No final da Primeira Guerra Mundial, uma pandemia de gripe ou influenza irrompeu no Hemisfério Norte infectando e vitimando milhões de pessoas em todo o mundo. A doença, conhecida em muitos lugares como “gripe espanhola”, dada a percepção errônea de que tivesse origem na Espanha, se propagou em ondas de diferentes intensidades – a primeira começou em março de 1918, apresentando baixa taxa de mortalidade; a segunda, altamente virulenta e com expressivo número de óbitos, propagou-se pelo mundo a partir de agosto do mesmo ano; a terceira, menos virulenta, emergiu em janeiro de 1919, estendendo-se, em alguns lugares, até 1920. [1]
Neste artigo, procuro mostrar como a Bahia, particularmente, enfrentou esta pandemia global. No estado nordestino, os primeiros casos da doença foram registrados em setembro de 1918, estendendo-se, no interior do estado, até o início de 1919.
Interesse renovado
O interesse pelas epidemias e pandemias do passado aumentou, exponencialmente, desde que outra doença respiratória aguda grave, provocada por um novo agente do coronavírus (SARS-CoV2), extrapolou as fronteiras da China, onde surgiu, atingindo vários países a partir de janeiro de 2020. Assuntos como estes, relativos à medicina e à saúde pública, permaneceram por longo período restritos aos profissionais da área.
A partir das últimas décadas do século XX, contudo, observa-se crescente produção historiográfica sobre epidemias provocadas por doenças como a peste bubônica, a febre amarela, a varíola, a cólera e a gripe. A eleição de um evento epidêmico como objeto de investigação de historiadores e historiadoras deve-se, entre outros fatores, ao fato de que a crise desencadeada por uma epidemia revela os valores sociais, as concepções culturais e práticas institucionais da sociedade atingida pelo flagelo.
Cada sociedade em particular constrói sua própria resposta à doença. De formas diversas, em diferentes períodos e espaços geográficos, indivíduos e grupos humanos utilizaram-se de signos, práticas e preceitos para racionalizar, administrar e combater as doenças. Dessa maneira, produziram seus próprios modos de definir a etiologia, a transmissão, a terapia apropriada e os significados de uma enfermidade, utilizando-se, para tanto, das ferramentas intelectuais de cada época e lugar.
Contudo, há um certo padrão na forma em que os fatos se desenrolaram nas epidemias. Para o historiador das Ciências e da Saúde, Charles Rosenberg, as epidemias seguem um padrão arquetípico das histórias de peste: começam como um evento discreto, mas de progressão contínua entre o incidente, a percepção, a interpretação e a resposta. Rosenberg criou um modelo interpretativo baseado em padrões repetitivos, historicamente vivenciados. De acordo com este modelo, os eventos de uma epidemia clássica, à semelhança dos atos de uma peça, obedecem a uma sequência narrativa que se desenvolve em quatro atos: no primeiro ato, a admissão da epidemia só acontece quando se torna impossível negá-la, ou seja, quando há expressivo número doentes e mortos; no segundo ato, inicia-se o processo de aceitação da epidemia e se constrói uma base explicativa para lidar com ela; no terceiro ato, há a adoção e administração de medidas de saúde pública, como o isolamento, a quarentena, as desinfecções, a interrupção do comércio e das comunicações; e o quarto ato caracteriza-se pelo abrandamento paulatino do surto e posterior retrospecção.
A “gripe espanhola” na Bahia
A epidemia de gripe espanhola na Bahia obedece ao padrão desenvolvido por Rosenberg, ainda que guarde as especificidades próprias do lugar e da época. Não se sabe ao certo quando a gripe chegou a Salvador, cidade portuária com conexões transcontinentais. Os primeiros registros surgiram depois o paquete inglês Demerara atracou na cidade, no dia 11 de setembro de 1918. Dias depois, passageiros que desembarcaram em Salvador, morreram com diagnóstico de gripe. Extremamente contagiosa, a doença se espalhou rapidamente. O número significativo de adoecimentos chamou a atenção dos jornais, que já repercutiam as notícias sobre a epidemia em curso no cenário da guerra.
