Na poesia O maior trem do mundo, o poeta Carlos Drummond de Andrade escreve: “O maior trem do mundo / Leva minha terra para a Alemanha / Leva a minha terra para o Canadá / Leva a minha terra para o Japão / O maior trem do mundo / Puxado por cinco locomotivas a óleo diesel / Engatadas, geminadas, desembestadas / Leva o meu tempo, minha infância, minha vida / Triturada em 163 vagões de minério e destruição / O maior trem do mundo / Transporta a coisa mínima do mundo / Meu coração itabirano. Lá vai o maior trem do mundo / Vai serpenteando, vai sumindo / E um dia, eu sei, não voltará / Pois nem terra, nem coração existem mais.” 1
Um pouco de contexto
“Leva minha terra para a Alemanha, para o Canadá, para o Japão”. Na equação do comércio internacional, desde o início do século XIX o Brasil exerce papel fundamental como exportador de matérias primas e importador de produtos industrializados e semi-industrializados. Mesmo após a proclamação da República, o país se manteve prisioneiro da política econômica do Império, que no contexto da divisão internacional do trabalho o situara como produtor de gêneros agrícolas para exportação. Sendo a mão-de-obra fator abundante, o investimento em tecnologia – que precisava ser importada – foi deixado em segundo plano.
No alvorecer e primeiras décadas do século XX, a baixa produtividade da indústria nacional, em função do emprego de técnicas rudimentares em sua maioria, gerava baixos salários e renda per capita igualmente reduzida, que impediam o país de se tornar fortemente industrializado e atrativo para o estabelecimento de empresas voltadas para o seu mercado interno. Em contrapartida, a magnitude da economia cafeeira tornava as atividades a ela ligadas atraentes para os capitais estrangeiros. Como resultado, em pouco tempo empresários britânicos, franceses, belgas e alemães começaram a dominar setores essenciais da economia, como ferrovias, portos, transações financeiras e serviços urbanos de iluminação, transportes e saneamento.
Durante os anos que antecederam a Primeira Guerra, seguindo uma nova ordem mundial na qual “os nacionalismos étnicos, linguísticos ou culturais serviam de bases ideológicas para reordenar e legitimar novos blocos de alianças e acordos políticos, comerciais, econômicos”2, saúde e educação tornam-se peças-chave para a inserção do Brasil no rol dos países civilizados. Nas escolas, a educação moral e cívica buscava fomentar o patriotismo por intermédio das obras de Olavo Bilac, Afonso Celso, Coelho Neto e Manuel Bonfim, entre outros. Campanhas de saúde pública passaram a ser realizadas no interior do país pelos médicos sanitaristas do Instituto Oswaldo Cruz (IOC), a fim de erradicar doenças que mortificavam milhares de brasileiros. “Essas expedições contribuíram enormemente para o melhor conhecimento da condição de saúde da população rural e para o encaminhamento de ações sanitárias que ajudaram a consolidar as fronteiras brasileiras”3.
O Programa do Rio Doce
Esse projeto modernizador ganhou um novo e importante capítulo com a aproximação entre o Brasil e os países Aliados durante a Segunda Guerra Mundial, que levou o país a assinar uma série de tratados com o governo dos Estados Unidos – denominados Acordos de Washington – sobre assuntos de interesse das duas nações. No que tange ao tema saúde e saneamento, o objetivo era sanear regiões onde seriam instaladas bases militares americanas, especialmente na Amazônia (Amazonas, Pará, Acre, Amapá) e no Vale do Rio Doce (Minas Gerais e Espírito Santo).4
A empreitada seria levada a cabo pelo Serviço Especial de Saúde Pública (SESP), agência bilateral fundada em 1942 para a cooperação técnica em saúde e saneamento, cuja atuação até o fim do armistício, em 1945, se ateve aos interesses militares norte-americanos. O objetivo principal das ações da agência brasileira era somar aos “esforços de guerra” o papel fundamental do Brasil como fornecedor de borracha, ferro e matérias-primas essenciais aos exércitos aliados, saneando o território e melhorando as condições de saúde da população onde seriam explorados os recursos.
