Em 1777, durante os últimos tempos de reinado de José I e da minoridade de Maria Francisca, sua filha e futura rainha, Portugal enfrentava uma severa crise financeira e agrícola, sua população sofria com a fome e com o frio. A situação se agravava dia a dia e a miséria do povo inquietava Maria Francisca. Como solução para o problema, a futura rainha de Portugal resolveu substituir os diamantes pertencentes à Coroa Portuguesa por cópias fiéis feitas de cristais lapidados, com a ajuda de um falsário, conhecido como Rebolledo, que ela havia conhecido nas prisões da Inquisição.
Maria Francisca monitorou cuidadosamente o trabalho de Rebolledo e quando as cópias das joias ficaram prontas ela as colocou no lugar das verdadeiras, as quais tinham grande valor, o suficiente para recuperar as finanças do país. A futura rainha de Portugal disfarçou-se, então, de chefe de um bando de contrabandista, passando-se por uma mulher da região da Boêmia, de nome Catharina, estratégia para poder negociar as pedras da Coroa sem macular a casa real com contravenções. Assim como havia sido planejado, a venda das pedras preciosas trouxe grandes somas aos caixas do Estado, possibilitando que Portugal conseguisse superar a difícil situação na qual se encontrava. O que não se esperava é que a futura Rainha seria desmascarada.
Este é o enredo do opéra-comique [1] Le diamants de la Couronne, de Eugène Scribe, com música de Daniel-François-Esprit Auber, submetido ao parecer censório do Conservatório Dramático Brasileiro, pelo diretor da Compagnie Lyrique Française, em 1846. A intenção era apresentar a peça no Teatro de São Francisco, um dos pequenos teatros do Rio de Janeiro. Mas, a peça não agradou em nada o grupo de censores.
Conservatório Dramático
Em 23 de agosto de 1839, o secretário do Estado dos Negócios da Justiça, José Carneiro de Campos, oficializou um conjunto de normas de regulamentação teatral, dita como Instrução para a polícia do Theatro de São Pedro de Alcantara [2]. Estas regras tinham como objetivo o controle tanto do que ocorria no palco como das práticas da plateia.
No que se refere ao público do teatro, a intenção principal era civilizar os comportamentos, educar os frequentadores das salas de espetáculos para que agissem dentro dos padrões estabelecidos no documento, com determinações como a do § 3º , de que ninguém poderia dirigir em voz alta palavras e gritos a quem fosse, “exceto aos atores as de bravo e capuct, ou foras”, cabendo como pena a quem desrespeitasse a determinação, 2 a 6 dias de cadeia; ou ainda, a do § 7º, de que ficava proibido que se jogasse moedas, pedras, laranjas, dentro ou fora do teatro. O comportamento das pessoas nos momentos em que a Família Real estivesse na sala de espetáculo também foi regimentado, impondo novas condutas e práticas antes pouco usuais para a maioria dos frequentadores do teatro.
Mas, estas normas exercidas como poder de polícia e cujas penas às infrações iam do pagamento de multas à cadeia, não funcionavam apenas como mecanismos civilizatórios, que ensinariam o público brasileiro a se comportar da maneira como acreditava-se, ou até idealizava-se, ser o comportamento do público dos principais teatros europeus; funcionavam também como uma forma eficaz de elitização desse espaço. Tal elitização era marcada por proibições como a imposição de vestimentas específicas para os frequentadores, descrito no § 5º onde impõe-se que “ninguém poderá estar na plateia ou a frente dos camarotes sem estar decentemente calçado e vestido de casaca, sobrecasaca ou farda”.
Enquanto a regimentação da plateia tinha como argumento a civilidade, as normas referentes ao palco prezavam pela moralidade. Este mesmo conjunto de normas oficializa a censura das peças, determinando a apresentação das obras apenas após a aprovação pelo inspetor do teatro, fossem elas peças completas, récitas ou pantomimas. A ação dos atores em cena também passou a ser oficialmente alvo de fiscalização, pois esses ficaram proibidos de alterarem as peças já liberadas pela comissão censória, e o § 2º ainda determinava que os atores “que nas pantomimas e danças apresentarem atitudes, desonestas, obscenas e ofensivas da moral pública” seriam multados e caberia pena de 4 a 8 dias de prisão.
