Especial “Passados presentes da Espanha”
No dia 20 de novembro de 1975, às 6:13 da manhã, a Radio Nacional de España, em cadeia nacional, comunicou o falecimento do general Francisco Franco, através da leitura de uma nota oficial. Coincidentemente, é a mesma data em que José Antonio Primo de Rivera, fundador da Falange Española, organização política Espanhola de inspiração fascista que atuou em 1933 e 1934, foi fuzilado em 1936.
Aos 82 anos de idade, três de Guerra Civil e 36 de ditadura, seu estado de saúde havia se deteriorado nos últimos tempos, sem que isso lhe impedisse de autorizar aqueles que seriam os últimos fuzilamentos do franquismo, ocorridos em 27 de setembro de 1975. O mundo acompanhava sua agonia através de boletins médicos e comunicados oficiais, e os espanhóis conjecturavam seu futuro após a defunção do caudillo, como Franco era conhecido.
A despeito das solicitações realizadas pela família, que chamara o bispo de Zaragoza para conceder a extrema-unção ao ditador já no dia 25 de outubro, o entorno político do ditador já havia decidido: Franco ainda não poderia morrer. Era necessário esperar pelo menos até o dia 26 de novembro para a renovação do mandato de Alejandro Rodríguez de Valcárcel como presidente del Consejo del Reino y de las Cortes.1
Era um momento delicado para se encarar uma possível crise advinda da morte do ditador. Portugal, país vizinho, vivenciava a vitória da Revolução dos Cravos, que marcou o fim da ditadura salazarista, o que poderia inflamar ânimos do lado de cá da fronteira. Além disso, a Espanha enfrentava problemas diplomáticos com o Marrocos; o ETA, organização nacionalista basca armada, realizava ataques à bomba em cidades espanholas; e a opinião internacional voltava-se contra as execuções reladizadas pelo regime.
Franco, definitivamente, não poderia morrer, por isso prolongou-se sua vida com todos os métodos disponíveis àquele momento, conforme atestaramas fotos publicadas no periódico La Revista, edição número 4, de 29 de outubro de 1984: um corpo débil, inconsciente, entubado, cheio de eletrodos para medir a atividade cerebral, conectado a uma máquina de diálise. Registros feitos pelo marido de sua filha, vendidos para a imprensa.
Mas Franco, ao fim, morreu. A situação política espanhola se resolveria através de acordos e pactos firmados em uma transição política que assegurou o retorno do regime monárquico-constitucional, que promulgou uma lei de anistia dupla – aos presos políticos e aos agentes do Estado – e que extorquiu uma conciliação política e social, frente a uma sociedade divivida após uma guerra civil e décadas de ditadura, em prol de uma pretensa identidade cultural única e um território indivisível. Transição considerada “modelo” a ponto de ser veiculada como produto de exportação para outros países que lidariam com o fim de suas ditaduras. É o caso do Brasil, que recebeu Adolfo Suárez, chefe de governo espanhol, em 1979.
Se a política se resolveria sem Franco, precisamos voltar à sua morte. Era necessário, então, seguir com os anseios de eternidade do ditador, e, para tanto, seu corpo foi embalsamado, fez-se uma máscara mortuária e moldes de gesso de suas mãos. Após o funeral, seu corpo foi trasladado para o Valle de los Caídos e depositado ao lado da sepultura de Primo de Rivera, em frente ao altar da basílica. Ali, permaneceria até o dia 10 de junho de 2019, data prevista para a exumação e entrega para a família de seus restos mortais. Porém, no dia 4 de junho, a justiça espanhola, acatando uma liminar da família de Franco, paralisou a exumação dos restos mortais do antigo ditador. Antes de falarmos desse processo e o que ele representa, falemos um pouco mais sobre o Valle de los Caídos.
Um “palácio do medo, que simboliza a violência através da humilhação”
No dia 1º de abril de 1940, Franco ordenou a construção de um complexo arquitetônico composto por um centro de estudos, uma basílica e um monastério na montanha de Cuelgamuros, na Sierra del Guadarrama, a 40 quilômetros de Madrid. Celebrava-se um ano de sua vitória na Guerra Civil. O anúncio da construção daquilo que posteriormente ficaria conhecido como Valle de los Caídos se justificava, nas palavras do próprio Franco, da seguinte forma, como ficou registrado no Boletín Oficial del Estado, de 2 de abril de 1940:
“La dimensión de nuestra Cruzada, los heroicos sacrificios que la victoria encierra y la transcendencia que ha tenido para el futuro de España esta epopeya, no pueden quedar perpetuados por los sencillos monumentos con los que suelen conmemorarse en villas y ciudades los hechos salientes de nuestra Historia y los episodios gloriosos de sus hijos.