Um dos programas instituídos pelo SESP para dar conta da demanda militar por minerais foi o Programa do Rio Doce5. Criado em fevereiro de 1943, consta do acervo documental do SESP – sob a guarda do Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz (DAD/COC/Fiocruz)6 – que o objetivo do projeto era promover medidas gerais de saúde e saneamento, como a profilaxia e o estudo da malária, o fornecimento de serviços de água e esgoto em algumas cidades do Vale do Rio Doce e o estabelecimento de um centro de saúde modelo em uma das localidades da região.
Em 1942, como parte dos Acordos de Washington, foi criada, na cidade natal de Carlos Drummond de Andrade (Itabira), a Companhia Vale do Rio Doce. Segundo Benchimol,7 em 1942 o IOC gastava metade do que o governo lhe concedia – para o custeio de todos os serviços – na produção de soros e vacinas, incluindo a fabricação de penicilina, uma vez que a propagação de doenças transmissíveis como a malária e a precariedade sanitária do vale colocavam em risco a saúde dos trabalhadores e moradores da região.
“A demanda por minerais estratégicos levou o SESP, em novembro de 1942, ao vale do rio Doce, em Minas Gerais. O objetivo do Programa do Vale do Rio Doce era promover a saúde pública naquela região, respaldando, assim, a Companhia Vale do Rio Doce, que estava sendo criada, e as obras de reconstrução da estrada de ferro Vitória-Minas. No vale do Rio Doce, o controle da malária foi alcançado, o que sem dúvida contribuiu para o sucesso da reconstrução da estrada de ferro e o aumento da produção de minérios. O SESP desenvolveu aí um projeto que foi fundamental para sua sobrevivência após a guerra: uma rede integrada de unidades de saúde como modelo de administração sanitária para o Brasil”.8
Para além da extração e exportação de minerais, ao governo brasileiro interessava municiar de infraestrutura e condições sanitárias uma região até então deslocada da economia e do Estado nacionais. Portanto, constava das atribuições do Programa do Rio Doce ações como assistência médico-sanitária aos trabalhadores; instalação de uma rede de unidades sanitárias nas cidades do vale; construção e administração de escolas de enfermagem, hospitais e centros de saúde; preparação de profissionais para o trabalho em saúde pública, incluindo engenheiros sanitaristas, técnicos e mão de obra qualificada em educação sanitária9.
“Nessas frentes, as ações se davam por meio da realização de inquéritos sobre as doenças locais, no controle do principal mosquito transmissor e na instalação de postos, unidades de saúde e mesmo hospitais de pequeno porte e clínicas para tratamento de moléstias como malária e parasitoses intestinais. Estavam previstas, igualmente, intervenções diretas nas residências dos trabalhadores da ferrovia e da população local, procurando promover melhorias no padrão das moradias existentes. Tais ações se integravam às de instalação de sistemas de esgoto, bem como ao desenvolvimento e distribuição de abastecimento geral de “água livre de contaminação” nas três principais cidades do vale: Governador Valadares, Colatina e Aimorés”.10
O Programa do Rio Doce depois da guerra
Após o fim da Segunda Guerra, o Programa do Rio Doce permaneceu ativo. As três principais cidades do vale, Governador Valadares, Colatina e Aimorés receberam intervenções não apenas para o controle do mosquito transmissor e o tratamento de moléstias, como malária e parasitoses intestinais. Melhorias nas moradias existentes, obras de engenharia sanitária, preparo dos profissionais para o trabalho de saúde pública, incluindo o aperfeiçoamento de médicos e engenheiros sanitaristas, formação de enfermeiras e inspetores sanitários foram contemplados pelo Programa, finalizado em 1951, sendo substituído pelo Programa de Minas Gerais, com sede em Belo Horizonte.
Uma das importantes lições deixadas pelo serviço, segundo consta do Relatório Final do SESP (1942-1960), é que o problema de saúde da população brasileira está intimamente relacionado às condições do meio ambiente. Diz o documento: “O SESP cedo compreendeu que a saúde pública não é apenas um conjunto de técnicas, mas uma atividade social que deve colocar-se em harmonia com o nível geral da sociedade em que se desenvolve”11.
