Leituras do Brasil Colonial

18 de maio de 2012
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Entrevista com Leila Mezan Algranti (UNICAMP)

Essa entrevista vai dar fome. E não estamos falando aqui de nenhuma fome no sentido metafórico, mas fome de verdade: de comida! Farinha de mandioca, carne de sol, peixe fresco, caldo de feijão e outros representantes da culinária brasileira estão presentes na interessantíssima entrevista que a historiadora Leila Mezan Algranti, da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), deu ao Café História. Algranti tem realizado uma pesquisa detalhada e baseada em farta documentação sobre a alimentação durante o Brasil colonial. A historiadora, que também pesquisa o papel da mulher nesta sociedade.

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Leila Algranti é professora da UNICAMP. Foto: Youtube/UNESP

Bruno Leal: Professora Leila Algranti, muito obrigado por aceitar conversar com o Café História. Há algum tempo queremos conversar com algum historiador sobre o nosso passado colonial. Como se deu o seu envolvimento com este período da História brasileira? Quais são os principais desafios do historiador do chamado “Brasil Colônia”?

Leila Algranti: Creio que o meu envolvimento com a História Colonial se deu, em grande parte, devido ao interesse pelo tema da escravidão africana, o qual promovia grandes polêmicas na historiografia brasileira nos anos 1970, época em que fiz a graduação em História. Envolvia não somente historiadores como outros cientistas sociais, interessados em entender o chamado modo de produção (conceito emprestado do marxismo, muito influente nas ciências humanas naquele momento), e, consequentemente, o tipo de formação social que caracterizava a sociedade colonial. Acreditava-se que a compreensão de tais aspectos explicaria melhor nossa sociedade e o estágio de desenvolvimento do capitalismo no qual o Brasil se encontrava. Estudar a escravidão africana e seus desdobramentos era uma maneira, enfim, de procurar entender não só a vida econômica e social brasileiras — profundamente marcadas por esta instituição — como captar a essência da colonização portuguesa na América. Acho que foi por tudo isso que ingressei no Mestrado com um projeto de pesquisa sobre a escravidão negra, sob a orientação de Fernando Novais, professor que me despertou para esta e tantas outras questões historiográficas. O Feitor Ausente – estudo sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro (1808-1821) é o livro que resultou de minha dissertação de mestrado. Penso que os desafios daquela etapa permanecem até hoje no meu trabalho como historiadora da Colônia e que procuro colocar para meus alunos: não buscar a verdade dos fatos históricos, lembrar sempre que os documentos também são fabricados e evitar os anacronismos. Lições estas que aprendi com meu mestre e orientador.

Bruno Leal: No seu doutorado, a senhora pesquisou a condição feminina através dos conventos e recolhimentos da colônia. Que variáveis determinavam o papel social da mulher nos tempos de colônia? Qual era o seu principal “problema historiográfico” na sua tese?

Leila Algranti: Como muitos historiadores da minha geração meu principal interesse era escrever a História dos “excluídos”, me aproximar de agentes históricos anônimos, cidadãos comuns, e tentar de todas as formas “ouvi-los” , buscando para isso novas fontes ou colocando novas questões a fontes consagradas pela historiografia. Interessava-me ( e ainda me interessa) reconstituir as práticas sociais no mundo colonial. Por diversos caminhos e com o auxílio de diferentes temas, minha grande questão tem sido: como viviam e o que pensavam, em determinadas situações históricas, os homens e mulheres da época colonial? Porém, em meados dos anos 1980, a então recente “História das Mulheres” era um grande estímulo para se tentar desconstruir as imagens que predominavam sobre as mulheres coloniais: reclusas, omissas, pouco importantes e subjugadas a pais e maridos opressores. Me encantei com este desafio e entrei nos arquivos com tal objetivo. A documentação referente às instituições de reclusão feminina (conventos e recolhimentos) me possibilitaram a aproximação com as trajetórias de vida e os espaços de sociabilidade de uma parcela da população feminina da América portuguesa. Foi um trabalho que me tomou muitos anos mas absolutamente apaixonante.

Bruno Leal: Quando pensamos no “circuito feminino” nos tempos de colônia, sempre imaginamos algum espaço privado. Mas como e qual era a participação das mulheres no “espaço público”?