Pressionados pela imprensa, médicos, autoridades públicas e sanitárias apressaram-se a negar o fato ou a minimizar os seus efeitos. A gripe figurava nas estatísticas da Diretoria Geral da Saúde Pública da Bahia (DGSPB), mas os óbitos decorrentes dessa doença eram considerados insignificantes se comparados com as taxas de mortalidade provocadas por males como a disenteria, a malária, a peste, a varíola, a febre amarela e, sobretudo, a tuberculose. Contribuía, também, para que as autoridades ignorassem a existência de uma epidemia, o fato de a gripe não ser doença de notificação compulsória, o que dispensava a obrigatoriedade de os casos serem reportados às autoridades sanitárias, invisibilizando-os.
Proteger a economia e a política
A admissão da ocorrência de uma epidemia em Salvador contribuiria para afetar negativamente a já delicada situação econômica e política do estado e do município. Naquela altura, disputas políticas entre as diversas facções de um mesmo partido, o Partido Republicano Democrata, agitavam a Bahia. O estado e o município atravessavam severa crise econômica em decorrência das restrições impostas pela guerra ao comércio de importação e exportação, base da economia baiana. Qualquer ameaça ao comércio repercutia nos setores dominantes daquela sociedade. Era preciso, portanto, preservar a cidade, local das transações comerciais, garantindo aos negociantes um porto “limpo” de doenças. A admissão da existência de uma epidemia em Salvador alarmaria o resto do país e afastaria os estrangeiros o que representaria sério golpe na já combalida economia do estado.
Além da complexidade que esses elementos conferiam ao processo de aceitação e reconhecimento da epidemia, as divergências e incertezas acerca da etiologia e do diagnóstico da doença contribuíam para postergar as respostas à epidemia. Para alguns médicos, tratava-se de uma doença nova, dada a gravidade, diversidade dos sintomas e sinais e altas taxas de mortalidade em uma faixa etária pouco comum – adultos jovens. Para outros, a observação do quadro clínico da doença confirmava a suspeita de que se tratava da gripe, doença infectocontagiosa, que periodicamente propagava-se pelo mundo. De um lado havia os que defendiam que o agente etiológico era o bacilo isolado por Pfeiffer em 1892. De outro, havia os que levantavam a hipótese de que o agente causal fosse um vírus filtrável, transmitido por um mosquito.
O protagonismo dos médicos
Antes de assumir qualquer posição, a Diretoria Geral da Saúde Pública da Bahia nomeou uma comissão de médicos para estudar o caso e determinar a natureza e a gravidade da doença, na expectativa de que tal disposição traria às autoridades as informações necessárias à adoção de medidas de controle adequadas e eficazes. Em outros lugares do Brasil e do mundo, os bacteriologistas se preocuparam em determinar o agente causador da gripe, a fim de desenvolver a grande arma da bacteriologia – a vacina. Todavia, os médicos baianos sabiam que para estabelecer o agente etiológico, o pesquisador precisaria cumprir uma série de etapas e procedimentos protocolares que demandavam tempo.
A comissão de médicos nomeados pela DGSPB sabia que não dispunha do tempo necessário a uma investigação bacteriológica, dada a extrema contagiosidade e velocidade com que a doença se propagava. Precisavam agir, cientes da grande visibilidade que a imprensa dava ao evento, especialmente os jornais que faziam oposição ao governo. Em meio às disputas políticas, às dissonâncias dominantes no meio acadêmico e científico nacional e internacional, os profissionais que integravam o quadro do serviço público de saúde precisavam demonstrar tranquilidade, conhecimento, competência, eficiência e segurança, estabelecendo o diagnóstico e recomendando uma profilaxia e uma terapêutica acertada, para que a tensão fosse atenuada, a ordem fosse mantida e a vida voltasse à normalidade.
A larga tradição clínica e higienista da medicina baiana orientou a comissão no sentido de privilegiar a investigação clínica e epidemiológica. Os médicos elegeram por campo de pesquisa diversas corporações e instituições públicas e privadas de Salvador, locais onde havia aglomeração humana. Depois de examinar um número superior a 500 doentes e observar os sintomas e sinais manifestados pelos infectados, eles concluíram que não se tratava de nenhuma doença nova, mas sim de gripe ou influenza, periodicamente observada na Bahia, embora se desenvolvesse, naquela quadra, com inesperada virulência.
