“A Cor Púrpura”: Miss Celie e sua jornada em busca de si mesma

Filme baseado no premiado livro homônimo de Alice Walker recebe uma nova releitura cinematográfica em adaptação do famoso musical dos anos 2000.
19 de fevereiro de 2024
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"A Cor Púrpura": Miss Celie e sua jornada em busca de si mesma 1
Cena da segunda adaptação do clássico literário para o cinema. Foto: Warner Bros.

Em 1982, a escritora e ativista política norte-americana Alice Walker lançou o livro que a catapultaria ao olimpo dos vencedores do prêmio pulitzer. A Cor Púrpura (1982) foi aclamado pelo público e pela crítica. Steven Spielberg não perdeu tempo, e, em 1985, escolheu a obra para adentrar as águas do drama após fazer seu nome internacionalmente com blockbusters como Shark (1975), Indiana Jones (1981) e E.T. (1982). E Spielberg não poupou em esforços para fazer justiça à dura, mas não menos poética, jornada de Celie, uma moça negra, pobre, nascida em décadas de severa segregação nos estados sulistas dos EUA, abusada pelos pais e pelo marido que luta por amor, liberdade e pelo reencontro com a sua adorada irmã Nettie, que foi expulsa de casa e sumiu no mundo. Em um arco narrativo que engloba mais ou menos 40 anos da vida da protagonista, Alice Walker nos oferece, em forma de cartas e de um diário direcionado a “Deus”, as agruras, mas também as alegrias que Celie enfrenta em seu caminho. E pouca coisa não é, mesmo que o livro tenha apenas pouco mais de 200 páginas, a riqueza dos detalhes e a força dos acontecimentos que envolvem o racismo estado-unidense, a misoginia, especialmente com mulheres pretas, os preconceitos e as desilusões de Celie e seu entorno, são impressionantes e, infelizmente, de certa forma, ainda existentes nos rincões desse mundo, mesmo que de forma velada.

Em 1985, Spielberg já tinha em torno de si um grupo de craques – Whoopi Goldberg interpretando Celie, Oprah Winfrey como sua cunhada Sofia, Danny Glover como o Mister, o cruel marido de Celie, e Margaret Avery como a incrível cantora de blues e jazz Shug Avery. Steven ainda chamou o mestre Quincy Jones para assinar a trilha sonora sensacional, com músicas como Miss Celie’s Blues (sister), que fazem parte do subconsciente musical de todo cinéfilo. O roteiro foi retrabalhado e adaptado por Menno Meyjes (Indiana Jones e a Última Cruzada −1989) com colaboração da própria Alice Walker. Na época Spielberg renunciou a seu cachê como diretor para realizar o filme, que no final foi um grande sucesso. Infelizmente, apesar de 11 indicações, “A Cor Purpura” de Steven não arrecadou nenhum dos troféus, em uma das mais injustas decisões da academia. Um elenco majoritariamente negro saiu de mãos vazia de um Oscar predominantemente branco.

Mas o maravilhoso livro de Walker não estava fadado ao esquecimento pelos produtores do audiovisual – em 2005, 20 anos após o filme de Spielberg, Marsha Norman e os compositores Brenda Russell, Allee Willis, e Stephen Bray, recriaram a história transformando The Color Purple em um musical que ficou em cartaz na Broadway até 2008, com Rhonda LaChanze vencendo o Tony por sua interpretação de Celie em 2006, a partir de 2007 o papel de Celie foi interpretado por Fantasia Barrino, cantora vencedora do American Idol EUA e do Grammy já tinha uma consolidada carreira musical. A presença de Barrino no ensemble aumentou ainda mais o sucesso da obra na Broadway. Em 2015, após 10 anos de sua estreia, o musical volta à Broadway com um cast de primeiríssima linha com Jennifer Hudson no papel de Shug, Danielle Brooks como Sofia, e Cynthia Erivo como Celie. Erivo ganhou um Tony por sua interpretação.

E assim chegamos em 2023 e na versão cinematográfica do musical. O time de produtores não poderia ser mais proeminente – Steven Spielberg, Oprah Winfrey, Quincy Jones e até a própria escritora Alice Walker, que novamente participou, com Marcus Gardley (The Chi – 2018) na adaptação para filme do roteiro de Marsha Norman para o musical da Broadway. Na cadeira da direção temos Blitz Bazawule, que se tornou mundialmente conhecido após seu trabalho em Black Is King (2020), o álbum visual da artista Beyoncé.

