Mulheres artistas: o que ler (e assistir) para entender um pouco mais sobre essa história

Mudanças na historiografia, o crescimento do movimento feminista, a conquista de direitos femininos e a maior inserção das mulheres em ambientes acadêmicos de produção de conhecimento histórico possibilitaram pesquisas que têm procurado investigar e trazer à luz mulheres artistas de diferentes épocas e lugares, antes obliteradas, negligenciadas e esquecidas.
23 de outubro de 2023
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Exposição de Hilma af Klint no Museu Guggenheim, em Nova York. Foto: Ryan Dickey, Flickr.

Quando você pensa em um “grande artista” da história da arte, quem vem à sua memória? É muito provável que o primeiro (e o segundo, terceiro, quarto…) nome seja de um homem. Do renascimento à arte contemporânea, estamos muito mais familiarizados com os nomes de artistas homens do que artistas mulheres, mas por quê?

Não existiram artistas mulheres, ou suas histórias não foram contadas? Mulheres não possuem os mesmos talentos que homens, ou não foram ensinadas e inseridas em espaços de socialização e educação artística da mesma maneira que eles?

Ao longo dos últimos 50 anos, muito tem mudado na historiografia em relação a estas questões. O crescimento do movimento feminista, a conquista de direitos femininos e a maior inserção das mulheres em ambientes acadêmicos de produção de conhecimento histórico possibilitaram pesquisas que têm procurado investigar e trazer à luz mulheres artistas de diferentes épocas e lugares, antes obliteradas, negligenciadas e esquecidas.

Também há a chamada “virada global”, um movimento intelectual e acadêmico que tem contribuído nas últimas décadas para repensar o estabelecimento de cânones da história da arte e questionar a invisibilidade de mulheres artistas de diferentes partes do mundo.

É pensando na necessidade de tornar mais visível a história de mulheres artistas, bem como de problematizar as condições sociais e históricas de tal invisibilidade, que apresentamos 5 textos e 2 documentários que podem servir como introdução ao tema.

NOCHLIN, Linda. Por que não houve grandes mulheres artistas? São Paulo: Edições Aurora, 2016.

O que seria um “grande artista”? Michelangelo, Van Gogh e Pollock? A ideia de “grande artista” implica na existência de alguém que detém a genialidade, um talento e uma forma de “poder misterioso e atemporal” que não depende de nenhuma circunstância. Esse é o argumento da historiadora Linda Nochlin, para quem a questão “Porque não houve grandes mulheres artistas?” é apenas a “décima parte de um iceberg de más interpretações e falsas concepções”. A autora afirma que a falácia da questão está no conceito de “grande artista”, ancorado na ideia de “gênio”. O maior problema da ideia de “gênio” é que ela desconsidera as relações sociais e estruturas institucionais patriarcais que possibilitaram que tais “grandes artistas” obtivessem sucesso e reconhecimento. Acreditar que o que faz um grande artista seja meramente seu talento, coloca às mulheres o falso silogismo de que não houve grandes mulheres artistas, porque elas não tinham talento e aptidão para as artes. É justamente quando jogamos luz sobre os fatores histórico-sociais eclipsados pela ideia de “gênio”, que compreendemos a “ausência de grandes mulheres artistas”. Embora escrito há mais de cinco décadas e já ter sido alvo de diversas críticas, o texto de Linda Nochlin ainda é uma ótima porta de entrada para os debates acerca das categorias com as quais historiadores da arte operaram por séculos e que precisam ser revistas para escrever histórias de mulheres artistas.

POLLOCK, Griselda. Vision and difference: Feminism, femininity and histories of art. Londres: Routledge, 2015.

