Os encantos e as tragédias das comunidades shtetl

Dizimadas pela violência nazista, essas importantes comunidades da Europa Oriental tinham uma vida judaica dinâmica e bastante particular.
17 de outubro de 2018
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O significado da palavra shtetl é certamente desconhecido pela maioria das pessoas, excetuando-se, talvez, aqueles que conhecem um pouco mais de história judaica. A pronúncia, não menos desafiadora, exige alguma desenvoltura: é preciso estalar a língua no céu da boca duas vezes para reproduzir a contento o som de um idioma já quase desaparecido, o iídiche.1 Caso se recorra a um dicionário etimológico, shtetl (no plural, shtetlakh) será definida com uma “pequena cidade” bastante comum das zonas rurais da Europa Oriental do século XIX, formada, sobretudo, por judeus asquenazi. Mas a verdade é que uma shtetl é muito mais do que isso.

As shtetlakh formaram um importante tecido da vida social judaica na Europa. Varridas do mapa pela violência nazista durante o Terceiro Reich, por pouco não caíram no mais completo esquecimento. O objetivo deste artigo é discutir a origem desse tipo de comunidade, suas tradições e imaginários.

Origem e dinâmica da vida social

A origem do que se convencionou chamar de shtetl está no século XVI, quando o então Reino da Polônia e o Grande Ducado da Lituânia, que na época estavam unidos, incentivaram a ida de imigrantes de outras partes da Europa para o seu território. Entre os recém-chegados estavam judeus que buscavam proteção contra a violência antissemita que se estendia por parte significativa do continente. Sabendo que o antissemitismo cristão não deixava muitas opções de destinos aos judeus, nobres enriquecidos dos Reinos da Polônia e Lituânia passaram a se valer da expertise empreendedora e comercial de muitos desses judeus para estimular o desenvolvimento econômico de suas regiões.2

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Judeus comerciantes de grãos falando na praça da cidade em Słomniki, entre 1918-1933. Cortesia do National Digital Archive.

Os judeus criaram feiras e mercados de todos os tipos, e constituíram o sistema conhecido como arenda, no qual os nobres proprietários arrendavam temporariamente parte de sua propriedade (e das atividades econômicas a ela atreladas) a um terceiro, no caso, a um judeu. Este terceiro, por sua vez, poderia utilizar mão de obra de outras pessoas nessas terras ou atividades – e com isso podia gerar renda para outros judeus. Para persuadir a permanência dos judeus em seus territórios, os nobres estabeleceram pequenas “cidade-mercados”, chamadas de miasteczko, em polonês, e de shtetlakh, em iídiche. Nessas pequenas cidades, os judeus podiam vender seus produtos e reconstruir suas vidas. A tolerância religiosa que vigorava naquele reino também ajudava sobremaneira essas comunidades a criarem vínculos com as novas terras. Em pouco tempo, o modelo polaco-lituano passou a ser reproduzido em outras áreas da Europa Oriental. Era possível encontrar shtetlakh em áreas hoje pertencentes à Bielorrússia, Rússia e Ucrânia. Entre os séculos XVII e XIX, as shtetlakh tornaram-se as principais comunidades judaicas na Europa Oriental.

Não se tratava de uma comunidade estritamente judaica. Calcula-se que os judeus constituíam entre um quarto e metade da população. Porém, eram as tradições judaicas que davam o ritmo e a “cara” dessas comunidades. Isso ficava bastante evidente nos rituais e na cultura que se via nas ruas, nas vestimentas, na culinária, nos feriados, no modo de negociar e também nas cerimônias religiosas e feriados. Palavras e expressões tipicamente judaicas faziam parte do vocabulário dos não judeus. Em termos de tamanho, as shtetlakh eram menores que uma cidade, mas eram maiores que uma aldeia ou povoado.

