No dia 25 de novembro de 1935, uma segunda-feira, a edição do jornal carioca A manhã estampava em sua capa com letras garrafais a manchete: “Irrompeu a revolução em Pernambuco e no Rio G. do Norte”. O periódico dava conta de que as duas capitais nordestinas estavam “convulsionadas” e que o presidente Getúlio Vargas acompanhava atento a situação, junto a ministros e assessores reunidos no Palácio da Guanabara. O episódio que os redatores de A manhã acabavam de noticiar como uma “revolução” ficaria conhecido na História do Brasil Republicano como a Intentona Comunista, e sua narrativa seria e ainda é muito disputada por diferentes grupos intelectuais e políticos.
Mas, o que foi a insurreição de 1935?
A insurreição de novembro de 1935 foi uma série de sublevações ocorridas em unidades militares de Natal, Recife e Rio de Janeiro. Essas rebeliões estão inseridas em uma articulação maior, arquitetada em nível nacional pela ANL e executada precipitadamente por expoentes do movimento tenentista e lideranças comunistas regionais. Há ainda nessa conjuntura a presença da Internacional Comunista, uma organização com sede em Moscou que tinha o objetivo de deliberar e orientar partidos comunistas de diversos países.
Apesar de terem se desenrolado em cadeia, cada uma das revoltas teve motivações, características e comandos distintos. No sábado, 23 de novembro, um grupo de militares começou a demonstrar intenção de levantar o 21º Batalhão de Caçadores, em Natal, Rio Grande do Norte, em protesto a dispensas de praças ocorridas no dia anterior. Dirigentes locais do PC foram informados da iminente rebelião, mas tentaram convencer os líderes da quartelada a aguardarem orientações do secretariado nordestino, localizado em Recife. Diante da resistência dos militares em adiarem a revolta, os comunistas decidiram assumir a direção política do levante. Com o 21º Batalhão de Caçadores rendido, a capital foi facilmente dominada e a revolta se espalhou pelo interior do estado, levando várias cidades a também se rebelarem. O Rio Grande do Norte foi o único dos três focos da insurreição que contou com apoio popular relevante, chegando até a instalar um Comitê Popular Revolucionário.
Ainda na noite de sábado, as notícias da tomada de Natal chegaram aos dirigentes do partido em Recife. Os relatos de que as massas haviam aderido à revolta armada entusiasmaram os comunistas pernambucanos. Contando que o mesmo ocorreria em Pernambuco, eles marcaram a rebelião para a manhã do dia seguinte.
Assim que o dia amanheceu os insurretos do 29º Batalhão de Caçadores renderam seus companheiros e partiram para a tomada da capital. No entanto, por ser um domingo, militares simpatizantes do programa aliancista haviam ido para casa e sequer ficaram sabendo da ação.
Nas ruas da cidade, operários e populares se recusaram a pegar em armas por receio ou por não conseguirem identificar o propósito do movimento. Com pouco contingente, os revolucionários não conseguiram chegar à capital, ficando restringidos ao Largo da Paz, Moreno, Jaboatão e Olinda. Em pouco mais de 48 horas as forças legalistas contiveram os rebeldes.
Na terça-feira, dia 26 de novembro, com Pernambuco pacificado e Rio Grande do Norte prestes a ceder às investidas das tropas governistas, Luis Carlos Prestes decidiu que havia chegado o momento de levar a revolução à tona e ordenou o levante do 3º Regimento de Infantaria, na Praia Vermelha, Rio de Janeiro. O quartel foi tomado e os oficiais presos, mas as tropas da 1ª Região Militar estavam de prontidão e cercaram os amotinados. Os rebeldes resistiram até o fim da manhã de quarta-feira, 27 de novembro, mas tombaram diante dos ataques comandados pelo general Erico Gaspar Dutra, dando fim à tentativa revolucionária.
Um passado em disputa
Mesmo passados quase 90 anos, ainda há um espólio em disputa pela memória e narrativa dos levantes de 1935. Anualmente, no dia 27 de novembro, em tradicional solenidade com direito a toque de silêncio e salva de gala de 21 tiros, o Exército Brasileiro rememora as vítimas da sublevação. Em 2018, o então comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, anunciou em sua conta oficial no Twitter que havia determinado a análise da revolta sobre o pretexto de que “não tenhamos, nunca mais, irmãos contra irmãos vertendo sangue verde e amarelo em nome de uma ideologia diversionista”.
Em 24 de novembro de 2021, o deputado federal Eliéser Girão (PSL/RN), general de brigada da reserva do Exército Brasileiro, subiu à tribuna da Câmara dos Deputados para discursar em favor do que chamou de “semana de enfrentamento ao comunismo”. De acordo com o parlamentar, “o Brasil já reagiu ao comunismo, e vai continuar reagindo, sim, porque as famílias brasileiras defendem a sua família, defendem Deus e querem, sim, o amor à Pátria”.
