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"Bonaparte diante da Esfinge", óleo sobre tela de Jean-Léon Gérôme, 1886.

A invasão napoleônica do Egito

A conquista do Egito pela França é uma ideia que ganha corpo ainda no século XVII, mas foi somente no final do século seguinte, com a ascensão de Napoleão Bonaparte, que ela se concretiza. Em uma campanha que foi militar e “cultural”, Napoleão estabeleceu no antigo Império Otomano uma estrutura de poder complexa e que teve importantes consequências.
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A invasão francesa do Egito começou no dia 19 de maio de 1798 e evolveu quase 54 mil franceses. Ela teve caráter militar e cultural, devendo ser vista como parte das chamadas Guerras Revolucionárias, que se estenderam após a Revolução Francesa, contrapondo a França e várias outras monarquias europeias. Qual foi o objetivo desta invasão? Conquistar militarmente o Egito, salvaguardar sua cultura e minar a presença inglesa na região.

Planos antigos

Embora a expedição liderada por Napoleão parta de Toulon rumo ao Egito em 1798, a ideia (ou o projeto) começa a ganhar corpo mais de um século antes, em 1672, com Gottfried Wilhelm Leibniz. Mais conhecido por suas contribuições à filosofia e à matemática, Leibniz, que tinha então 25 anos, estava em Paris para entregar ao rei Luís XVI sua Memória sobre a Conquista do Egito [Memoire sur la Conquête de l’Egypte], com esperança de convencer o monarca a direcionar seus esforços de guerra não contra as Províncias Unidas (Holanda), mas sim ao Egito, então parte do Império Otomano.

Os argumentos apresentados foram dos mais variados. Leibniz comparou a França a uma China Ocidental, enquanto destacou semelhanças entre Egito e Holanda; relembrou ao rei que seus antepassados já haviam tentado conquistar a região (na malfadada sétima cruzada liderada pelo rei Luís IX entre 1248-1249), e por isso seu sucesso teria como resultado espólios ainda maiores que os esperados, dentre eles a submissão holandesa; citou uma suposta fraqueza militar otomana, agravada pela incapacidade das frotas de deterem um eventual ataque francês; e argumentou que essa “cruzada” ainda teria o resultado de cristianizar a região. No mais, a conquista do Egito asseguraria, na opinião do matemático, a possessão das Índias, do comércio asiático e a “dominação do universo”.

Os esforços de Leibniz, porém, foram infrutíferos. O rei deixou o Egito em paz e acabou mesmo fazendo a guerra contra a Holanda, saindo do conflito vitorioso seis anos depois, consolidando a França como primeira potência europeia. Na época, Leibniz, recebeu uma resposta frustrante de um dos ministros do rei: “as cruzadas deixaram de estar na moda desde São Luís” (Luís IX foi canonizado santo). O projeto de matemático e filósofo e suas recomendações, porém, foi retomado na segunda metade do século XVIII, quando as discussões sobre uma possível conquista francesa do Egito ganham mais espaço.

Uma nova oportunidade

A retomada de uma conquista do Egito no século XVIII pela França tem a ver uma mudança na forma como o país passa a enxergar o Império Otomano e, em particular, o Egito.  Desde 1500 o reino da França nutria relações diplomáticas amistosas com o Império Otomano, um império multiétnico (do qual o Egito fazia parte), bastante amplo, de maioria muçulmana e comandado por Sultões. Essas relações se davam principalmente através das chamadas “capitulações”, acordos comerciais que davam certos direitos a comerciantes e diplomatas, como o de se estabelecer, para os europeus, em cidades como Istambul, Alexandria e Cairo, e em Paris, Marselha e Toulon para os otomanos. As “capitulações” também asseguraram a não-perseguição religiosa, cláusula que era desrespeitada, porém, a depender de quem estivesse exercendo o controle otomano.