A geografia social de uma shtetl era quase sempre a mesma: uma praça principal, local do mercado, uma sinagoga, uma casa de banhos, tabernas, lojas e casas, muitas casas – para os mais abastados, casas de tijolos; para os mais pobres, casas de madeiras. Os incêndios eram comuns nessas últimas, o que exigia ação enérgica das brigadas de incêndio. No geral, a shtetl era uma comunidade pobre. 3 Segundo Bernard Wasserstein, toda shtetl tinha o seu “elenco de tipos característicos”. Ele cita o rabino, o pregador itinerante, o escriba, o bedel da sinagoga, o responsável pela sala de estudos e o professor da escola primária. Wasserstein também cita o caso do badkhn, mestre de entretenimento nos casamentos. 4 O badkhn é uma antiga tradição judaica, mencionada no Talmude Babilônico, mas que no final do século XIX praticamente só existia mesmo nessas comunidades judaicas do leste europeu. “No seu papel de mestre de cerimônias cômico, ele oferecia conselhos improvisados engraçados para a noiva e para o noivo. Tradicionalmente, a sua primeira frase era chore noiva, chore!5

O advento da modernidade

No início do século XX, as shtetlakh conheceram um rápido e acentuado declínio. Além da Primeira Guerra Mundial, que ceifou a vida de muitos judeus que viviam nessas áreas, a urbanização foi um outro fator fundamental para o enfraquecimento da shtetl. As cidades no começo do século passado tinham um poder de atração colossal. Além de empregos e acesso a bens materiais, elas ofereciam a possibilidade crescimento social, quer fosse pela educação, quer fosse pelo trabalho. Isso só foi possível porque os Estados Estados nacionais, muitos dos quais recém-formados, passaram a incluir, desde o final do século XIX, os judeus e outras minorias em seus projetos de nação. Em boa parte da Europa, pela primeira vez, a democracia e a cidadania eram estendidas aos judeus, que passaram a gozar não só de proteção, como também de cobertura social e política. Os judeus eram incorporados, assim, como membros da nação. Pela primeira vez eles eram integrados plenamente à modernidade.

Era cada vez maior o número de judeus assimilados nos grandes centros da Europa, judeus que se reconheciam numa chave identitária nacionalista, como boa parte dos não judeus no período. Portanto, eles se entendiam como poloneses, franceses, alemães ou russos plenos, muitos dos quais podendo atuar no serviço público e nas mais diversas profissões liberais, além de constituírem mão de obra para a indústria. Esse processo nem sempre se deu de forma pacífica, mas avançava muito claramente. Os impactos nas shtetlakh foram duramente sentidos. As antigas cidades-mercado foram  rapidamente se esvaziando. Os jovens migravam para as cidades aos milhares, deixando a shtetl habitada basicamente por idosos. O comércio entrou em crise. Faltava emprego e muitas casas estavam agora vazias, sem perspectiva de receber novos proprietários e inquilinos. Até mesmo os rituais religiosos, antes bastante ortodoxos, foram se liberalizando, consequência do desânimo das lideranças religiosas locais diante dos novos tempos. Na década de 1930, a Polônia era um dos poucos países na Europa onde essas comunidades ainda possuíam força – a esta altura do século XX, aproximadamente metade de todos os judeus-poloneses ainda viviam em shtetlakh.

Representações, imaginários e realidade

A shtetl tem sido objeto de contemplação de escritores e artistas judaicos há muito tempo, a ponto de ocupar um lugar não somente no plano real, mas também no imaginário, por meio de representações que vão da nostalgia, da idealização e da mistificação até a condenação, a crítica e o desdém. Essa construção imagética complexifica muito o significado do que seria a shtetl, pois ele passaria a se referir não só a um lugar concreto, mas a um lugar imaginado, compondo uma espécie de cosmovisão do judaísmo oriental.

O pintor judeu franco-russo Marc Chagall (1887-1985) levou a shtetl de sua infância para várias de suas telas coloridas. Em “O Casamento Russo”, tela pintada em 1909, em São Petersburgo, Chagall retrata a cerimônia de casamento ao modo romantizado daquelas que ocorriam nas shtetlakh: um casamento humilde, público, na praça da cidade, seguido por populares em cortejo e ambientado em uma comunidade de ruas íngremes e de lama. Há na tela a inconfundível figura do músico violinista, figura fácil de ser encontrada naquele tipo de comunidade. Ao fundo, Chagall desenha casas de madeira, simples e pequenas. A tela tem um sabor nostálgico, combinando alegria e melancolia.