Se o texto Por que não houve grandes mulheres artistas? é considerado fundador, a produção de Griselda Pollock, por sua vez, amplia e relativiza algumas questões desenvolvidas por Nochlin. Vision and Difference: Femininity, Feminism and Histories of Art, também disponível em espanhol desde 2013 (Visión y diferencia. Feminismo, feminidad e historias del arte – Editorial Fiordo), é composto de 7 capítulos que discutem a importância da interdisciplinaridade, do contexto social e político para o campo. Nesta obra, Pollock desenvolve seu célebre conceito de “intervenções feministas”, reflexão que voltará a ser debatida pela autora em publicações posteriores. A autora argumenta que é preciso reconhecer as relações de poder de gênero, bem como tornar visíveis os mecanismos de poder masculino. Nesse sentido, ela se opõe à simples inclusão de nomes de mulheres na disciplina, ou a caça a percursos disruptivos, antes, argumenta em favor da desnaturalização do “feminino” como categoria atemporal.

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Elisabeth Louise Vigée Le Brun, The Marquise de Pezay, and the Marquise de Rougé with Her Sons, National Gallery of Art, Washington.

A autora argumenta que as mulheres artistas enfrentam uma dupla condição: por um lado, são influenciadas pelos papéis de gênero socialmente construídos, que moldam parte de sua subjetividade; por outro lado, têm a capacidade de ressignificar esses papéis através de sua prática artística. A contribuição central do texto de Pollock é a ideia de que a arte tem o potencial de capturar diferentes esferas de sensibilidade e interpretá-las temporalmente, sem perder de vista as disputas e complexidades dentro da sociedade. Ela também destaca o papel das intervenções feministas em promover uma “virada afetiva”, ou seja, em transformar as sensibilidades e as relações sociais ao oferecer novos modelos de percepção e compreensão do mundo. Em resumo, Vision and Difference trata da complexa interação entre gênero, identidade e prática artística, defendendo a capacidade da arte de desafiar e redefinir as normas sociais e de gênero estabelecidas.

TVARDOVSKAS, Luana Saturnino. Dramatização dos corpos: arte contemporânea de mulheres no Brasil e na Argentina. Campinas: 2013. Tese de Doutorado. [sn].

Fruto da pesquisa de doutorado da historiadora Luana Saturnino Tvardovskas defendida na Unicamp, Dramatização dos corpos: arte contemporânea de mulheres no Brasil e na Argentina  perpassa questões relacionadas à arte, política, memória, corpo e individualidade. O livro se concentra, a partir de uma perspectiva feminista, nas poéticas visuais de três artistas brasileiras (Ana Miguel, Rosana Paulino e Cristina Salgado) e três argentinas (Silvia Gai, Claudia Contreras e Nicola Costantino) e em como elas abordam e representam seus corpos, destacando formas de expressão, questões de gênero e lutas feministas. Tvardovskas analisa uma variedade de práticas artísticas, incluindo pintura, escultura, performance e instalação, e examina como essas artistas desafiam e reconfiguram as convenções tradicionais de representação do corpo na arte. Propondo um estudo à luz do pensamento intelectual de autores como Michel Foucault, Judith Butler, Gilles Deleuze, Félix Guattari e Margareth Rago, a autora demonstra, na mesma direção de Griselda Pollock, como a arte, mais do que simples produção de imagens, pode atuar para anunciar “novas possibilidades de intervenções na cultura”. Um trabalho inovador na relação entre arte contemporânea e movimentos feministas e que leva em consideração as especificidades do contexto da América Latina para a compreensão do desenvolvimento e desdobramentos de tal relação.

PEDROSA, Adriano; CARNEIRO, Amanda; MESQUITA, André. História das mulheres, Histórias feministas: Antologia. São Paulo: MASP, 2019. v. 2.

História das Mulheres, Histórias Feministas: Antologia (volume 2) publicada pelo Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, o MASP, acompanha o catálogo das mostras História das Mulheres Artistas até 1900 e Histórias Feministas: Artistas depois de 2000, ambas realizadas pelo museu, em 2019. A coletânea oferece ao público a tradução para o português de textos importantes acerca do debate feminista na história da arte. Autoras como Linda Nochlin, Griselda Pollock e Rosita Parker estão representadas, mas não somente. Dispondo de 41 textos, organizados cronologicamente, a antologia apresenta produções diversas, incluindo pesquisas relacionadas a América Latina. Seu recorte estende-se de 1835, com Elisabeth Louise Vigée Le Brun (1755-1842), importante pintora da corte de Maria Antonieta, a 2019, com Ana Paula Cavalcanti Simioni. Em suma, História das Mulheres, Histórias Feministas: Antologia é uma excelente porta de entrada para a produção de autoras renomadas anglo-saxãs e latino americanas.

