A produção francesa é baseada no libreto de ópera homônimo de Jacques Audiard, que, por sua vez, foi adaptado livremente do romance “Écoute” do (também francês) autor Boris Razon. A história acompanha Juan “Manitas” Del Monte (Karla Sofía Gascón), um poderoso chefe de cartel mexicano que deseja desaparecer e finalmente viver completamente sua verdadeira identidade após a transição de gênero para mulher.
Para isso, ele busca a ajuda da inteligente e competente advogada Rita Mora Castro (Zoe Saldaña), com quem planeja todos os passos para assumir a sua nova identidade como Emília Pérez enquanto, ao mesmo tempo, foge das autoridades e de seus antigos inimigos.
O acordo, no princípio, nos parece uma win-win situation já que Rita está cansada de viver à sombra de seu chefe no escritório de advocacia onde trabalha e onde frequentemente precisa defender bandidos e assassinos em troca de um salário miserável. Rita sonha em ser rica e Manitas faz a ela a proposta faustiana.
Audilard reuniu ao seu redor um elenco estelar que conta com a maravilhosa Zoe Saldaña, a sensação Karla Sofía Gascón, e o ícone juvenil-tornada-atriz-de-sucesso Selena Gomez, que representa na trama Jessica “Jess” a esposa de Manitas e mãe de seus dois filhos. O que poderia dar errado com uma base como essa? À primeira vista, pouca coisa.
O filme é visualmente deslumbrante e sedutor, tanto ao mostrar a fortuna de traficantes de drogas mexicanos quanto ao mostrar a realidade de um Estado corrupto que, ao mesmo tempo, em que publicamente rechaça, também é financiado pelo crime organizado (alguma semelhança com o nosso Brasil não é coincidência).
Emília Pérez também conta com números musicais interessantes e bem integrados na trama, onde texto/poesia se derretem e se misturam a versos musicais sem grandes cortes que separem os segmentos mais lúdicos da representação dramática. Essa vem sendo uma tendência crescente entre os musicais contemporâneos, portanto, não recebemos aqui nenhuma novidade estética nesse aspecto.
Emília Pérez, a crítica e as críticas
Num primeiro momento, Emília Pérez recebeu aclamação e gozou de sucesso internacional. Porém, ao ser lançado para um público fora das salas de cinema dos grandes festivais europeus, a obra enfrentou críticas no México e em vários outros países de língua latina. A obra foi acusada de estereotipar a cultura mexicana e a comunidade LGBTQ+. Os críticos apontaram a falta de sensibilidade cultural e a representação caricatural de personagens mexicanos e transgêneros.
A escolha de uma atriz espanhola para interpretar uma personagem mexicana trans, assim como a escolha de Zöe, conhecida atriz norte-americana que possui ascendência dominicana e porto-riquenha, e Selena, atriz norte-americana, também gerou debates sobre representatividade.
Em parte, me sinto forçada a ficar do lado do povo mexicano que teceu as críticas – como nos sentimos quando vemos nas telas brasileiros sendo representados por atores que não dominam a língua portuguesa ou possuem o sotaque do português de Portugal? Como nos sentimos quando vemos nossa realidade ser mostrada e interpretada pelos olhos colonialistas?
O desconforto, nesses casos, é plenamente compreensível. Aquele tempero que nos dá a sensação de estarmos diante de uma obra genuína não raramente está nos detalhes das representações. Detalhes que podem passar batidos por um público alheio à língua ou à cultura local.
“Emília Pérez” estreou no 77º Festival de Cannes em maio de 2024, onde competiu pela Palma de Ouro (levada para casa pelo filme Anora) e acabou recebendo o Prêmio do Júri, além de uma ovação de pé de nove minutos da plateia. Karla Sofía Gascón foi a primeira mulher trans indicada ao Globo de Ouro na categoria de Melhor Atriz em Filme – Musical ou Comédia.
O filme também foi selecionado como a entrada francesa para Melhor Filme Internacional no 97º Oscar. Porém, pouco antes da premiação do Globo de Ouro, as polêmicas sobre as escolhas da produção chegaram às redes sociais, e as vozes críticas formaram um coro impossível de ignorar.
Jacques Audiard é um renomado cineasta e roteirista francês, muito conhecido por seu estilo sofisticado e por explorar temas psicológicos e emocionais em seus filmes, isso nos é oferecido também de forma efusiva em “Emília Pérez”. Ele nos apresenta uma obra ousada que mistura elementos de musical, comédia e crime para contar uma história de identidade e transformação.
As performances de Zoe Saldaña e Karla Sofía Gascón são muito boas. Em especial, Saldaña que, em uma determinada cena, fala de sua ascendência porto-riquenha, o que a eximi de parte da tentativa de apropriação cultural. Já Gascón nos é inteiramente vendida como uma mexicana.
A direção de Jacques Audiard é ambiciosa, embora a abordagem estilística possa não agradar a todos, principalmente aos fãs do formato mais comportado e tradicional de musicais. Porém, uma afirmação de Audiard deixou um gosto amargo em nossas bocas – ao ser questionado sobre o porquê de não optar por atores mexicanos, ele teria supostamente respondido que não havia encontrado atores locais “bons o suficiente”.
As críticas recebidas ao filme no México ressaltaram a importância de uma representação cultural cuidadosa e autêntica, especialmente em narrativas que envolvem comunidades marginalizadas. No geral, o filme oferece uma experiência cinematográfica única, mas levanta questões sobre a responsabilidade na representação cultural e isso, provavelmente, irá polarizar opiniões, inclusive durante a campanha do filme por premiações no Oscar.
“Emília Pérez” chega aos cinemas brasileiros no dia 5 de fevereiro de 2025.
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