Leila Algranti: De fato, as fontes não colaboram muito para mudar esta visão de predomínio das mulheres no espaço privado, principalmente se nos restringirmos às mulheres das elites. Mas em outros segmentos sociais encontramos com mais facilidade mulheres circulando nas ruas das vilas e arraiais coloniais e mesmo vivendo no campo, ocupadas em vários ofícios, sustentando e criando seus filhos, muitas vezes sozinhas. Mulheres que faziam testamentos, legavam bens, compravam e vendiam propriedades e, inclusive, defendiam frente à justiça seus direitos. Livres ou escravas, o universo das mulheres coloniais era, certamente, mais amplo do que o limitado espaço da casa. Pelo menos é o que sugerem fontes tais como: inventários e testamentos, mapas populacionais, processos de divórcio, licenças para escravos ao ganho, além de cartas de alforrias e estatutos de irmandades religiosas entre outras. A questão principal, me parece, é fugir dos inevitáveis riscos das generalizações e tentar contextualizar o melhor possível a atuação das mulheres em diferentes tempos e espaços.

Bruno Leal: Em seus estudos, a senhora encontrou alguma mulher que se destacou muito no plano político e social da época? Talvez não uma revolucionária, mas alguém que saiu da curva padrão…?

Leila Algranti: No campo político e social certamente não faltam rainhas e princesas tanto em Portugal como em outras localidades da Europa da época moderna que chamaram minha atenção quer pela forma como gerenciaram suas vidas particulares, quer pelo destino de suas famílias, dinastias e reinos. Está sendo publicada em Portugal uma coleção sobre rainhas portuguesas e também do Brasil que permite uma boa visão sobre o assunto. No caso da época colonial e vinculada às minhas temáticas de estudo, encontrei uma mulher que teve destaque na vida religiosa do século XVIII, passando à História como a fundadora da Ordem carmelita no Brasil: Madre Jacinta de São José. Ela se tornou uma das minhas personagens favoritas e explorei em diferentes estudos aspectos de sua vida. Esta mulher contestou a autoridade do bispo do Rio de Janeiro, atravessou o Atlântico para defender seus ideais e conseguiu com habilidade surpreendente escapar de um processo da Inquisição. Creio que Madre Jacinta não é uma personagem isolada. Outras mulheres que viveram na época colonial estão à espera de seus biógrafos. Os detalhes de suas histórias de vida estão, certamente, guardados nos nossos arquivos.

Bruno Leal: A independência provocou alguma mudança específica na condição feminina no Brasil?

Leila Algranti: Acho a pergunta muito pertinente e creio que caberia uma análise comparativa com base principalmente na legislação. As Ordenações Filipinas (conjunto de leis portuguesas que vigorou no período colonial) permaneceram como o corpus legal até depois da independência e sua influência se estendeu por muito mais tempo. Mas pode-se, por exemplo comparar o seu famoso livro V sobre os costumes e que contém matéria penal com o Código Penal de 1832. Esta pergunta pode servir de estímulo para algum (a) aluno (a) em busca de um bom tema de pesquisa sobre as relações de gênero no período colonial e pós independência.

Bruno Leal: Professora, a senhora tem se dedicado a estudar os hábitos alimentares no Brasil colonial. A senhora pode falar um pouco mais deste trabalho? Quais são as suas fontes, por exemplo?

Leila Algranti: Comecei a trabalhar com a História da Alimentação há mais de dez anos, estimulada pelas referências sobre as habilidades doceiras das religiosas portuguesas e do convento da Ajuda, no Rio de Janeiro. Do ponto de vista da abordagem histórica fui também estimulada pelos estudos de Jean Louis Flandrin e Massimo Montanari. O estudo da alimentação desperta meu interesse em dois níveis: em primeiro, empiricamente, na investigação de práticas alimentares dos colonos; nesse sentido, elegi alguns segmentos para estudar mais detidamente, como a doçaria, as bebidas e os temperos, todos esses envolvendo produtos coloniais. O segundo é pensar a alimentação como uma categoria de análise da sociedade e da cultura da época, isto é, a alimentação como uma forma de aproximação para compreender as relações culturais no Império português. Em termos mais explícitos, me interessa refletir sobre as trocas culturais, apropriações e ressignificações de elementos e práticas culturais que ocorreram entre os habitantes de diferentes regiões do Império, provocando ou instigando um fantástico intercâmbio cultural. Nesse movimento de ir e vir de produtos, pessoas, saberes e receitas, Lisboa ocupou um lugar importante, quer como sede imperial e local de onde emanava o poder e o domínio desse vasto império (implementando políticas, permitindo ou restringindo o que importar, aclimatar, exportar); quer como cidade e porto onde ocorriam trocas de vários tipos. As fontes do historiador da alimentação, como em outros campos de estudo, leva em conta todo tipo de vestígio.Tenho privilegiado as fontes escritas (impressas e manuscritas) e um pouco as imagens, quando disponíveis. De forma geral, além da literatura de viagens e cronistas, sempre muito abundantes em informações desse tipo, os livros de receitas, os registros de despesas (livros de contas) de instituições como conventos, hospitais, escolas ou da Casa Real, e ainda inventários de bens de todo tipo, constituem o núcleo básico documental com o qual venho trabalhando. Tenho dado mais recentemente atenção aos rituais de comensalidade ( o estar à mesa e comer em conjunto), bem como os artefatos utilizados. Espero apresentar em breve um livro sobre a alimentação na América portuguesa, além dos ensaios que tenho publicado em diversos meios de divulgação.

