É comum achar que apenas militantes de esquerda foram reprimidos pela Ditadura Militar (1964-1985). Mas isso é um equívoco. Por mais que comunistas, socialistas e grupos revolucionários tenham sido as principais vítimas do regime autoritário, a repressão atingiu muito mais gente e setores da sociedade. A ditadura cassou políticos, perseguiu sindicalistas e extinguiu partidos de diversas ideologias. Houve censura de jornalistas, artistas, músicos e professores foram presos ou exonerados. Até mesmo a comunidade científica foi alvo da repressão: diversos cientistas do Instituto Oswaldo Cruz (IOC) foram taxados de “subversivos” e cassados pelo regime. O episódio ficou conhecido como “O Massacre de Manguinhos”. Houve ainda o caso de empresas privadas que foram intencionalmente prejudicadas, caso da “Panair do Brasil”, fechada, segundo a Comissão da Verdade, por motivos políticos. Até bailes black no Rio de Janeiro sofreram com os militares, que suspeitavam que os DJs do evento queriam implantar um regime de segregação racial no país.
Uma história ainda pouco conhecida é a da repressão na Petrobras, a maior e mais importante estatal brasileira, criada em outubro de 1953, durante o segundo governo Getúlio Vargas (1951-1954). Tão logo os militares tomaram o poder em 1964, trataram de tentar controlar a empresa. Orientado pela Doutrina de Segurança Nacional, o regime militar acreditava que comunistas e sindicalistas tinham dominado os quadros da petrolífera. Para tentar reverter esse processo (imaginário), foram criados órgãos de investigação e vigilância. Diversos funcionários foram perseguidos, caluniados e exonerados da empresa. Muitos ainda hoje lutam na justiça em busca de reparação pelo arbítrio e violência.
Dominação “comuno-sindicalista”
Os militares acreditavam que era um dever patriótico salvar a Petrobras do “domínio comuno-sindicalista”. De acordo com as pesquisadoras Luci Praun e Claudia Costa, que estudaram a repressão da ditadura na Petrobras, essa justificativa foi usada para se montar uma robusta estrutura de vigilância, monitoramento e investigação dentro da estatal. O ponto de partida desse sistema foi a Comissão Geral de Investigação (CGI), fundada poucos dias depois do Golpe com a missão de promover uma “limpeza da Petrobras”.
Comandada por um general, segundo apontam as duas investigadoras, a CGI levantou cerca de 3 mil suspeitos em pelo menos 1.500 processos de investigação. Entre abril e outubro de 1964, período em que a CGI funcionou, 516 trabalhadores da Petrobras foram sumariamente demitidos como resultado dos temidosInquéritos Policiais-Militares (IPM). Outros tantos tiveram contratos rescindidos, foram intimidados, transferidos de área ou sofreram sanções administrativas.
Mas a violência foi muito além de sindicâncias, demissões e outras punições no plano administrativo. De acordo com Praun e Costa, alguns trabalhadores da Petrobras foram presos e torturados, caso do deputado federal Mário Soares Lima, dirigente sindical petroleiro da Refinaria Landulpho Alves, na Bahia. Segundo o jornal carioca Correio da Manhã, o parlamentar e funcionário da Petrobras foi submetido a surras diárias na prisão da Polícia Militar.
Constrangimentos públicos
Nos últimos anos, novos casos de ameaças e constrangimentos envolvendo funcionários da empresa durante a ditadura se tornaram públicos. Um deles veio à tona em 2014, quando o engenheiro Roberto Ribeiro Coimbra, que entre 1962 e 1964 chefiou o Departamento de Engenharia da Refinaria Duque de Caxias (Reduc), deu uma entrevista ao jornal da Associação Nacional dos Anistiados da Petrobras, o Conape Notícias. Segundo explicou o engenheiro, o ambiente da empresa foi contaminado pela ditadura militar. “Era uma atmosfera de intrigas, boatos, mentiras e falsidades. Indivíduos bajulavam abertamente e abjetamente os governantes”.
Coimbra se tornou uma espécie de desafeto dos militares quando se recusou a assumir a vaga do engenheiro Fernando Ribeiro, que deixara a empresa por imposição dos militares. Pressionado pelo presidente da Petrobras na época, o Marechal Adhemar de Queiroz, ele acabou acatando a “ordem”, mas, em suas palavras, o seu “calvário” tinha apenas começado. Em certa ocasião, conta Coimbra, ele conseguiu anular um contrato lesivo à Petrobras que previa a montagem de um grande número de tanques de armazenamento de óleo cru e de derivados. Mas o reconhecimento não veio. Pelo contrário: o ato foi visto com desconfiança e acusações. “Anulei a concorrência e fui acusado de estar sabotando a revolução [golpe militar], atrasando a obra de ampliação da Reduc”.