O cumprimento do que era estabelecido nas capitulações foi motivo de muitas discussões no decorrer do século, em especial pela incapacidade francesa de fazer frente as perseguições aos comerciantes franceses no Egito e pela dificuldade em impor suas vontades na diplomacia europeia. Essa “fraqueza francesa” tem a ver com algo maior: o declínio francês após a Guerra dos Sete Anos (1756-1763), pelo controle da exploração colonial.

Derrotada nesta guerra, a França perdeu possessões coloniais e vários direitos de exploração econômica. Quem mais se beneficiou do enfraquecimento francês foi a Inglaterra, que aumentou sua força em várias regiões que até aquele momento contavam com presença francesa. Foi o que aconteceu, por exemplo, no Reino de Mysore, localizado no sul da atual Índia. Tipu, rei de Mysore, sem apoio de tropas francesas, pouco pôde fazer para impedir o avanço colonial inglês em seus territórios.

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Explosão do L’Orient na Batalha do Nilo, 1º de agosto de 1798, óleo sobre tela de George Arnald, c. 1825. Museu Marítimo Nacional, Londres.

Para além da incapacidade de enviar tropas ao apenas mencionado sultão, a França se viu enfraquecida também em questões relacionadas ao continente europeu, em especial nos conflitos entre o Império Russo e o Império Otomano, e por fatores econômicos internos: a segunda metade do século XVIII foi marcada por muitas nomeações de ministros com propostas ambiciosas econômicas que nunca se realizaram por conflitos políticos internos.

Desse modo, qualquer proposta de controle do Egito ou de qualquer outra área do Império Otomano, especialmente aquelas com presença britânica, pareciam muito improváveis.

Novo olhar para o Egito

Isso começa a mudar no final do século XVIII, e tem muito a ver com uma espécie de renovação do interesse francês pela região. Os mais novos aliados da coroa francesa, os Estados Unidos, passaram a pressionar pelo reconhecimento de cidadãos protestantes. Essa mudança afetou a percepção dos franceses acerca de muçulmanos, já muito presentes no imaginário, e seus direitos. O Egito, que até o século XIX foi visto enquanto o berço da civilização, ganha novos contornos com os relatos muito circulados de comerciantes, philosophes e savants que visitavam a região, como Claude Étienne Savary e Constantin Chassebœuf, mais conhecido pelo apelido por ele criado e usado nos espaços intelectuais e de publicação, Volney.

Savary, formado no Collège de Rennes e iniciado em línguas orientais, visitou o Egito entre 1776 e 1779. Da experiência, escreveu alguns livros, como Vie de Mahomet, Morale de Mahomet, uma tradução do Corão, a base de uma gramática árabe publicada após sua morte e sua obra de maior impacto, Lettres sur l’Égypte.

O Egito de Savary, embora em grande parte imaginado (tudo que diz a respeito do Alto-Egito não passa de invenção, tendo em vista que não esteve lá no decorrer de sua estadia na região), era o de uma terra que, embora estivesse em clara decadência, apresentava inúmeras possibilidades. O Egito por ele descrito era um em estado de decadência, mas que continha em seu interior o necessário para alcançar grandes riquezas. Mesmo sem marinha, manufatura, e com economia voltada quase que unicamente ao solo e ao comércio, ainda possuía riquezas, e essa “constatação” o levou a pedir a seus leitores que imaginassem o que essa terra seria na mão de um “povo esclarecido”.

Volney, por sua vez, tinha uma perspectiva muito negativa do Egito. Para ele, o árabe falado na região era barbárico, as mulheres se assemelhavam a fantasmas por debaixo de seus véus, as habitações possuíam um aspecto arruinado, e o Nilo era poluído e “repleto de vermes”. O resultado de todos os pequenos incômodos apenas listados, unidos à sua percepção geral da província otomana, foi a descrição de um Egito “que agonizava sob o mais lamentável despotismo”. A vida social, destruída pelos beys (por ele adjetivados como “soldadinhos licenciosos e grosseiros”), era limitada às relações entre mestres e escravos.