Es necesario que las piedras que se levanten tengan la grandeza de los monumentos antiguos, que desafíen al tiempo y al olvido y que constituyan lugar de meditación y de reposo en que las generaciones futuras rindan tributo de admiración a los que les legaron una España mejor.
A estos fines responde la elección de un lugar retirado donde se levante el templo grandioso de nuestros muertos en que por los siglos se ruegue por los que cayeron en el camino de Dios y de la Patria. Lugar perene de peregrinación en que lo grandioso de la naturaleza ponga un digno marco al campo en que reposen los héroes y mártires de la Cruzada.”
A construção do complexo iniciou-se apenas em 1943, sob responsabilidade da empresa Huarte y Cía. S. A., dos arquitetos Pedro Muguruza e Diego Méndez, e foi realizada por trabalhadores assalariados, mas, principalmente, por milhares de prisioneiros políticos republicanos, submetidos a duríssimas condições de alojamento e trabalho instituídas pelo Sistema de Redención de Penas: a cada dia trabalhado, redimia-se dois dias da condenação, e, por semana, o preso recebia em média 15 pesetas (aproximadamente nove centavos de euro), das quais 75% ficavam com o preso, e 25% era enviado para a família.
Acidentes de trabalho que resultavam em lesões permanentes e em mortes eram diários, ainda que a administração franquista tenha registrado apenas entre 14 e 18 mortos na construção do complexo. O Sistema servia, também, como propaganda para o regime, que afirmava contribuir para a reinserção social dos “inimigos do regime” ao lhes proporcionar trabalhar em favor do franquismo, e lhes humilhava ao trocar a diminuição da pena pela construção de panteão que Franco idealizou para si mesmo e para a glorificação da vitória do fascismo. Para o historiador catalão Ricard Vinyes, o Valle nada mais seria que o “palácio do medo”, que, desde sua inauguração, simboliza a violência como projeto e tem a humilhação como instrumento.
O complexo ocupa um terreno de cerca de 1.300 hectares. A Basílica de la Santa Cruz foi construída dentro da montanha, em uma escavação de 250 metros em seu interior. A cúpula, que possui 40 metros de diâmetro, conecta-se com a cruz de granito, que têm 150 metros de altura e sua envergadura é de 48 metros, localizada no topo da montanha. A cruz é adornada por figuras dos apóstolos de mais de 12 metros de altura, desenhadas pelo escultor Juan de Ávalos. Foram gastos aproximadamente 5 bilhões de pesetas para a construção do Valle, o que, em valores atuais, corresponderia a aproximadamente 31 milhões de euros. A proposta megalômana constrastava com a fome e a repressão e com o desânimo econômico e social.
Em 23 de agosto de 1957, com a aproximação da conclusão das obras, a administração do Valle passou para a Fundación de la Santa Cruz del Valle de los Caídos e houve uma ressignificação das finalidades do monumento: de símbolo da vitória e homenagem aos franquistas mortos na Guerra Civil, passa a ser de “todos los caídos”, o que demonstra uma aspiração à reconciliação, fundamentada na ideia de que os dois lados tiveram perdas.2 O preâmbulo do decreto de Franco afirma textualmente: “Además, los lustros de paz que han seguido a la Victoria han visto el desarrollo de uma política guiada por el más elevado sentido de unidad y hermandad entre los españoles. Este ha de ser, en consecuencia, el Monumento a todos los Caídos, sobre cuyo sacrifício triunfen los brazos pacificadores de la Cruz.” Hoje, as funções de administração das visitas públicas e conservação e manutenção pertencem ao Consejo de Administración del Patrimonio Nacional.
A inauguração do complexo arquitetônico ocorreu 19 anos depois, no dia 1º de abril de 1959, coincidindo com o vigésimo aniversário do fim da Guerra Civil, e possuiu ampla cobertura midiática. Naquele mesmo ano foram transferidos para a basílica os restos mortais de José Antonio Primo de Rivera e se iniciou um traslado, que duraria até 1983, dos que perderam a guerra e dos adversários do regime franquista, portanto, dos adversários que foram mortos pelas tropas fascistas, que até então estavam localizados em fossas clandestinas e outros locais de enterramento de mortos daquela guerra.