Declarações como essas são relativamente comuns e não devem ser interpretadas meramente como retórica política ou protocolos institucionais. Apesar de a historiografia ter produzido ao longo dos anos vastas análises sobre a insurreição de novembro de 1935, com diferentes perspectivas e abordagens, parte do imaginário popular sobre a tentativa revolucionária foi construída a partir do anticomunismo, disseminada pela imprensa e ratificada por parte dos livros de história sobre o tema.
O próprio termo “Intentona Comunista”, claramente pejorativo, foi utilizado pelos seus detratores ao longo dos anos para depreciar o movimento. O objetivo era imputar ao levante o aspecto de uma ação improvisada, temerária, insensata, como o próprio dicionário nos sugere. Esse esforço fica evidente quando olhamos para os documentos oficiais produzidos logo após a insurreição, como inquéritos policiais, arquivos da Justiça e jornais, em que o episódio é referenciado como “revolta de novembro” ou “movimento extremista”.
A historiadora Marly de Almeida Gomes Vianna, no entanto, explica que os levantes não podem ser considerados um ato tresloucado, pois havia um planejamento prévio dos revolucionários, ainda que o movimento tenha sido deflagrado precipitadamente. Da mesma forma, a autora argumenta que a revolta foi provocada por militares da Aliança Nacional Libertadora (ANL) remanescentes do movimento tenentista, e não pelos comunistas.
Também existe no senso comum uma outra interpretação igualmente alimentada pelo anticomunismo: a de que os atos foram diretamente comandados e financiados por Moscou, privilegiando-se o fator externo/internacional para explicar as causas da sublevação.
Essa versão foi propagada e fortalecida por livros de história e pelos agentes da repressão, ou seja, a “história dos vencedores”, na tentativa de deslegitimar o protagonismo dos agentes locais que estavam à frente da revolta, representando-os como manipulados pelos interesses soviéticos.
Para o sociólogo e historiador Nelson Werneck Sodré, no entanto, a Internacional Comunista (IC) teve papel secundário na revolta. O autor considera que fatores internos como a agitação política nacional, o desgaste dos governos estaduais e central, as greves operárias e um erro de avaliação do PCB e de Luís Carlos Prestes sobre a real situação do país foram determinantes para desencadear os atos.
Importante salientar que parte da produção bibliográfica referente à 1935 aparece em estudos sobre o PCB, a Era Vargas, o Brasil nos anos 1930 ou bibliografias de personagens de grande projeção daquele contexto, como Prestes e o próprio Getúlio Vargas. As obras de Vianna e Sodré talvez sejam as mais completas que se dedicaram exclusivamente a analisar a insurreição.
Há ainda um extenso catálogo de livros de memórias escritos por testemunhas que vivenciaram aqueles acontecimentos, em grande maioria dividindo as trincheiras com os rebeldes ou simpatizando com as causas revolucionárias. Essas obras memorialistas ou autobiográficas, apesar de não seguirem o rigor científico de uma pesquisa histórica, são ricas em detalhes e ajudam a preencher algumas lacunas deixadas pela historiografia. Ainda que de forma involuntária, essas publicações também contribuem para abordar os dias de levante em Natal e Recife, uma vez que, em grande medida, a bibliografia sobre o tema privilegiou a análise da tentativa revolucionária no Rio de Janeiro.
As discussões a respeito de 1935 devem ser revigoradas com as celebrações do centenário do PCB, a ser comemorado em março de 2022, tanto dentro da academia, quanto fora dela. No entanto, o certo é que mesmo com o passar dos anos e com uma bibliografia sólida sobre o assunto, a chamada “Intentona Comunista” ainda suscita debates acalorados e estimula pesquisadores a se debruçarem sobre seus motivos, peculiaridades e desdobramentos dentro do esforço de se entender o cenário político e social do Brasil no século XX.
Referências
COSTA, Homero. A insurreição comunista de 1935: Natal: o primeiro ato da tragédia. São Paulo/Natal: Ensaio/Cooperativa Cultural UFRN, 2015.
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em guarda contra o perigo vermelho: o anticomunismo no Brasil (1917-1964). Niterói: Eduff, 2020.
SODRÉ, Nelson Werneck. A intentona comunista de 1935. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1986.
VIANNA, Marly de Almeida Gomes. Revolucionários de 1935: sonho e realidade. São Paulo: Expressão Popular, 2007.
Como citar este artigo
LIMA, Bruno. Intentona Comunista: um passado em disputa. In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/a-intentona-comunista-de-1935/. ISSN: 2674-5917. Publicado em: 7 mar. 2022.