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Pintura a óleo da batalha entre o exército francês, sob Napoleão (1769-1821), e o exército Otomano durante a invasão francesa do Egito em 1798. Pintado em 1808 pelo pintor francês Louis-François, Barão Lejeune (1777-1848). Coleção do Palácio de Versalhes, França.

Ainda assim, Volney concordava, de maneira paradoxal, com Savary: o Egito deveria ser governado por uma sociedade mais esclarecida. Não por questões puramente imperiais e nem por suas potencialidades econômicas, mas pela preservação do glorioso passado egípcio. “Este país decrépito e sem promessas”, escreveu, “que não se compromete a nada, é bom para ser tomado”. Se o Egito, completa, “fosse posse de uma nação amiga das belas-artes, encontraríamos, para o conhecimento da Antiguidade, recursos que agora o resto da terra nos recusa”. Para além de um claro resgate civilizatório, afinal estariam salvando e recuperando uma região do declínio, percebe-se claramente que o domínio francês também seria benéfico não só para a economia francesa, como para as pretensões imperiais. O Egito, afinal, seria uma porta mais conveniente à Ásia, capaz de fornecer uma grande vantagem na competição com a Inglaterra, e de reestabelecer, assim, o poder perdido depois de 1763.

O interesse de Napoleão

O jovem Napoleão muito leu e estimou Volney, assim como teve grande interesse pelo Império Otomano e suas províncias, a ponto de ter tentado se alistar no exército otomano, já nos anos revolucionários, antes de fazer parte do cerco a Toulon em 1793 e, vitorioso, ascender à patente de general em 22 de dezembro do mesmo ano.

Após uma campanha de sucesso estonteante na Itália entre os anos de 1796 e 1797, que lhe rendeu a alcunha de “Conquistador da Itália”, Bonaparte retornou à Paris. No dia seguinte à sua chegada, Napoleão compareceu a uma reunião no Ministério de Relações Exteriores, comandado por Talleyrand. Apesar de ser o primeiro encontro de ambos, tem-se pelos registros que foi uma reunião produtiva o suficiente tanto para aumentar a estima do general perante o ministro quanto para as confabulações realizadas em seu decorrer.

Talleyrand era contra a ideia de invadir a Inglaterra, e defendia, por sua vez, a conquista do Egito. A notícia da morte do embaixador francês em Constantinopla, recebida em Paris no fim de janeiro de 1798, possibilitou ao ministro e ao general retomarem a proposta de invadir a província otomana frente a um Diretório dividido. A confabulação foi bem-sucedida, e Bonaparte esteve a frente da organização da “expedição” ao Egito.  

A expedição ao Egito não seria apenas militar. Após convencer o Diretório e a alocar os fundos para custear a empreitada, Bonaparte percebeu que a conquista do Egito poderia mostrar-se uma oportunidade excelente para sanar um problema apontado por Monge, um dos mais célebres membros da Académie Française, quando de sua estadia na Itália: a disparidade entre o que se sabia sobre as civilizações greco-romanas em detrimento do pouco conhecido sobre a história egípcia.

Portanto, foi autorizada a criação de uma Comissão das Ciências e das Artes para acompanhar o corpo expedicionário, composta por membros da Académie e outras instituições acadêmicas sob influência francesa, que teriam a missão de estudar tudo o que fosse possível em relação à região – costumes, história, clima, “crenças”, hábitos, fauna e flora, ruínas, etc. – e divulgar os resultados. Assim, a Comission de Sciences et Beaux Arts se formou, com 167 membros, grande parte acadêmicos, e um político: Tallien. A expedição parte rumo a Alexandria em 1798, com 54 mil franceses.

Após a conquista de Alexandria, de uma extenuosa marcha pelo deserto e a conquista da cidade do Cairo, Bonaparte se tornou mestre de facto do Egito. A administração francesa impôs a criação de uma série de novas instituições, visando criar um governo com características republicanas — ainda que, em realidade, Bonaparte possuísse o poder de decisão —, dentre elas o Instituto do Egito. O instituto, que se espelhava no Institute national, servia como “centro de discussões acadêmicas”, tendo sido o local no qual os “acadêmicos” que compuseram a Comissão de Artes e das Ciências se reuniam para debater os achados e escrever suas Memoires.