Sem a autorização das famílias, os corpos de diversas vítimas do regime foram levados para o Valle, representando uma humilhação serem depositados no monumento de seus inimigos, como troféus de guerra. Os números não são precisos, mas se estima que no Valle estejam enterradas cerca de 34 mil pessoas mortas durante a Guerra Civil, cujos corpos foram levados para o Valle entre 1959 e 1983. Há 12.410 sem identificação. Apenas as tumbas de Primo de Rivera e Franco são identificáveis. Mesmo com uma proibição oficial, a cada 20 de novembro, o local é tomado por exaltadores do fascismo, que celebram as duas figuras.
Franco havia se encarregado pessoalmente de recordar e perpetuar sua vitória, os princípios de seu governo ditatorial e uma ética católica e conservadora. O Valle, em suas grandiosas dimensões, representa a megalomania de seu idealizador, que acreditava na eternidade da hegemonia de seu relato sobre a Guerra Civil e sobre a ditadura longeva. Contudo, os processos políticos que envolvem as memórias possuem um dinamismo que, muitas vezes, é imprevisível.
Franco está morto. E o franquismo?
A morte de um ditador possibilita mudanças na correlação de forças, principalmente se houve graves violações aos direitos humanos. A defunção de Franco foi inclusive comemorada, segundo diversos relatos. Mas, com sua morte, não houve apaziguamento: Franco morreu como chefe de Estado e impune quanto aos crimes que cometeu.
Um dos princípios jurídicos na esfera criminal é o “princípio da intranscendência”, ou seja, com a morte de Franco, sua punibilidade foi extinta. Mas, no caso de crimes contra a humanidade, como os sequestros, as apropriações de crianças, as torturas, as mortes, os fuzilamentos e os desaparecimentos, por serem considerados imprescritíveis, a responsabilidade sobre o cometimento desses crimes não seguiria após a morte do ditador? Levar em consideração esse aspecto não seria fundamental para se pensar a ressignificação das homenagens ao franquismo presentes na Espanha?
Franco e o fraquismo foram e estão patrimonializados através do Valle de los Caídos. Como toda a patrimonialização, pretende-se uma conservação de um bem e/ou um relato para o futuro. O que o corpo de Franco e o monumento nos dizem? Compreender os intentos de eternidade de Franco é fundamental para a compreensão da construção do relato sobre o término da ditadura e a construção da democracia, bem como para reforçar certa compreensão da identidade e da memória social espanhola sobre a Guerra Civil e o franquismo. Franco permanece vivo sob uma forma política, jurídica, imaterial e monumental.
Na dinâmica irresoluta entre o lembrar e o esquecer, surge a instigante reflexão de o que fazer com esses “restos” dos passados ditatoriais. Destruir e retirar ou ressignificar? E essas ações, de difícil decisão, ocupam quase que diariamente os debates nos meios de comunicação espanhóis. Não estaria, desta forma, se exercendo um dos principais direitos da ciudadanía: debater publicamente sobre o passado, falar sobre os espaços públicos ocupados pela memória franquista? Mais do que fazer: pensar o que fazer. Mais do que relatos estanques, não seria essa a pedagogia da memória que tanto se vislumbra: gerar o debate, mesmo que o que se ouça não seja do nosso agrado?
Pensar o que fazer
Logo após sua posse, em junho de 2018, o presidente Pedro Sánchez (PSOE) anunciou a intenção de retirar o corpo de Franco do Valle de los Caídos, iniciando o processo de ressignificação do complexo. Sua iniciativa é respaldada pela Lei n. 52, de 26 de dezembro de 2007, conhecida como Ley de Memoria Histórica, promulgada pelo governo de José Luis Rodríguez Zapatero (2004-2011), também do PSOE. A norma previa um artigo específico para o Valle:
“Artículo 16. Valle de los Caídos.
El Valle de los Caídos se regirá estrictamente por las normas aplicables con carácter general a los lugares de culto y a los cementerios públicos.
En ningún lugar del recinto podrán llevarse a cabo actos de naturaleza política ni exaltadores de la Guerra Civil, de sus protagonistas, o del franquismo.”
A recomendação da exumação havia sido apresentada pela “Comisión de Expertos para el Futuro del Valle de los Caídos”, criada em 27 de maio de 2011, que funcionou por seis meses, elaborando um relatório final, em que afirmavam que a ressignificação democrática do monumento somente seria possível após a retirada do corpo do ditador daquele espaço. Entretando, é preciso lembrar que o corpo de Franco e o Valle representam um problema político e social porque há uma histórica demanda por justiça e reparação.
