A invisibilidade feminina nos arquivos e como mudar isso

Apesar dos recentes esforços empreendidos e das políticas de captação de documentos praticadas pelas instituições arquivísticas e centros de documentação nacionais, a baixa representatividade feminina nos acervos é um fato no Brasil.
3 de julho de 2023
A invisibilidade feminina nos arquivos e como mudar isso 1
Virgínia Portocarrero e seus primos, à esquerda Ten. Maurício (Intendente) e à direita, Ten. Heraldo (Artilheiro, observador avançado) no depósito em Stafoli. Foto: BR RJCOC VP-03-06.v.02-096, Fiocruz.

Alda, Hortênsia, Dely, Alina, Dyrce, Sarah, Elizabeth, Maria José, Virginia, Maria Cristina. Sanitaristas, pesquisadoras, educadoras, seus nomes poderiam compor a letra da canção de Rita Lee, Todas as mulheres do mundo, por um feito exemplar: além de pioneiras em suas áreas de atuação, elas fizeram de suas trajetórias, memória. Hoje, seus arquivos pessoais, reunidos ao longo de uma vida de trabalho, estão digitalizados e disponíveis para consulta no Centro de Documentação e História da Saúde da Fiocruz e na internet. O esforço da instituição pela redução da desigualdade de gênero em seu acervo arquivístico foi reconhecido pelo programa Iberarchivos da Secretaria Geral Ibero-americana, cujos recursos possibilitaram o amplo acesso à documentação destas dez mulheres.

Onde estão as mulheres nos arquivos públicos?

A ausência, ou quase completa invisibilidade feminina em fundos e coleções sob a guarda de arquivos públicos e privados no Brasil, vem sendo amplamente debatida por profissionais e pesquisadores das ciências sociais e humanas. Uma das inúmeras causas apontadas para tal lacuna, observada sobretudo em sociedades de raiz patriarcal como a brasileira, pode ser identificada mesmo por quem não se dedica a estudar o fenômeno. Com raríssimas exceções, nós mulheres não conquistamos, e muitas vezes não temos a oportunidade de alcançar, posições de destaque na vida pública que justifiquem a recolha e guarda dos documentos produzidos e acumulados ao longo de nossa trajetória.

Apesar dos recentes esforços empreendidos e das políticas de captação de documentos praticadas pelas instituições arquivísticas e centros de documentação nacionais, a baixa representatividade feminina nos acervos é um fato no Brasil. Tal ausência revela que o ato de doar arquivos a instituições de memória ainda é uma prerrogativa masculina, pois além de os homens serem majoritários nas posições de prestígio social, suas memórias foram tradicionalmente vistas como merecedoras de integrar o “patrimônio” nacional. Por isso, acumular documentos com vistas à posteridade sempre foi um gesto mais comum entre eles – denotando um problema estrutural da sociedade brasileira decorrente de fatores socioeconômicos, políticos e culturais históricos.

Na Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), por exemplo, dos mais de 95 arquivos e coleções pessoais sob sua guarda, apenas dez são de mulheres – algo insuspeito em se tratando de uma fundação pública voltada à pesquisa em ciências biomédicas, campo de estudos predominantemente masculino até meados do século XX. No Arquivo Nacional, por sua vez, dos cerca de 300 arquivos pessoais, menos de 10% são de mulheres. E por aí vai. Conforme apontaram as professoras Ana Paula Simeoni e Maria de Lourdes Eleutério em dossiê da revista do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), “se por um lado materializam as escolhas sobre o que deve ser preservado, por outro [os arquivos] são também a encarnação de um longo processo de exclusões geralmente levado a cabo de maneira silenciosa, imperceptível, naturalizada”.

Em outras palavras, longe de serem apenas receptores passivos de documentação pessoal e institucional de valor histórico, os arquivos dão pistas reveladoras da ausência da mulher como sujeito social. “A disparidade de gênero é, porém, apenas uma das dimensões a serem observadas. Se fizermos o levantamento de arquivos de pessoas negras depositados em instituições de guarda, certamente o silêncio será ainda mais perturbador, porém nada surpreendente”, destacou a historiadora da Casa de Oswaldo Cruz, Luciana Heymann, em artigo sobre o tema.