Em junho de 1964, um novo episódio: Coimbra recebeu um memorando do Cel. Adolpho Rocca Dieguez, recém-empossado como diretor da Petrobras, acusando-o de envolvimento em um “esquema ideológico subversivo”. O engenheiro rebateu as acusações. Após se recusar a demitir “empregados inconvenientes”, Coimbra foi exonerado por solicitação do Comandante do 1º Exército. Foi afastado das dependências da empresa e teve que aguardar em casa o resultado de um inquérito sobre ele. Concluída a investigação, ele retornou ao cargo de superintendente da Reduc. Em abril do ano seguinte, solicitou sua licença de um ano, sem vencimento, para tratar de interesse particular e, em 1965, após expirar o período de licença, pediu demissão da Petrobrás.
Prejudicados sem nunca saber
Em entrevista ao periódico científico Tempo e Argumento, o historiador Carlos Fico sublinha que houve casos de funcionários da Petrobras que foram prejudicados pelo aparato repressivo e de vigilência e nem ficaram sabendo:
“Recordo do caso de um funcionário de carreira da Petrobras que foi cogitado para assumir uma diretoria importante na empresa. Esse funcionário, assim como qualquer outro que era cogitado para nomeações importantes, foi fichado pelo órgão de informações que atuava na Petrobras. E o agente de informações fez o seguinte relato: ‘esse funcionário é um notório comunista, subversivo e frequenta reuniões no partido’. Essa informação foi para o presidente da Petrobras, que desistiu da nomeação. Os agentes de informações tinham esse poder de intimidar com esses papéis. E o que aconteceu? Este homem era um homônimo. Este infeliz da Petrobras era completamente apolítico, apartidário, jamais foi de esquerda, era até bastante conservador. Mas era homônimo de um efetivo comunista. Assim como essa, houve muitas situações de pessoas que foram prejudicadas e sequer sabem”.
A Divisão de Segurança e Informações (DIVIN)
Um dos principais órgãos repressivos na Petrobras foi a Divisão de Segurança de Informações, o DIVIN, encarregada de fazer investigações políticas sobre empregados da estatal. Uma das principais atividades da DIVIN era a “Ficha de Controle da Investigação Político Social”. Essas fichas, segundo explicam Praun e Costa, embora tivessem como foco investigar trabalhadores com alguma atividade considerada suspeita pelo regime ou que tinham posição contrária à dos militares, “todos os trabalhadores da Petrobras estavam sob a mira das estruturas de repressão”.
A ficha também se tornou parte do processo seletivo da Petrobras. Qualquer novo funcionário, antes de ter sacramentada a admissão, era submetido a esse escrutínio político interno. O documento trazia nome, filiação, numeração de documentos civis, endereço e três referências que poderiam ser procuradas para atestar a identidade e o comportamento do possível funcionário. Ao fim, a Ficha de Controle servia também como um prontuário interno do funcionário, podendo receber observações ao longo de sua atividade na empresa. O documento foi aplicado com esse nome e natureza investigativa até 1980.
Os funcionários e candidatos, mesmo os que não tinham qualquer atividade política, temiam os indiciamentos, investigações e outros processos da DIVINC. Como é praxe em muitos regimes autoritários, inveja, desentendimentos, ressentimentos ou cobiça por cargos costumam servir de motivadores para denúncias, inclusive infundadas, a fim de obter para si ganhos ou provocar em outro perdas profissionais.
De acordo com funcionários da época, agentes da DIVIN transitavam livremente pelos corredores da Petrobras, observando “suspeitos” e participando de manifestações. Vários quadros da DIVIN pertenciam ao Exército e tinham sido cedidos à Petrobras. A maioria atuava no Edise, o Edifício Sede da Petrobras, localizado na Carioca, no centro do Rio de Janeiro. Vale sublinhar que, apesar do temor que provocava, a DIVIN estava tão enraizada na estrutura interna da empresa, que muitos funcionários acabaram “normalizando” a checagem político-social que, afinal, fazia parte da rotina dos processos de seleção e contratação.
A robustez do sistema repressivo que operava dentro da Petrobras pode ser percebida em um ofício enviado em 28 de junho de 1974 ao Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (DEOPS-SP), pelo então Superintendente da Refinaria de Capuava (RECAP), Percy Louzada de Abreu. Esse ofício, segundo afirmam Praun e Costa, comunicava que, “a partir daquela data, como resultado da incorporação da antiga Refinaria e Exploração de Petróleo União S.A. à Petrobras, decidida no início daquele mês, a RECAP passaria a compor o que o signatário do ofício denominou de “Organograma de Segurança da Petrobras”. De acordo com as autoras, o ofício referenda “a tese de funcionamento regular de um sistema de informações nacional, hierarquizado, bem articulado interna e externamente”.