SIMIONI, Ana Paula. Mulheres modernistas: estratégias de consagração na arte brasileira. São Paulo: Edusp, 2022.

Publicado no ano do centenário da Semana de Arte Moderna, Mulheres Modernistas: Estratégias de Consagração na Arte Brasileira é o mais recente trabalho da pesquisadora e professora Ana Paula Cavalcanti Simioni. Referência para o estudo de artistas mulheres no Brasil, Simioni alarga algumas das questões já apresentadas em seu livro anterior: Profissão Artista: Pintoras e Escultoras Acadêmicas. A publicação de 2022 brinda os leitores com uma interessante análise acerca das estratégias, do sucesso e da institucionalização alcançada por três importantes artistas brasileiras: Tarsila do Amaral, Anita Malfatti e Regina Gomide Graz. Para além de um olhar renovado sobre as carreiras de Anita e Tarsila, mais conhecidas do público, Simioni discute a trajetória de Regina e a arte decorativa moderna em São Paulo, permeada por uma rica discussão acerca da arte têxtil, gênero e a divisão sexual do trabalho no âmbito da produção artística. Ricamente ilustrado e abundante em documentos de época, Mulheres Modernistas é um convite para todos os que desejam aprofundar seus estudos sobre modernismo brasileiro sob a perspectiva do gênero, contudo, incontornável àqueles que desejam revisitar trajetórias consagradas como as das artistas alvo.

Beyond the visible – Hilma af Klint (2019)

O documentário dirigido por Halina Dyrschka conta a história da artista sueca Hilma af Klint (1862-1944) e propõe reflexões acerca do apagamento de artistas mulheres ao longo da História da Arte. Desconhecida por muitos e negligenciada por outros tantos, Klint foi uma artista pioneira em experiências com a arte abstrata, tendo inclusive precedido diversos trabalhos de artistas renomados do abstracionismo, como Piet Mondrian e Wassily Kandinsky. Além da ênfase na biografia da artista, o documentário também explora o contexto das primeiras décadas do século XX e o interesse da sociedade da época por questões místicas, espiritismo e teosofia.

El canon accidental. Mujeres artistas en Argentina (2021)

Produzido pela plataforma argentina Canal Encuentro e disponível gratuitamente no YouTube, El Canon accidental. Mujeres artistas en Argentina narra os bastidores de pesquisa da mostra homônima, fruto da pesquisa de Georgina Gluzman. O documentário, bem como a exposição, buscam visibilizar a produção de artistas mulheres que produziram entre os séculos XIX e XX. Se, antes, como nota Gluzman, tais artistas dominavam a cena artística, hoje encontram-se relegadas ao esquecimento – exemplar o caso de Eugenia Belin Sarmiento, cuja obra foi recuperada na rua e integra a mostra. Além dos bastidores da exposição e dos desafios de pesquisa, o documentário proporciona um emocionante encontro com familiares e pesquisadoras que se lançam no desafio de estudo e preservação da obra e memória de artistas mulheres.

Como citar esta bibliografia comentada

MACEDO, Nerian; SIMÕES, Gabrieli. Mulheres artistas: o que ler (e assistir) para entender um pouco mais sobre essa história. (Bibliografia Comentada). In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/a-historia-das-mulheres-artistas-bibliografia-comentada/. Publicado em XX out. de 2023. ISSN: 2674-5917.

Nerian Macedo e Gabrieli Simões

Nerian Macedo é doutoranda em História da Arte pela Unicamp com estágio de pesquisa na École de Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris. Desenvolve a pesquisa "Entre sombras e silêncios: a produção de Lucy Citti Ferreira e Yolanda Mohalyi" com apoio da FAPESP. Gabrieli Simões é Historiadora, professora de história e doutoranda em história da arte pela Unicamp.

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