Essa ausência perturbadora, entretanto, não está fora do radar das instituições arquivísticas e entidades especializadas em direitos humanos, igualdade e equidade de gênero e empoderamento feminino. “Os arquivos que mostram as lutas e conquistas da mulher precisam vir à tona, para que brasileiras e brasileiros conheçam seu passado e reconheçam a difícil trajetória cumprida (e a se cumprir) rumo à igualdade entre homens e mulheres – citada no primeiro inciso do artigo quinto de nossa Constituição”, enfatizaram os editores da revista Acervo, do Arquivo Nacional, em número especial lançado em 2020. No ano seguinte, em 2021, uma extensa edição da revista História e Cultura da Universidade Estadual Paulista (Unesp) publicou dezenas de artigos com perspectivas interdisciplinares sobre a relação entre história, memória e mulheres.

Outra ação positiva nesse esforço de atenuar a ausência feminina nos arquivos foi adotada pela Secretaria Geral Ibero-americana (SEGIB). Em 2021, seu programa Iberarchivos, para fomento, acesso, organização, descrição, conservação e difusão do patrimônio documental das nações ibero-americanas lançou convocatória alinhada ao 5º Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU), cujo fim é promover a igualdade de género e o empoderamento de todas as mulheres e meninas.

Desde que foi lançado em 1998, o Iberarchivos abre convocatórias anuais para o financiamento de projetos arquivísticos, inclusive de fomento à digitalização de arquivos de e sobre mulheres. Além desse estímulo, para orientar proponentes de projetos em 2021, a SEGIB lançou um “Guia prático para incorporar os critérios de integração da Perspectiva de Gênero nos Programas, Iniciativas e Projetos Adstritos da Cooperação Ibero-Americana”. Tal proposta está alinhada à Agenda 2030, que reconhece o empoderamento das mulheres como condição prévia à obtenção do conjunto dos 17 objetivos e as questões de gênero de forma transversal a todos os ODS.

Em mais de duas décadas, o programa criado no âmbito das Conferências Ibero-americanas de Chefes de Estado e de Governo já apoiou aproximadamente 1.400 projetos de seus 23 países membros, com valores que ultrapassam a cifra dos seis milhões de euros, no total. Nesse período o Brasil obteve 101 projetos aprovados, ficando atrás de Cuba (220), Costa Rica (155), Colômbia (148) e Uruguai (121).

Na convocatória de 2021, para dar maior visibilidade a arquivos pessoais de mulheres e às trajetórias que eles testemunham – e, consequentemente, estimular outras titulares a doarem seus arquivos –, a COC/Fiocruz submeteu o projeto “Mulheres na ciência e na saúde: digitalização e difusão dos arquivos pessoais de mulheres do acervo da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz”. A proposta visou à obtenção de recursos para digitalizar e disponibilizar na internet esses acervos.

O apoio financeiro recebido do Iberarchivos é um exemplo de inciativa que pode contribuir para a diminuição das desigualdades de gênero nos arquivos. A inciativa possibilitou a contratação de profissionais e aquisição de equipamentos e resultou na digitalização de aproximadamente 4.200 documentos de arquivos de mulheres, entre fotografias, plantas arquitetônicas e diários. Abertos à consulta online, são peças de valor para a pesquisa em história das ciências biomédicas, sociais e humanas e educação sanitária.

Pesquisadoras, suas áreas e arquivos

Alda Falcão (1925-2019)

Pesquisadora Emérita da Fiocruz.

Áreas de pesquisa: saúde pública, entomologia e leishmaniose.

Arquivo doado por Valéria Lima Falcão, sua filha, em 2013.

Alina Perlowagora-Szumlewicz (1911-1997)

Pesquisadora da Fiocruz.