Com o anúncio da exumação do corpo de Franco pelo governo, as visitas ao local aumentaram. Em 2018, foram 83% maiores em relação a 2017. A data estava marcada para o dia 10 de junho de 2019, mas, como dito antes, seis dias antes, no dia 4 de junho, uma liminar da justiça, a pedido da família, interrompeu o processo. Além disso, o Estado negocia com os descendentes de Franco o traslado dos restos mortais para um mausoléu familiar, para que as “homenagens” ocorram de forma privada, e essa discussão se realiza em âmbito judicial.
São múltiplas as alternativas e as possibilidades do que fazer em relação ao Valle de los Caídos, e não há consenso entre os espanhóis, ainda que todas passem pela exumação de Franco: implodi-lo, como sugeriu o arquiteto alemão Horst Hoheisel para o Portão de Brandemburgo em Berlim, transformando-o em memorial do holocausto; deixar que a ação do tempo se ocupe de sua destruição; conservá-lo, transformando-o em um espaço de memória e formação democrática. Porém todas essas alternativas concordam na impossibilidade de compreender o Valle como símbolo de uma reconciliação, pois o objetivo primeiro de sua construção foi saudar a vitória dos franquistas. Além disso, afirmam ser impossível aceitar um apaziguamento da memória, realizando uma equiparação entre os mortos “dos dois lados”. Mantê-lo como se encontra atualmente, com o corpo de Franco e com seus significados originais em vigor, significa manter o único monumento de exaltação ao fascismo existente na Europa. Quiçá, no mundo.
O Valle pode ser compreendido como monumento, lugar de memória e ponto de partida para problematizar a forma como os regimes democráticos gestionam as memórias sobre seus passados traumáticos, na tensão entre a memória e o esquecimento. Independentemente da abordagem, são comuns a esses três aspectos a ideia de que as interpretações e os significados do Valle se transformam com as mudanças de geração e com as apropriações políticas e sociais que se fazem do espaço. Ainda que o objetivo na construção de um monumento seja “congelar” o tempo e cristalizar uma memória, efetivamente, essa tarefa nunca é cumprida.
Mesmo após sua morte, Franco se faz presente, uma presença perene, espectral. Para que o esquecimento não fosse possível, utilizou pedra, material que leva milhares de anos para se decompor, ainda que exposto às condições climáticas e temporais. E reaparece quando é evocado em algum discurso, na retirada de alguma homenagem ou no comportamento daqueles que reivindicam seus atos.
Do ponto de vista memorial, o Valle de los Caídos é único, porque mescla os desejos personalistas de Franco (um panteão para seu corpo), com as tendências memoriais europeias de honrar os mortos em combate. Mas também é um monumento à vitória de um projeto nacionalista-cristão frente ao republicanismo, ao anarquismo e ao comunismo, e que impõe um relato de uma Espanha homogênea e unificada.
O Valle é testemunha da cultura de uma época. E se nos causa incômodo, temos que viver com o incômodo desse passado, porque houve uma época em que se homenageavam homens que lideravam golpes de Estado, fomentavam guerras civis e lideravam ditaduras.
Notas
[1] Conselho com poderes de governo formado em caso de algum impedimento do rei/ditadura.
[2] Ao pensar em um monumento para todos os mortos, há uma equiparação entre os mortos pelos republicanos e pelos franquistas. Essa equiparação está fundada na ideia de que “se cometeu violência nos dois lados”, e, ao mesmo tempo, que só há dois responsáveis pela guerra civil: os franquistas e os revolucionários. Isso coloca a sociedade espanhola em uma posição de “expectadora” do conflito, sem avaliar as adesões, as cumplicidades, os apoios, etc. Além disso, há uma equiparação entre os projetos de ambos os “lados”, o que também é impossível.
Referências Bibliográficas
HITE, Katherine. Política y arte de la conmemoración. Memoriales en América Latina y España. Santiago de Chile: Mandrágora, 2013.
LAFUENTE, Isaías. Esclavos por la patria: un antídoto contra el olvido de la historia. Madrid: Editorial Planeta, 2018.
VINYES, Ricard. Sobre el uso de símbolso y ruinas. In: Asalto a la memoria: impunidades y reconciliaciones, símbolos y éticas. Barcelona: Los Libros del Lince, 2011.
Como citar este artigo
BAUER, Caroline Silveira. A eternidade do franquismo: lembranças e esquecimentos na Espanha pós-Franco (Artigo). In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/a-eternidade-do-franquismo/. Publicado em 23 jun. 2019. Acesso: [inserir data]