Bazawule gosta de beleza, e em especial, da exaltação da beleza negra em todas as suas nuances, e isso fica claro na lindíssima cenografia dessa versão de A Cor Purpura. Temos muito filtro dourado, cenários inebriantes e números de dança muito bem inseridos na trama. Adaptar um musical para o cinema não é uma tarefa fácil, muitos dos números musicais que funcionam em um palco não possuem o mesmo efeito em uma sala de cinema ou em uma tela de tv. E esse foi o maior desafio de toda equipe – a seleção das músicas, a sua inserção nos segmentos de textos e diálogos e a passagem sem cortes abruptos entre a palavra falada e a cantada. Uma tarefa dessas exige o domínio de ambas as mídias – teatro e cinema.

A saga de Miss Celie é longa, pesada e sofrida, adentrar essas águas sem cair demais na leveza de números musicais é uma arte à parte, assim como a atuação precisa ser adaptada para evitar exageros típicos da dramaturgia. Fantasia Barrino, que já tinha assumido o papel de Celie no palco, foi a escolhida para trazer a nossa heroína para as telas. E o resultado é espetacular, em sua estreia no cinema Barrino convence em todas suas cenas nos emociona nas horas certas, nos empolga e até nos diverte em momentos tragicômicos, pois Celie é tudo isso – leveza, sofrimento, peso, mas também luta e a celebração das pequenas alegrias da vida. A poesia dos textos de Walker continua inabalada nessa adaptação, e Bazawulle trabalha bem o lúdico e o onírico, nos conduzindo a uma viagem entre a realidade e a imaginação de Celie.

No papel da exuberante Shug Avery, temos a powerhouse Taraji P. Henson, sua presença, voz e sensualidade transformam suas cenas em um festival de fogos de artifício. Shug/Taraji é o fogo, ou melhor, a gasolina que alimenta a chama de Celie e a faz descobrir o amor, o sexo e o poder de sua força de vontade pode tudo. Shug empodera Celie como ninguém ao amá-la como ela é. Os números musicais com o furacão Shug são inebriantes e espetaculares.

Mas a verdadeira estrela dessa produção, em minha opinião, é a sensacional Danielle Brooks, conhecida por muitos como a Taystee da série Orange Is The New Black (2013-2019) do canal Netflix. Danielle interpreta Sofia, a esposa de Harpo (Corey Hawkins) o filho mais velho de Mister (Colman Domingo), o marido de Celie. Sofia é o retrato da resistência, da quebra de padrões, de liberdade a qualquer preço. Sofia é a força da mudança em um mundo retrogrado e preconceituoso. Ela não aceita de forma alguma o destino à qual foi sujeitada – mãe e dona de casa devota ao marido. Celie começa o seu despertar com Sofia. Brooks já havia interpretado o papel de Sofia na Broadway durante a produção de 2015 do musical, e pelo papel ela foi indicada ao Tony e recebeu um Grammy. Não teria como deixá-la de fora dessa produção, não acho que há ninguém que pudesse substitui-la no papel, e ela provou isso. Sua força em cena ofusca todos os outros personagens. Onde Sofia aparece, Danielle rouba a cena. E em Sofia vemos representado o sofrimento causado pelo racismo dos sulistas norte-americanos no povo negro.

Mesmo em papéis menores, A Cor Purpura não decepciona, Halle Bailey (A Pequena Sereia -2023) como Nettie está ótima, assim como Colman Domingo no papel de Albert “Mister” Johnson. Domingo consegue algo que Danny Glover não conseguiu anteriormente na versão de Spielberg– tirar os personagens da bidimensionalidade, do anacronismo do vilão, e deu a Albert, mesmo que ainda de forma sutil, a dualidade de um homem que também cresceu sofrendo com os abusos do pai.

De uma forma geral, A Cor Purpura – O Musical (2023) deve agradar a todos – aos fãs do livro, da primeira adaptação para o cinema e dos musicais. Visualmente impecável, emocionante e extremamente bem-produzido, pode ser considerado desde já um sucesso. Porém, resta, a meu ver, uma grande crítica, algo que infelizmente ainda não foi satisfatoriamente transposto para telas e palcos nas adaptações da maravilhosa obra de Alice Walker – o relacionamento amoroso entre Shug e Celie. No livro, em um certo momento, elas são claramente um casal, moram juntas e compartilham tudo. Shug é o grande amor da vida de Celie e de Albert. E eles compartilham esse amor com entendimento no final. Talvez a pitada poliamorosa de Walker ainda seja um tabu em megaproduções hollywoodianas.

A Cor Purpura estreou nos cinemas brasileiros em 08 de fevereiro de 2024.

Tais Zago

Tem 46 anos. É gaúcha que morou quase a metade da vida na Alemanha mas retornou a Porto Alegre. Se formou em Design e fez metade do curso de Artes Plásticas na UFRGS, trabalha com TI mas é apaixonada por cinema.

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