Para os médicos, as precárias condições de moradia de grande parte da população de Salvador, espremida em porões, sobrelojas, casas de cômodo, cortiços e casebres, favoreciam a propagação da gripe em velocidade inusitada e num raio de ação mais abrangente do que o habitual. Doença de grande contagiosidade, a gripe tinha grande capacidade de propagação e velocidade de transmissão. Um indivíduo infectado tornava-se um agente disseminador da doença – ao falar, tossir ou espirrar, expelia em seu ambiente esputos ou perdigotos contaminados, os quais vinham a ser inalados pelos que se encontravam na circunvizinhança.
Naquela altura, os médicos reconheciam a causalidade específica de cada doença, mas ponderavam que as condições materiais de existência constituíam fatores importantes a considerar, quando se tratava da resistência do organismo humano às infecções. Eram considerados do grupo de risco os muito pobres, mal alimentados, que viviam aglomerados em espaços exíguos e precários, como também os idosos, os recém-nascidos, as mulheres grávidas ou em estado puerperal, os obesos, os portadores de doenças preexistentes ou crônicas, como as cardíacas e renais e, sobretudo, os que sofriam com doenças do trato respiratório, como asma, bronquite e tuberculose.
A DGSPB dividiu a cidade em zonas sanitárias e disponibilizou médicos para atender os indigentes e farmácias para a distribuição de remédios. Foram tomadas as medidas de praxe em tempos de epidemia – interdições, vigilância domiciliária e portuária, quarentena dos navios, desinfecções dos locais públicos, isolamento e tratamento médico dos infectados.
Medidas de profilaxia
Os médicos, contudo, tinham consciência de que contra a gripe não havia profilaxia ou terapêutica específica e eficaz, mas defendiam a adoção de medidas de profilaxia geral e de higiene pessoal na esperança de proteger o indivíduo da invasão da doença, fortalecer seu organismo e restringir o desenvolvimento da epidemia no interior das cidades. As pessoas foram orientadas a adotar medidas de higiene pessoal e geral: lavar sempre as mãos, desinfetar as vias respiratórias superiores com antissépticos, não escarrar no chão, se alimentar bem, respeitar o horário de repouso, não consumir álcool em demasia, evitar aglomerações e o pânico, porque o estresse gerado pelo medo fragilizava as defesas do corpo. As relações sociais sofreram restrições – foram desaconselhadas as visitas a amigos e parentes, abraços, beijos e apertos de mão. As medidas adotadas pela DGSPB, os “Conselhos ao Povo” e informações diversas sobre a gripe eram publicados nos jornais da capital e do interior do estado, portanto, a informação circulava, ainda que grande parte da população fosse analfabeta.
Situação de miséria aumentou o drama
Ao eclodir no interior do estado, a epidemia revelou um cenário de miséria, doenças e descaso por parte dos poderes públicos. A maioria das cidades estava completamente desaparelhada para enfrentar o flagelo – raro era o município que possuía um hospital, poucos contavam com a presença de um delegado de higiene ou de médicos. Além da extrema pobreza, significativa fatia da população não tinha acesso a serviços básicos, como água encanada e sistema de esgoto, vivendo em precárias condições sanitárias. A gripe, então, juntou-se às parasitoses, às doenças venéreas, à tuberculose, às doenças disentéricas, à malária e aos surtos de febre amarela e peste bubônica, contribuindo para aumentar o quadro de morbimortalidade.
O governo estadual enviou médicos e remédios para o tratamento dos indigentes aos municípios cujos líderes eram aliados políticos e/ou dispunham de prestígio pessoal. Algumas cidades, contudo, prescindiram desse auxílio, usando os próprios recursos.
Nos lugarejos remotos, sem grande representatividade política, o socorro não chegou, ainda que todos ou a maioria dos habitantes fossem acometidos pela doença. Nessa conjuntura, a população viu-se compelida, a assumir posição diante da doença que se alastrava com inusitada virulência, por meio de atos concretos de autodefesa e de solidariedade.
As respostas a um evento epidêmico são ecléticas e representam importante papel em meio à crise, visto que se constituem em ato concreto de autodefesa e solidariedade. Tais mecanismos de defesa contêm elementos cognitivos e emocionais, e podem ser informados tanto por concepções científicas, quanto religiosas. Cada resposta tem a própria racionalidade e as reações à doença são pertinentes ao contexto em que as pessoas estão inseridas, relacionando-se também à memória que a doença evoca.
