Na estrada dos louros, seguindo o faixo de luz da estrela solitária que conduziu o sucesso do Botafogo em 2024, com os títulos da Libertadores e do Campeonato Brasileiro, não pude resistir em buscar, no catálogo de filmes lançados em 2011, um legítimo representante da cinematografia futebolística do Brasil. “Heleno”, do diretor José Henrique Fonseca, é uma das raridades do cinema brasileiro sobre futebol ou temas relacionados ao esporte.
Apesar da abundância de dramas, conflitos, personagens e histórias épicas e de superação, uma das maiores paixões nacionais, o futebol, sofre de escassez nas telas dos cinemas. Tirando os inúmeros documentários sobre times de futebol, voltados, principalmente, para as suas próprias torcidas, cabem na palma da mão os bons filmes brasileiros relacionados ao esporte e “Heleno”, felizmente, é um deles.
Heleno de Freitas foi, provavelmente, o primeiro craque de futebol a ultrapassar a barreira do esporte e se transformar em estrela nacional e midiática. Seu temperamento impulsivo, agressivo e arrogante, aliado à sua beleza, sensualidade e talento, era o coquetel perfeito para atrair o interesse dos brasileiros, disputando a atenção do público com os astros da TV e do cinema.
O ar de “bad boy” conquistava as mulheres com a mesma facilidade com que, em campo (no jogo), hipnotizava os olhares dos homens na torcida. Enquanto fulminava os adversários com seus gols, tornando-se o 4° maior artilheiro do Botafogo da história, enfileirava jovens ensandecidas na entrada do Copacabana Palace, onde costumava se hospedar. O abuso dos cigarros, bebidas e o costumeiro lança-perfume, o banquete de tentações – do qual nenhum superstar está livre –, o ego inflado, a certeza de pertencer ao primeiro lugar no pódio dos deuses, tudo isso somado contribuiu para a derrocada na vida de Heleno.
Após contrair sífilis, resultado de suas intermináveis aventuras amorosas, o então “príncipe maldito” passou a ser chamado de “Gilda” nas arquibancadas, ligando a figura à personagem de Rita Hayworth, no filme de Charles Vidor. Gilda era uma mulher linda e sensual, porém de comportamento conturbado (assim como Heleno). O filme de Fonseca posiciona o personagem Heleno de Freitas entre o glamour da cidade do Rio de Janeiro, da década de 40, e a atimia da Casa de Saúde São Sebastião, em Barbacena, Minas Gerais, onde passou seus últimos dias.
A fotografia de Walter Carvalho, em preto e branco, com tons poéticos, é deslumbrante e dribla a dificuldade de se filmar um jogo de futebol realista. As imagens nos estádios, dos jogadores debaixo de chuva, dos chutes, da arquibancada, lembram os registros do Canal 100 – que para os nostálgicos, transformava o velho esporte bretão em coreografia, um verdadeiro ballet. Traz também sensualidade e elegância que conduzem o público, como a música do Flautista de Hamelin, a uma imersão intensa na vida de Heleno.
Mas é Rodrigo Santoro quem desfila um arsenal de luminosidade ao interpretar o turbulento jogador. Aqui temos, claramente, um ator que soube enxergar a riqueza do papel, seus conflitos e nuances, e se colocou, plenamente, a serviço do personagem.
Santoro chegou a declarar que seu método de atuação é mergulhar na vida de determinado personagem, desprovido de julgamento. A paixão com que ele se agarra a Heleno e luta em sua defesa é de encher os olhos de Stanislavsky, a ponto de imaginarmos que não haveria outro ator capaz de embarcar na alma do craque.
Das cenas quentes com as atrizes Aline Moraes (Silvia, esposa de Heleno) e Angie Cepeda (Diamantina, cantora do Copacabana Palace) às cenas melancólicas em Barbacena, Santoro passeia entre o auge e a decadência de Heleno. E o faz, inclusive, fisicamente, esbelto e sedutor, dentro e fora de campo, nos tempos de esplendor, e magro, apático e repulsor quando, praticamente, derrotado pela doença.
Em meados de 1950, a imprensa soltou uma bomba que chocou a opinião pública brasileira: o imigrante letão Herberts Cukurs, criador e proprietário dos pedalinhos da Lagoa Rodrigo de Freitas, cartão postal do Rio de Janeiro, havia cometido crimes de guerra durante a ocupação nazista da Letônia. Neste livro, que vai virar filme, o historiador Bruno Leal, professor da Universidade de Brasília e criador do Café História, investiga o chamado “Caso Cukurs”, desde a chegada de Cukurs no Brasil até a sua execução por agentes secretos do Mossad, de Israel. Livro disponível nas versões impressa e digital. Confira aqui.
São tantas facetas exploradas que é quase como que se o personagem estivesse a serviço do ator. Em entrevista a Pedro Bial, Rodrigo Santoro afirma que o filme “Heleno” abriu portas para sua carreira nos EUA. Seus agentes enviavam cópias do filme para as produtoras, a fim de demonstrar o talento e empenho do ator e lhe garantir novos trabalhos.
Heleno e o Botafogo
É interessante observar como a figura de Heleno de Freitas se funde ao que é, na essência, o Botafogo de Futebol e Regatas. Numa das cenas mais aclamadas do filme, Heleno, num rompante, após perder o campeonato, já no vestiário, completamente revoltado com a apatia de seus companheiros, declara: “Aqui não é lugar para covardes”! E rasga o dinheiro da premiação a que tinham direito – em clara evidência de seus verdadeiros valores.
Noutra cena, em diálogo com o folclórico presidente do Botafogo, Carlito Rocha (interpretado por Othon Bastos), Heleno se oferece para jogar até de graça pelo time, o que lhe é veementemente negado, sendo ele obrigado a buscar novos ares. Jogou no Boca Juniors (da Argentina), Junior Barraquilla (Colômbia), Vasco da Gama e terminou a carreira no América. Heleno foi mal tratado pelos seus dirigentes, assim como o próprio Botafogo durante boa parte de sua história. A diferença é que o fim de Heleno não é glorioso.
Em 2024, durante a impecável campanha do Botafogo nos gramados, a torcida erguia uma faixa com as figuras dos maiores jogadores do clube e, ao lado de Garrincha, Didi e Nilton Santos, estava Heleno de Freitas. Considerado ídolo pela torcida, jamais se sagrou campeão pelo Botafogo. Seu amor e paixão e sua identificação com a camisa alvinegra o elevaram a tal posto. Seu legado não será esquecido e está eternizado nas bandeiras da torcida e por Rodrigo Santoro, no cinema.