Vai o tempo, fica a história. Hoje, infelizmente, o belo Vale do Rio Doce e as Gerais de Drummond são “vagões” conduzidos por uma locomotiva que tem levado para sempre, e acima de tudo e de todos, “a infância, a vida, a terra, o coração”.12
Notas
1 Poema publicado no documento do I ENCONTRO INTERNACIONAL DOS ATINGIDOS PELA VALE. Dossiê dos Impactos e Violações da Vale no Mundo. Rio de Janeiro, 2010.
2 RAMOS, Maria Bernardete. “A intimidade luso-brasileira – nacionalismo e racialismo”. In: O beijo através do Atlântico: o lugar do Brasil no Panlusitanismo. Chapecó: Argos, 2001, p.374.
3 HOMMA, Akira. “Prefácio”. In: BENCHIMOL, JL, coord. Febre amarela: a doença e a vacina, uma história inacabada [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2001, p.15.
4 FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ. CASA DE OSWALDO CRUZ. Fontes para história da Fundação Serviços de Saúde Pública. Rio de Janeiro: Fiocruz/COC, 2008, p.36.
5 Maior bacia hidrográfica da região sudeste, o rio Doce corta os estados de Minas Gerais e Espírito Santo por mais de 800 quilômetros.
6 FUNDO SESP; dossiê, BR RJCOC SP. DAD/COC/Fiocruz. Disponível em http://basearch.coc.fiocruz.br/index.php/fundacao-servicos-de-saude-publica-2.
7 BENCHIMOL, JL, coord. Febre amarela: a doença e a vacina, uma história inacabada [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2001
8 CAMPOS, André Luiz Vieira de. “O Serviço Especial de Saúde Pública (SESP)”. In: BENCHIMOL, JL, coord. Febre amarela: a doença e a vacina, uma história inacabada [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2001, p.174-178.
9 FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ. CASA DE OSWALDO CRUZ. Fontes para história da Fundação Serviços de Saúde Pública. Rio de Janeiro: Fiocruz/COC, 2008, p.36.
12 Parte da região do Vale do Rio Doce foi afetada pelo rompimento da barragem de Mariana (2015).
Referências Bibliográficas
BENCHIMOL, JL, coord. Febre amarela: a doença e a vacina, uma história inacabada. Disponível aqui. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2001
BRASIL. Ministério da Saúde. Serviço Especial de Saúde Pública. Relatório Final. Rio de Janeiro: SESP, 1960, p.9.
CAMPOS, André Luiz Vieira de. “O Serviço Especial de Saúde Pública (SESP)”. In: BENCHIMOL, JL, coord. Febre amarela: a doença e a vacina, uma história inacabada [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2001.
COSTA, Renato Gama-Rosa; COHEN, Simone Cynamon; SOTERIO, Camila Nunes. Eliasz Cyna-mon e o Programa do Rio Doce (Sesp): contribuição de fontes para a história das ações de saúde e sanea-mento no Brasil, 1952-1960. Hist. cienc. Saúde -Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 25, n. 1, p. 245-259, mar. 2018. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702018000100245&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 20 fev. 2019.
FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ. CASA DE OSWALDO CRUZ. Fontes para história da Fundação Serviços de Saúde Pública. Rio de Janeiro: Fiocruz/COC, 2008, p.36.
FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ. CASA DE OSWALDO CRUZ. Fontes para história da Fundação Serviços de Saúde Pública. Rio de Janeiro: Fiocruz/COC, 2008.
FUNDO SESP; dossiê, BR RJCOC SP. DAD/COC/Fiocruz. Disponível em http://basearch.coc.fiocruz.br/index.php/fundacao-servicos-de-saude-publica-2.
HOMMA, Akira. “Prefácio”. In: BENCHIMOL, JL, coord. Febre amarela: a doença e a vacina, uma história inacabada [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2001.
RAMOS, Maria Bernardete. “A intimidade luso-brasileira – nacionalismo e racialismo”. In: O beijo através do Atlântico: o lugar do Brasil no Panlusitanismo. Chapecó: Argos, 2001.
Como citar este artigo
D’AVILA, Cristiane. Saúde acima de tudo: uma história do Rio Doce (Artigo). In: Café História . Publicado em 11 de março de 2019. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/uma-historia-do-rio-doce/
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