Da medicina tradicional às forças sobrenaturais
Naquela altura, a medicina forjada nos meios científicos já tinha alcançado prestígio e a população recorreu aos médicos e aos remédios, fossem os disponibilizados pelo Governo do Estado ou pagos do próprio bolso, mas valeram-se, igualmente, dos conhecimentos da medicina tradicional, que atravessavam gerações: chás, xaropes, escalda-pés, purgantes, suadouros, cataplasmas e outras mezinhas receitadas por tias e avós fizeram parte do arsenal de combate à doença.
A quebra na rotina, provocada pelas interdições preconizadas pela DGSPB, bem como a insidiosa ação da doença, que prostrava e muitas vezes vitimava, colegas da escola e do trabalho, pessoas da família, da rua, do bairro e da cidade, contribuiu para reforçar na população a inquietude e o sentimento de consternação e angústia, próprios dos tempos de peste. As pessoas, então, buscaram o auxílio das forças sobrenaturais, havendo, nesse período, uma intensificação das manifestações de fé, traduzida nas mais diversos práticas religiosas: uso de guias, banhos de folhas, sacrifícios e oferendas aos orixás, consultas em centros espírita, promessas, ladainhas, missas, adoração de santos e procissões. Alguns rituais, contrariavam a recomendação de que as pessoas evitassem as aglomerações, especialmente em ambientes fechados, mas a necessidade de conforto espiritual falou mais alto que a razão.
Balanço da pandemia na Bahia
O avanço da gripe sobre o sertão durou até os primeiros meses de 1919, mas o número de óbitos e de infectados não foi contabilizado pelos órgãos do governo. Em Salvador, cidade, na época, com 320 mil habitantes, cerca de 130 mil pessoas contraíram a gripe e 386 pessoas morreram, de acordo com a versão oficial. Esses números não são precisos, dada a subnotificação dos casos e os óbitos registrados conforme as complicações provocadas pela gripe. Sabe-se, entretanto, que a gripe espanhola provocou na Bahia os transtornos característicos de uma epidemia clássica – mortes, isolamento, vigilância domiciliária e portuária, paralisação de fábricas e serviços –, mobilizando, para o seu controle, diversos setores da sociedade.
Notas
[1] Nota do editor: o nome “Gripe Espanhola” tem gerado debate intenso entre os historiadores da ciência e da saúde, uma vez que pode gerar preconceitos e obscurecer as origens da pandemia. No Brasil, o nome tem sido utilizado sempre com aspas na historiografia. Em alguns países, como Portugal, ela é conhecida simplesmente como “Gripe de 1918”.
Referências Bibliográficas
ROSENBERG, Charles E. Explaining epidemics and other studies in the history of medicine. New Brunswick, N.J.: Rutgers University Press, 1992.
SOUZA, Christiane M. C. de. A gripe espanhola na Bahia: saúde, política e medicina em tempos de epidemia. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; Salvador: Edufba, 2009.
TAUBENBERGER, Jeffery K.; MORENS, David M. 1918 Influenza: the Mother of All Pandemics. In: Emerging Infectious Diseases. A Peer-Reviewed Journal Tracking and Analyzing Disease Trends. Vol. 12, No. 1, January 2006. Disponível em: http://www.nc.cdc.gov/eid/content/12/1/pdfs/v12-n1.pdf Acesso em: 10/06/2013.
Como citar este artigo
SOUZA, Christiane Maria Cruz de Souza. Quando o flagelo bate à porta: a epidemia de “gripe espanhola” na Bahia (Artigo). In: Café História – história feita com cliques. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/a-gripe-espanhola-na-bahia/. Publicado em 13 abr. 2020. ISSN: 2674-5917. Acesso: [informar a data].
Em tempos de pandemias e epidemias análises que particularizem experiências, como é o caso da gripe de 1918 em Salvador, se tornam muito importantes no sentido de avaliar as políticas locais e de época. Ótimo texto.
Valeu, Pedro! As ciências humanas têm um papel importante a desempenhar nessa crise!
Excelente artigo, como muitos outros que o site tem proporcionado aos seus leitores nestes tempos de Pandemia. Só fico a pensar se o arquétipo de Rosenberg consegue dar conta do Brasil atual e a onda negacionista de parte (pequena) da população mesmo com os números alarmantes de mortos no mundo e por aqui.
Valeu, Fabio. O tempo dirá se o modelo do Rosemberg continua válido.
E realmente, você tem razão: o negacionismo é um elemento novo nisso tudo!
Eu gostei muito dessa história muito mesmo.