Os encantos e as tragédias das comunidades shtetl 1
“O Casamento Russo” (1909), Marc Chagall. Fonte: E.G. Bührle Foundation, Zürich, Switzerland

Na literatura, a shtetl foi objeto recorrente na obra do escritor judeu Sholom Aleichem (1859-1916), pseudônimo6 de Schalom Yakov Rabinowitsch, nascido em Pereyaslav, na província Poltava, na antiga Rússia e atual Ucrânia. Aleichem foi um dos maiores difusores da cultura judaica oitocentista e principalmente da língua iídiche, com a qual alcançava mais de 3 milhões de leitores no mundo do final do século XIX. “Na literatura judaica, assim como em quaisquer outras, poucos escritores conheceram a popularidade de Scholem Aleichem, cuja voga e aceitação (…) só encontra paralelo no destino literário de um Cervantes, de um Dickens, de um Mark Twain ou de um Gogol”. 7

Aleichem escreveu dezenas de obras, entre romances, peças e novelas, que foram traduzidas para inúmeras línguas. Um de seus textos famosos é o musical Um violinista no telhado, adaptado de sua novela Tevie, der Milkhiker. A história se passa em um shtetl e aborda as profundas transformações pelas quais este microcosmo judaico vinha passando na virada do século XIX para XX. Essas transformações são exploradas por meio da vida do leiteiro Tévye e de suas sete filhas, cada uma representando uma mudança. A peça foi adaptada com enorme sucesso para a Broadway e para o cinema nos anos 1970. No Brasil, a peça de teatro teve produção recente. Esteve em cartaz em 2011, com direção de Charles Möeller e Claudio Botelho.

Se Chagall e Aleichem construíram a visão de um shtetl nostálgico, quase como sinônimo de pureza ou de um “paraíso perdido”, houve também leituras opostas, que diminuíam ou depreciavam este tipo de comunidade. Estas leituras encontravam-se principalmente em descrições não ficcionais de judeus da primeira metade do século XX. Em uma carta escrita em 1933 por um judeu pobre de Lódz, na Polônia, Wolf Lewkowicz, conta que ele, por um momento, chegou a pensar em voltar para sua antiga shtetl, chamado Opoczno, mas que acabou desistindo da ideia com receio das poucas perspectivas que encontraria. “Mas o que eu vou fazer em Opoczno, quando 95% das pessoas são pobres e estão nuas e descalças? A cidade parece um cemitério; as pessoas se assemelham a cadáveres; as casas parecem pedras tumulares. O que farei lá? Afinal de contas, Lódz é uma cidade com uma população de 600 mil habitantes, com fábricas, e não consigo arranjar trabalho”.8

Wasserstein sublinha que apesar dessas visões, que ou superestimavam a shtetl ou colocavam-no como lugar de extrema decadência e miséria, na primeira do século XX a shtetl era ainda uma realização concreta na vida real, repleta de dinâmica própria e contradição. “Jornais em iídiche em dezenas dessas cidades registravam a intensa vida associativa, ardorosas polêmicas, festividades, apresentações de teatro amador, palestras e eventos esportivos.(…) Muitas shtetlakh de tamanho médio ou até maiores ostentavam um cinema que passava filmes em iídiche e em polonês, além de filmes americanos.”9 Em outras palavras, as shtetlakh eram ainda cheias de vida e afeto, tecidos vivos do judaísmo do leste europeu.

Comunidade dizimada: o nazismo

Em seu clássico As Origens do Totalitarismo, a filósofa Hannah Arendt explicou que um dos aspectos do totalitarismo é que este rouba não apenas o direito de vida do indivíduo, como também o seu direito de morte – quem decide, por exemplo, quando ou onde se morre em um campo de concentração, campo de extermínio ou gueto é o nazista. O indivíduo não possui qualquer controle quanto ao seu destino.10 A análise de Arendt  talvez valha também para as coletividades. Dentro do Estado totalitário nazista, a shtetl teve o seu direito de vida e de morte roubado. Ainda que enfrentasse um declínio inegável, essas comunidades não desapareceram organicamente. Foram exterminadas pelo Terceiro Reich no contexto da Segunda Guerra Mundial.  Suas populações judaicas foram encaminhadas para campos e guetos, ou mesmo fuziladas nas florestas próximas da localidade. Recentemente, uma nova historiografia do Holocausto tem discutido o triste desfecho das shtetlakh durante as ocupações nazistas e  também soviética. É o caso de um recente trabalho do historiador israelense Yehuda Bauer, no qual analisa a queda das shtetlakh de Sarny e de Rokitno, em Wolyn, na Polônia.11