Áreas de pesquisa: febre amarela e malária.

Arquivo doado por Carlos José de Carvalho Moreira, pesquisador do Laboratório de Doenças Parasitárias e colaborador da pesquisadora.

Dely Noronha de Bragança Magalhães Pinto (1942-)

Pesquisadora da Fiocruz.

Área de pesquisa: helmintologia.

Dyrce Lacombe de Almeida (1932-)

Pesquisadora da Fiocruz.

Áreas de pesquisa: entomologia, doença de Chagas e cirripédios.

Arquivo doado pela titular.

Elizabeth Rachel Leeds (1942-)

Cientista política.

Áreas de pesquisa: favelas, direitos humanos e políticas de segurança pública no Brasil.

Arquivo doado pela titular em 2007, juntamente com o de seu marido, o antropólogo Anthony Leeds,

Hortênsia Hurpia de Hollanda (1917-2011)

Educadora e pesquisadora.

Áreas de pesquisa: educação em saúde, nutrição, esquistossomose e malária.

Documentos doados por Virginia Torres Schall em 2013.

Maria José von Paumgartten Deane (1916-1995)

Médica, pesquisadora da Fiocruz.

Áreas de pesquisa: parasitologia, entomologia médica.

Maria Cristina Fernandes de Mello (1950- )

Arquiteta.

Áreas de pesquisa: restauração de monumentos, esteve à frente da restauração de diversos prédios do Núcleo Arquitetônico Histórico de Manguinhos.

Arquivo doado pela titular em 2011.

Sarah Hawker Costa (1949-)

Doutora em Saúde Pública.

Áreas de pesquisa: saúde da mulher, aborto, direitos reprodutivos e mortalidade materno-infantil.

Arquivo doado pelo pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), Eduardo Costa, em 2014.

Virginia Maria de Niemeyer Portocarrero (1917-2023)

Enfermeira, atuou na Itália durante a Segunda Guerra juntamente à Força Expedicionária Brasileira.

Arquivo doado pela titular em 2010.

Para saber mais

Lista dos dez fundos e coleções que fazem parte do projeto:

https://basearch.coc.fiocruz.br/index.php/arquivos-mulheres

Referências

CERCHIARO, Marina Mazzi; ALVES, Carolina (Org.). “História, arquivos e mulheres: perspectivas interdisciplinares”. História e Cultura. Unesp. São Paulo. Volume.10, Número1, Julho/2021.

HEYMANN, Luciana. “Expectativas, silêncios e diálogos”. Comunicação & Memória. Revista do Centro da Memória da Eletricidade no Brasil. Rio de Janeiro. Revista 3. Ano 1. Setembro 2021.

MOURELLE Thiago Cavaliere; LOBOSCO, Flora Matela. “As várias faces dos feminismos: memória, história, acervos”. Acervo: revista do Arquivo Nacional. Rio de Janeiro. Volume 33. Número 2. Maio/agosto 2020.

SIMIONI, A. P. C., ELEUTÉRIO, M. de L.. Mulheres, arquivos e memórias. Revista Do Instituto De Estudos Brasileiros, (71), 2018.

Como citar este artigo

D’AVILA, Cristiane. A invisibilidade feminina nos arquivos e como mudar isso (Artigo). In: Café História. Publicado em 3 jul. de 2023. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/a-ausencia-das-mulheres-nos-arquivos/ . ISSN: 2674-59.

Cristiane d’Avila

Jornalista, doutora em Letras pela PUC-Rio, Tecnologista em Saúde Pública da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), onde atua no Departamento de Arquivo e Documentação. Mestre em Comunicação Social e Especialista em Comunicação e Imagem pela PUC-Rio. É organizadora do livro “Cartas de João do Rio a João de Barros e Carlos Malheiro Dias”, publicado pela Funarte em 2013, e autora do livro “João do Rio a caminho da Atlântida”, publicado em 2015 com apoio da Faperj. Colabora mensalmente com o Café História com textos sobre História das Ciências e da Saúde.

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