Esse controle da cena e do público, do corpo e da percepção, foi imposto primeiramente às apresentações do Teatro de São Pedro de Alcantara, até a chegada ao Rio de Janeiro, em 1840, de uma trupe teatral francesa.
O grande número de peças colocadas em cena pelos artistas franceses, sob direção de Ernest Gervaise, impôs uma nova dinâmica à vida teatral do Rio de Janeiro e fez com que as normas, antes válidas de maneira efetiva para o Teatro de São Pedro de Alcantara, fossem estendidas às demais salas de espetáculo da Corte. Sendo assim, fundou-se, em 1843, o Conservatório Dramático, o novo órgão de controle da produção teatral na Corte, que veio suprir as lacunas deixadas pela criação da comissão de censura de 1839, a qual, na prática, acabava limitando-se à regulamentação do teatro de São Pedro.
Os artigos orgânicos da associação que formava o Conservatório foram aprovados pela Secretaria de Estado dos Negócios do Império, em 24 de abril de 1843. Segundo este documento, seriam criadas tantas comissões de censura quanto fossem necessárias. As regras para o julgamento das obras tinham por fundamento preestabelecido a veneração à “santa religião; o respeito devido aos poderes políticos da nação e as autoridades constituídas; a guarda da moral e decência pública; a castidade da língua; e aquela parte que é relativa à ortoépica” [3]. Partindo da concepção funcional da arte teatral, o Conservatório Dramático, presidido por Diogo Bivar, juntamente com a Polícia da Corte, passou a garantir a manutenção da moral e das regras de preservação acima citadas, subtraindo o que não se enquadrasse dentro dos parâmetros considerados mais apropriados por quem tinha o poder do veto.
“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”
Apesar das ressalvas que circulavam no meio letrado e político sobre algumas ideias presentes em obras francesas, uma das ações de maior repercussão dos censores foi o veto à obra de Scribe e Auber, Les diamants de la Couronne, representada pela primeira vez, sem maiores prejuízos, em março de 1841, no Théâtre de l’Opéra-Comique, em Paris.
O primeiro pedido de licença para a apresentação de Les diamants de la Couronne em um teatro do Rio de Janeiro foi feito ao Conservatório Dramático pela Compagnie Dramatique Française, em 1844. Já supondo que a história narrada na peça pudesse causar problemas para a sua liberação, o diretor do teatro francês substituiu o local onde os eventos ocorriam, colocando a Suécia no lugar de Portugal. A artimanha não funcionou, a peça foi censurada.
No seu parecer, José Pereira Lopes Cordal argumentou que o ato da rainha representava um comportamento inverossímil, incompatível com a defesa da veracidade histórica propagada pelo Conservatório e nada mais era do que mais um desvio do romantismo francês que não se preocupava com a coerência das informações e da transposição dos termos para o lugar onde se passa a trama, sendo assim, contrariava a “dignidade do Conservatório” [4].
O argumento do inverossímil na ação de uma rainha que se mete com falsários está diretamente associada ao enredo, por se tratar de uma peça fundada em uma narrativa que cria um fato histórico, argumento reforçado pelo segundo censor, Francisco de Paulo de Azevedo, que em seu parecer reforça a imoralidade da peça por colocar uma soberana à frente de uma quadrilha de ladrões [5].
Depois da proibição inicial, outro pedido de avaliação foi feito em 27 de setembro de 1846, quando a Compagnie Lyrique Française, sediada no Rio de Janeiro, submete novamente a peça à censura do Conservatório, agora sem modificar em nada o libreto de Scribe, pedido que causa maior frenesi nos pareceristas censórios.
O primeiro a negar a licença foi Diogo Bivar. Para explicar sua decisão ele inicia o parecer com a narrativa da peça, contando a “disparatada colocação de uma figura Augusta portuguesa como parceira de falsários”, concluindo em seguida que “se o autor do drama estudasse a história e geografia de Portugal em vez de fazer composições tão absurdas, empregava melhor o seu tempo” [6]. Para ele, as escolhas de Scribe ao escrever o texto são fruto do momento no qual se encontrava a literatura francesa, “versada pela maior parte em desconceituar os reis, o fim não é duvidoso, para consegui-lo desfigura os fatos mais conhecidos, inventa as calunias mais atrozes (…) tudo lhe serve tanto que a palavra rei seja sujada de imoralidades e vício” [7].
