A “Escola do Terror” na ditadura argentina

Hoje transformada em museu, a “Escuela de Mecánica de La Armada” (ESMA) foi durante muito tempo símbolo da repressão da ditadura argentina. Naquele lugar, os militares mataram e torturaram.
2 de fevereiro de 2012
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A entrada da ESMA, no nobre bairro de Nuñez, Buenos Aires. A foto mostra um casarão com colunas estilo gregas. Local foi sede de torturas durante a ditadura militar na Argentina.
A entrada da ESMA, no nobre bairro de Nuñez, Buenos Aires. Foto: Wikimedia.

A Escuela de Mecánica de La Armada (ESMA), localizada no rico bairro de Nuñez, ao norte de Buenos Aires, é um lugar que ainda evoca terror em quem visita o lugar. Esta construção antiga, hermética e labiríntica, foi o principal centro clandestino de detenção, tortura e extermínio da ditadura argentina, que dirigiu com mão de ferro o país entre os anos 1976 e 1983. Entidades na área dos direitos humanos calculam que dos mais de cinco mil detentos da ESMA, apenas algumas centenas conseguiram escapar com vida e dar seus testemunhos, sem os quais seria difícil contar a história deste macabro endereço da cidade portenha.

Fundada em 1924 para funcionar como um centro de formação técnica para a carreira militar, a ESMA teve sua função original rapidamente transformada com a chegada dos militares ao poder, após o golpe de 1976. A partir deste ano, mesmo funcionando ainda como escola, suas instalações passaram a ser utilizadas por diversos grupos repressivos.

O principal desses grupos criminosos da ditadura argentina era o chamado “Grupo de Tarefas (GT) 3.3.2”. Dividido em diversas seções (Inteligência, Operações, Logística e Guardas), o GT era responsável por boa parte das operações criminosas do regime na cidade de Buenos Aires. Planejava e realizava sequestros, promovia interrogatórios, torturas e condenava centenas de pessoas ao trabalho semi escravo.

Chegavam ao local, todos os dias, dezenas de pessoas, consideradas subversivas, comunistas ou simplesmente inimigas do sistema. Mas o GT não era o único a utilizar as instalações. Elas também foram colocadas à disposição de outros grupos repressivos que integraram o núcleo duro da repressão no país: Comandos da Aeronáutica, Prefeitura Nacional Marítima, Serviço de Inteligência Naval e ouros grupos policiais e militares que levavam ilegalmente para a ESMA homens, mulheres e até mesmo crianças.

O principal centro de detenção da ditadura argentina

O principal edifício da ESMA chamava-se Casino de Oficiales, também conhecido pelo GT como Selenio, El Dorado ou Casa de Oficiales. Nele, encontrava-se o alojamento dos prisioneiros e o dormitório dos oficiais. Suas instalações sofreram várias mudanças durante o período 1976/1983, sobretudo quando a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) anunciou, em 1979, uma visita ao local, após receber inúmeras denúncias de tortura e maus tratos aos prisioneiros.

Temendo uma desaprovação internacional, paredes foram derrubadas e muitas outras erguidas. Elevadores foram desativados e habitações remodeladas, tudo para esconder dos representantes da CIDH as violações aos direitos humanos. Neste edifício de três andares, funcionavam ainda o sótão e o porão, respectivamente chamados de Capucha e Capuchita, uma referência ao “capuz” que cobria a cabeça dos presos.

Nestes dois espaços ocorreram torturas, interrogatórios e trabalhos forçados. Para os militares da ESMA, entretanto, conforme anunciado na imprensa nacional e estrangeira, o local não passava de um centro de reabilitação de subversivos, os quais se apresentavam voluntariamente à ESMA para que ali pudessem ser “curados” de sua subversão.

A ESMA também contava com outros espaços, além do Casino de Oficiales. Eram eles: o Pavilhão Coy (dormitório dos aspirantes a suboficiais e centro de operações do GT), uma enfermaria e uma garagem (encarregada de reparar e modificar carros do GT). Mas um dos prédios que mais impressiona é o da Imprenta. Neste prédio, funcionava um grande escritório de falsificação de documentos.

Com máquinas modernas de impressão, além de laboratórios fotográficos de alta tecnologia, eram forjadas carteiras de motoristas, identidades, passaportes e todo tipo de documentação falsa que pudesse servir aos militares para aumentar os “crimes” dos detidos.

Neste prédio, os militantes eram também obrigados a editar falsos jornais de esquerda, divulgados para a imprensa como prova dos alegados crimes de subversão. Segundo testemunhas que trabalharam neste setor, a falsificação era levada tão a sério pelos militares que os jornais produzidos ali eram mais marxistas do que qualquer outro fora da ESMA.

No período da ditadura, quase todo homem ou mulher sequestrada em Buenos Aires e adjacências passou pela ESMA. Era tal a quantidade de bens e imóveis saqueados e tomados pelo regime, que em 1978 foi criada uma imobiliária para vender as casas dos sequestrados.

Museu da Memória

Em junho de 2000, 17 anos após o fim do regime militar, a Legislatura da Cidade de Buenos Aires aprovou por unanimidade a Lei 392, que revogou a concessão do prédio no qual se encontra construída a Escuela de Mecánica de la Armada e ordenou que seus edifícios dessem lugar à instalação do Museu de la Memoria.

Quatro anos depois, em 24 de março de 2004, data do 28º aniversário do golpe militar, o então presidente Néstor Kirchner ordenou a desocupação das instalações militares do lugar e a restituição desta à prefeitura. A propriedade, a partir daquele momento, passaria a ser administrada pelo governo federal, pela prefeitura e por associações de direitos humanos.