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Bonaparte visitando o Pesthouse em Jaffa, óleo sobre tela de Antoine-Jean Gros, 1804. Louvre, Paris.

Napoleão estabeleceu um divan, conselho que teria a responsabilidade de administrar a região, composto por membros da academia francesa, do corpo expedicionário e da região, com quem, aliás, discutiu o Alcorão e as proximidades entre franceses e muçulmanos geradas, sobretudo, pela inimizade com o papado. A sua administração estabeleceu jornais, uma prensa, impôs impostos as esposas dos antigos líderes do Egito, que conseguiram fugir dos franceses após a derrota na batalha pela conquista do Cairo, foi responsável pela morte de cachorros, cujos latidos serviam de alerta à população, e ordenou a destruição de portões que isolavam distritos da cidade e eram responsáveis pela segurança local.

Bonaparte ficou no Egito até 1799, quando, após a derrota na Síria e a descoberta da perda da frota ancorada em Alexandria, queimada pelos ingleses, abandona o posto e retorna para a França. Os generais Jacques-François Menou e Jean Baptiste Kléber, que havia se convertido ao Islã, assumem o comando da ocupação, e são capazes de resistir as tentativas otomanas de recuperar o território, até Kléber ser assassinado em junho do ano seguinte. Menou se viu, então, incapaz de fazer frente a recém-formada união entre o Império Otomano e a Inglaterra, e, junto dos membros do Instituto do Egito, negociou a rendição francesa e o retorno da forca expedicionária, transportada pelos navios ingleses. A ocupação francesa do Egito se encerra desse modo, em 1801 e, de maneira formal, em 1802, com a devolução da região para o domínio otomano. 

Saldo da invasão e da ocupação francesa

Os saldos da invasão e ocupação francesa são variados. A descoberta da pedra de Roseta, ocorrida durante a expedição, e sua posterior decifração por Jean-François Champollion, foram fundamentais para o nascimento da egiptologia contemporânea. A política externa da França também mudou ao deixar a “Política das Repúblicas Irmãs” e adotar o projeto da “Grande Nação”, que se diferia da política em dois aspectos: descartava a necessidade de um movimento republicano interno (revolucionário ou não) para legitimar uma invasão francesa; e não mais limitava o espaço de ação às fronteiras ou às colônias.

No Egito, movimentos em prol da independência do domínio otomano também cresceram, enquanto em Istambul o sultão se viu aliado de antigos inimigos, como os russos e austríacos. Em resumo, a invasão napoleônica do Egito marca a construção da política imperialista francesa e o começo do fim do Egito Otomano.

Referências

BRÉGEON, Jean-Joël. L’Egypte de Bonaparte. Paris, Pérrin, 2009 [1991].

CARVALHO, Daniel Gomes de. Revolução Francesa. São Paulo, Editora Contexto, 2022.

COLE, Juan. Napoleon’s Egypt: Invading the Middle East.New York, St. Martin’s Griffin, 2008 [2007].

SAID, Edward W. Orientalism. London, Penguin Books UK, 2003 [1978].

ZAMOYSKI, Adam. Napoleão: o homem por trás do mito. São Paulo, Editora Planeta do Brasil, 2020 [2018].

Como citar este artigo

PINORI, Gino. A invasão napoleônica do Egito: 1798-1801 (Artigo). In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/a-invasao-napoleonica-do-egito/. Publicado em 25 set. de 2023. ISSN: 2674-5917.

Gino Pinori

Mestrando em História pela Universidade de Brasília. Bacharel em História por esta mesma universidade. Possui interesse em História da Ásia, Imperialismo na “Época Moderna” e Contemporânea, e construção da narrativa histórica.

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