Quando falamos sobre Holocausto, a questão quantitativa dos seis milhões de mortos sempre vem à cabeça. E o número é realmente impressionante. Ele corrobora a ideia de selvageria civilizacional que representou o nazismo. Porém, pensar nas shtetlakh nos ajuda a compreender de forma mais qualitativa e profunda o que representou o Holocausto. Nas shtetlakh, a “solução final” para a questão judaica” aconteceu de forma total e definitiva. Os habitantes judeus dessas comunidades desapareceram, levando consigo tradições, personagens, culturas de um judaísmo não mais recuperáveis. O desparecimento por completo dessas comunidades destaca uma dimensão da perda que nenhum número por si só é capaz de traduzir.

Notas

1 O iídiche ou ídiche é uma língua da família indo-europeia, pertencente ao subgrupo germânico, tendo sido adotada por judeus, particularmente na Europa Central e na Europa Oriental, no segundo milênio, que a escrevem utilizando os caracteres hebraicos. Fonte: Wikipédia

2 KATZ, Steven T. (Ed.). The shtetl: New evaluations. NYU Press, 2009. pp.2-3.

3 WASSERSTEIN, Bernard. Na iminência do extermínio – a história dos judeus da Europa antes da Segunda Guerra Mundial. São Paulo: Editora Cultrix, 2014. p.94.

4 Idem, p.94.

5 Idem, p.95.

6 Expressão que em hebraico significa “A Paz Esteja Convosco”.

7 GUINSBURG, Jacó. Scholem Aleikhem: a paz seja convosco! Revista USP, n. 84, p. 87-90, 2010.

8 Idem, p.96.

9 Idem, pp.96-97.

10 ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. São Paulo: Leya, 2017.

11 BAUER, Yehuda. Sarny and Rokitno in the Holocaust. A Case Study of Two Townships in Wolyn (Volhynia).  In: KATZ, Steven T. (Ed.). The shtetl: New evaluations. NYU Press, 2009.

Referências

ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. São Paulo: Leya, 2017.

GUINSBURG, Jacó. Scholem Aleikhem: a paz seja convosco! Revista USP, n. 84 KATZ, Steven T. (Ed.). The shtetl: New evaluations. NYU Press, 2009.

WASSERSTEIN, Bernard. Na iminência do extermínio – a história dos judeus da Europa antes da Segunda Guerra Mundial. São Paulo: Editora Cultrix, 2014.

ZBOROWSKI, Mark; HERZOG, Elizabeth. Life is with people: The culture of the shtetl. 1962.

Como citar esse artigo

CARVALHO, Bruno Leal Pastor de. Os encantos e as tragédias das comunidades shtetl. (artigo).  In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/as-comunidades-shtetl‎. Publicado em: 17 out. 2018. Acesso: [informar data].

Bruno Leal

Fundador e editor do Café História. É professor adjunto de História Contemporânea do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB). Doutor em História Social. Tem pós-doutorado em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisa História Pública, História Digital e Divulgação Científica. Também desenvolve pesquisas sobre crimes nazistas e justiça no pós-guerra.

4 Comments Deixe um comentário

  1. O shtetl era uma herança do ghetto, inventado na Veneza do séc XVI para isolar os judeus. Com o passar das épocas, nada mais natural que os judeus se mantivessem juntos já agora voluntariamente, até para se protegerem dos pogroms. Mesmo depois do Holocausto, continuou existindo algo semelhante ao shtetl em certos polos da imigração judaica, até que a geração de imigrantes se foi, levando com eles o idiche, que seus filhos e netos já nao falavam, encerrando assim o ciclo.

    • Salve, Israel. Obrigado pelo comentário. É verdade, existe certa semelhança entre o ghetto antigo e o shtetl. Parte dos judeus que se transferiram para as grandes cidades européias acabaram levando com eles as tradições e certos comportamentos do shtetl. Mas a dinâmica em si dessas comunidades foi-se com o Holocausto. Uma ausência enorme.

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