O desalojamento total, porém, só se concretizou em 30 de setembro de 2007. Naquele mesmo ano, nasceu o Espacio para la Memoria y para la Promocíon y Defensa de los Derechos Humanos, uma grande conquista do governo democrático e dos grupos militantes que buscam hoje por justiça.

Nos últimos anos, a ESMA tornou-se um museu de referência para os moradores de Buenos Aires e também para turistas. Todos os dias ocorrem visitas guiadas que contam a terrível história das antigas instalações.

Pessoas caminham durante a tarde em rua de Buenos Aires. Ditadura argentina torturou e matou na cidade.
Ditadura argentina deixou muitas feridas que ainda precisam ser fechadas. Photo by Wesley Souza on Pexels.com

Em paralelo, ocorre um trabalho minucioso de perícia que tenta resgatar a “verdade histórica” do lugar, haja vista as diversas modificações feitas ao longo do tempo para esconder as evidências de tortura e outras violências. Uma equipe especializada em restauração, por exemplo, faz pesquisas nas estruturas dos prédios, o que vem contribuindo decisivamente para a elaboração de laudos que podem ajudar a colocar nos bancos dos réus os oficiais que estiveram por trás dos abusos de poder. Segundo os administradores do novo espaço, o museu tem como missão e função,

A ESMA, hoje transformada em museu, é parte integrante de outras ações e espaços que integram o Instituto Espacio para la Memoria, cujo site você conhece clicando aqui.

Desaparecidos

Mesmo enfrentando uma memória extremamente sensível, os traumas causados pela ditadura militar argentina estão longe de fazer parte do passado. Os efeitos do tempo de autoritarismo são fortes no país ainda hoje. É o caso das famílias que tentam encontrar seus entes desaparecidos.

Segundo a CONADEP (Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas), criada no final da ditadura pelo governo constitucional de Raúl Alfonsín, o número de desaparecidos — segundo a quantidade de denúncias judiciárias apresentadas por vítimas e familiares— rondaria as 9.000 pessoas. Outras entidades, entretanto, entendem que o quantitativo pode ser ainda maior. A importante associação das “Mães da Praça de Maio” e o “Serviço Paz e Justiça” falam em 30.000 mil desaparecidos, dos quais aproximadamente 5 mil teriam passado pela ESMA.

O número de desaparecidos e torturados é tão alto que é comum encontrar escritores, jornalistas e militantes que comparem a violência da ditadura com aquela promovida pelo regime nazista. Usa-se cada vez mais, por exemplo, o termo “genocídio” para qualificar os crimes cometidos pelo Estado. E a classificação não parece ser um exagero. De tempos em tempos, são encontradas antigas valas utilizadas como cemitério clandestino de antigos militantes argentinos.

Outro drama que mexe com a atual Argentina refere-se às mães e avôs da Praça de Maio, que citamos há pouco. Essas mães, avós e outros parentes fazem parte de associações de direitos humanos que tentam descobrir o que aconteceu a seus filhos e netos sequestrados durante a ditadura argentina. Muitos bebês, por exemplo, nasceram em prisões clandestinas. Dentro da própria ESMA, havia quartos especiais para militantes grávidas. Após o nascimento, geralmente, as crianças eram separadas das mães e dadas para a adoção. Este drama foi retratado no filme argentino “A História Oficial”, que venceu o Oscar de 1986 na categoria de melhor filme estrangeiro.

Apesar da dimensão enorme da tragédia, muitos avanços foram conquistados em mais de três décadas de luta. Desde 1977, foram localizados e restituídos dezenas de crianças, hoje jovens, na casa dos 30 anos. Hoje, uma medida polêmica tem levantado várias questões éticas, porém. Grupos da sociedade civil tentam fazer com que o governo argentino realize testes de DNA para descobrir a identidade de jovens suspeitos de terem nascidos em cativeiro, independente da vontade destes ou deve ser respeitada a vontade de cada um?

Polêmicas à parte, a Argentina parece despontar como um exemplo no que diz respeito ao enfrentamento do passado, tal como o Chile. Para os brasileiros, fica a esperança de que ocorra no país algo semelhante no Brasil, não apenas no sentido de uma memória que precisa ser lembrada para não ser repetida, mas também para que se faça justiça. Para mais informações, visite o site Memoria Abierta.

Como citar este artigo

CARVALHO, Bruno Leal Pastor de. A “Escola do Terror” na ditadura argentina (Artigo). In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/a-escola-do-terror-na-ditadura-argentina/. Publicado em: 2 fev. 2012. ISSN: 2674-5917.

A “Escola do Terror” na ditadura argentina 1

Em meados de 1950, a imprensa soltou uma bomba que chocou a opinião pública brasileira: o imigrante letão Herberts Cukurs, criador e proprietário dos pedalinhos da Lagoa Rodrigo de Freitas, cartão postal do Rio de Janeiro, havia cometido crimes de guerra durante a ocupação nazista da Letônia. Neste livro, que vai virar filme, o historiador Bruno Leal, professor da Universidade de Brasília e criador do Café História, investiga o chamado “Caso Cukurs”, desde a chegada de Cukurs no Brasil até a sua execução por agentes secretos do Mossad, de Israel. Livro disponível nas versões impressa e digital. Gosta de Segunda Guerra Mundial? Esse livro não vai deixar a desejar. Confira aqui. 

Bruno Leal

Fundador e editor do Café História. É professor adjunto de História Contemporânea do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB). Doutor em História Social. Pesquisa História Pública, História Digital e Divulgação Científica. Também desenvolve pesquisas sobre crimes nazistas, justiça no pós-guerra e as duas guerras mundiais. Autor de "Quero fazer mestrado em história" (2022) e "O homem dos pedalinhos"(2021).

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