Em 2013, um levantamento feito pela Petrobras em parceria com a Comissão Nacional da Verdade, identificou que o Serviço Nacional de Informação monitorou cerca de 26 mil prontuários de funcionários da empresa. Em nota, a Comissão informou na época: “O SNI monitorava movimentações de funcionários e aparentemente tinha poder de veto sobre promoções, caso encontrasse na ficha do funcionário algo considerado subversivo ou inapropriado ao regime militar”.
Sonhos destruídos
Os funcionários que sofreram com as medidas repressivas dentro da Petrobras tiveram seus sonhos de carreira interrompidos. Muitos passaram por dificuldades financeiras, não conseguiram se reposicionar no mercado de trabalho e viram seu sonho de funcionário dentro de uma importante estatal ser destruído. Deste modo, além dos impactos econômicos, havia também os psicológicos. Ao fim, profissionais competentes e que poderiam ter contribuído para o desenvolvimento nacional foram colocados para fora da empresa, não raro sem qualquer tipo de indenização ou qualquer outro direito trabalhista respeitado.
Gildásio Ribeiro, ex-diretor do Sindipetro e que integrou a Comissão Nacional de Anistia, trabalhava na Petrobras em 1983 quando foi demitido por participar de uma grande greve que ocorreu em julho daquele ano, na Bahia. Em entrevista à Federação Única dos Petroleiros, ele explicou a dificuldade em conseguir um novo emprego após a demissão da estatal, haja vista que a Divin continuava a prejudicá-lo mesmo eles já estando fora da empresa:
“Alguns conseguiram emprego na Rhodia, que era uma multinacional francesa e que, portanto, não tinha ingerência do governo brasileiro. No meu caso não consegui ficar empregado de jeito nenhum porque a Divisão de Informação da Petrobras (DIVIN) não me deixou em paz. Recordo-me que nos dois anos que levei afastado da Petrobras eu consegui emprego em uma empresa no SUBAÉ, que é o Centro Industrial de Feira de Santana, chamada Química Geral do Nordeste. Mas me descobriram e mandaram me demitir. Depois o finado Jair Brito, companheiro de muita luta, comunista de primeira linha, conseguiu me encaixar na Deten. Foram 45 dias até entrar em cena o famigerado repressor, coronel Silvio Dantas, que perseguia a mim e a outros. Fui trabalhar no turno de quatro a meia-noite quando o vigilante chegou para mim e disse: “você é um cara legal, mas o diretor de divisão mandou dizer que se você reagir eu podia puxar a arma. Você me acompanhe até o setor pessoal.” Quando cheguei ao setor pessoal, ele foi curto e grosso: “eu não tenho nada contra você. Foi o Serviço de Informação que mandou lhe demitir.” Eu, revoltado, voltei para casa e no outro dia fui ao escritório do DIVIN, que era na cidade baixa. Entrei na sala do coronel e para minha surpresa vi fotos dos demitidos, inclusive minhas. E ele, de uma forma muito cínica disse que só estava cumprindo ordens. Foram dois anos de muito sofrimento, mas também de muito aprendizado”.
Arquivos públicos
Desde o início do processo de abertura democrática, em 1979, ex-funcionários da Petrobras prejudicados pela ditadura vêm se organizando em busca de justiça. No próprio ano de 1979, foi formada a Comissão Nacional dos Anistiados da Petrobras, Conape, para cuidar dos direitos dos anistiados políticos e que, a partir de 1992, se tornou Associação Nacional dos Anistiados da Petrobras, embora mantendo o nome. Esse tem sido um dos principais caminhos para aqueles que foram demitidos ou sofreram algum tipo de ilegalidade.
Durante muito tempo os arquivos da DIVIN estiveram longe do acesso dos historiadores. Isso mudou em maio de 2013, quando a Petrobras entregou ao Arquivo Nacional o acervo de investigações políticas da sua antiga Divisão de Informações. O material, em parte já disponível online, reúne 426 rolos de microfilmes, que somem 131.277 fichas de controle resultantes de “investigação político-social” dos empregados da empresa. Esse vasto acervo, ainda pouco examinado, tem tudo para revelar mais dados sobre como agia a repressão na Petrobras, sobretudo a sua conexão com outros setores da ditadura.
Referências
FICO, Carlos. Ditadura militar brasileira: aproximações teóricas e historiográficas. Revista Tempo e Argumento, v. 9, n. 20, p. 5-74, 2017.
COSTA, Claudia; PRAUN, Luci. Pistas sobre a estrutura e as ações de repressão do Estado brasileiro no pós 1964 e sua configuração no interior da Petrobras. Revista do Arquivo, No.2, 2016.
Como citar este artigo
CARVALHO, Bruno Leal Pastor de. Vigiar e punir: a Petrobras durante a ditadura militar. (Artigo). In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/a-petrobras-durante-a-ditadura-militar/. Publicado em: 4 jan. 2021. ISSN: 2674-5917.