O absurdo da obra, aos olhos do censor, é a contrariedade à “verdade histórica” e a difamação de figuras reais. Outro censor do Conservatório, Tomas do Nascimento Silva, por sua vez, opõe-se à representação da obra justamente como forma de manter a honra da família real brasileira, a qual, para ele, o texto punha em xeque. Mas, Silva propõe uma saída, “se a cena fosse figurada em algum dos pequenos estados (…) com nomes que não fizessem a mais pequena alusão podia admitir-se” [8].
Entendidas as possibilidades oferecidas pelo censor, o diretor da companhia francesa submete outra vez a peça à análise, em dezembro de 1846. Mas, agora, os acontecimentos narrados na peça se passam na Dinamarca, em 1387, no final do reinado de Waldemar III e de sua filha Margarida [9], distanciando a possibilidade de ligação histórica da família real brasileira de um ato de contravenção, mesmo que esse ato fosse objeto de uma peça teatral e não em de texto historiográfico.
Para os censores, isso bastou para isentar a peça da acusação de imoralidade. Tudo bem a contravenção se passar numa casa real distante no tempo. No parecer de Camilo José do Rosário, a liberação da peça é justificada pela mudança da situação da cena, transportada para uma época remota, e pela mudança dos nomes de personagens, “e todas as atenções que se pode apontar à Portugal, como ofensivas à Família Real, ficam descartadas com estas alterações em todo o drama” [10], finaliza.
Para garantir que a ilusão do teatro não subverta a História de Portugal, o empresário responsável pelo espetáculo ainda se compromete a modificar o vestuário, colocando todos os artistas com trajes da Idade Média, sem nenhuma referência à cultura e aos costumes portugueses.
Longe dos perigos de macular o nome real português por conta de um “fato histórico” narrado por uma peça teatral, José Pinto Lopez, em seu parecer, afirma que não vê problemas na forma como a obra foi apresentada, até porque é em francês e cantada, então poderia passar [11].
Depois de satisfeitas as exigências da censura do Conservatório Dramático, em 31 do mesmo mês, Diogo Bivar assina o ato de autorização da peça, com a conclusão de que a mesma é liberada, pois “mudaram-se os nomes das personagens, mudaram o lugar da ação e todo o que pudesse ter relação com as atuais casas reinantes do Brasil e Portugal, e mesmo com o reino de Portugal em seu passado”[12].
Apesar das inúmeras colocações que apareceram nos Folhetins sobre o caso, e em comentários de leitores publicados em periódicos, satirizando a ação da censura do Conservatório ao negar um passado possível para si e autorizar um passado distante e menos crível, a missão da censura foi cumprida – a de cercear a narrativa do texto teatral, determinando, assim, a história que achavam conveniente de ser difundida para o grande público.
Notas
[1] Gênero operístico francês.
[2] Instruções para a polícia do Theatro de São Pedro de Alcantara, de que faz menção o aviso desta data 23/08/1839. Seção de Manuscritos, Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. Doc. I – 30, 06, 075 nº 11.
[3]Biblioteca Nacional, setor de Manuscritos, Papéis avulsos do Conservatório Dramático Brasileiro, L-II-34, 29, 039
[4] Biblioteca Nacional, setor de Manuscritos, Papeis avulsos do Conservatório Dramático Brasileiro, I-8, 5, 48. Documento 3.
[5] Biblioteca Nacional, setor de Manuscritos, Papeis avulsos do Conservatório Dramático Brasileiro, I-8, 5, 48. Documento 5.
[6] Biblioteca Nacional, setor de Manuscritos, Papeis avulsos do Conservatório Dramático Brasileiro, I-8, 4, 55. Documento 1.
[7] Idem, ibidem.
[8] Idem, ibidem.
[9] Biblioteca Nacional, setor de Manuscritos, Papeis avulsos do Conservatório Dramático Brasileiro, I-8, 5, 48. Documento 73.
[10] Idem, ibidem.
[11] Biblioteca Nacional, setor de Manuscritos, Papeis avulsos do Conservatório Dramático Brasileiro, I-8, 5, 48. Documento 4.
[12] Biblioteca Nacional, setor de Manuscritos, Papeis avulsos do Conservatório Dramático Brasileiro, I-8, 5, 48. Documento 5.
Muito interessante a história da rainha e da censura. A inverossimilhança, quanto aos governos, é recorrente.