantada e piadas feitas sobre a relação de Sam e Frodo na saga O Senhor dos Anéis. Também vale destacar que muitas séries tem ampliado de forma ostensiva a inclusão do universo LGBTQ em suas tramas, tanto que eles não são mais um personagem descolado dentro dos cenários, onde sua sexualidade definia sua personalidade (como acontecia, por exemplo, com o Kurt em Glee ou o Lafayete em True Blood). Agora a sexualidade é apenas um dos elementos que os definem. Entre os muitos exemplos, importante destacar o trabalho do canal CW, onde a maioria de suas séries faz esse trabalho. Inclusive seu universo de super-heróis passa por isso.

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