Bruno Leal: E que cardápio é esse? Quais era as principais dietas no Brasil colônia? Essas dietas variavam muito de um estrato social para outro?

Leila Algranti: Havia uma dieta básica na qual a farinha de mandioca, associada a algum tipo de carne, geralmente salgada (porco, vaca ou peixe) era misturada a um componente mais líquido (água ou caldo de feijão). O angu, prato muito comum em várias localidades da América portuguesa, era preparado desta forma. Em algumas regiões e períodos específicos, encontramos a farinha de milho no lugar da mandioca, mas esta foi sem dúvida o principal alimento de norte a sul da Colônia para todos os segmentos sociais. É claro que comida tem a ver com condição social, mas refiro-me à dieta cotidiana. Em momentos festivos, o cardápio poderia mudar totalmente. O caráter de celebração da comida é muito presente em várias sociedades, inclusive na sociedade colonial. Havia, contudo, outros referenciais no que se refere a alimentação dos diferentes grupos sociais. Pode-se lembrar que os tratados de dietética medievais e da época Moderna propunham uma alimentação diferenciada entre homens e mulheres, entre indivíduos saudáveis e doentes e também de acordo com grupos de idade, ou seja, dieta para idosos e para crianças. No caso das mulheres, por exemplo, recomendava-se que comessem pouco, a fim de demonstrar além de boa educação, controle da voracidade. Isto tinha a ver com o controle do desejo e do prazer. O pecado da gula pairava sobre homens e mulheres, mas o discurso sobre os riscos da sexualidade feminina sempre foram mais temidos, indicativos das diferenças de gênero na relação com a comida. Os livros de culinária, por sua vez, podiam apresentar receitas de comidas destinadas aos doentes. Enfim, esse e um tema fascinante e há muito para investigar sobre os hábitos alimentares na sociedade colonial.

Bruno Leal: Nossa História Colonial é naturalmente bastante vinculada a História de Portugal. Professora, como a senhora avalia os laços acadêmicos que unem hoje Brasil e Portugal? Há muitos trabalhos em parceria entre historiadores brasileiros e portugueses nos estudos coloniais?

Leila Algranti: De fato, os laços sempre foram muito fortes, mas vive-se já há quase duas décadas uma relação muito intensa de parceria e intercâmbio de ideias, quer em termos institucionais, quer particulares. No primeiro caso, convênios entre universidades e projetos de pesquisa envolvendo historiadores dos dois países são frequentes e recebem o apoio de agências de fomento portuguesas e brasileiras, que facilitam enormemente essas ações. O resultado dessa aproximação é extremamente positivo, pois geralmente os projetos conjuntos dão origem à publicação dos dados das pesquisas. O trabalho em pareceria ocorre ainda nos múltiplos eventos científicos que a cada ano envolvem os especialistas em História Colonial e os chamados “modernistas” em Portugal, ou seja, aqueles que se dedicam a questões ligadas à História da expansão portuguesa. É muito comum nesses eventos a presença de historiadores brasileiros em Portugal e vice-versa. Em termos particulares, as parcerias estão presentes não apenas nos estudos produzidos dos dois lados do Atlântico, mas também na colaboração de orientação de teses e dissertações. Cabe lembrar ainda a questão das fontes históricas, pois dependendo do período escolhido (séculos XVI a XIX) e do tema da História Colonial, só há fontes disponíveis em instituições de pesquisa portuguesas, o que tem levado alunos de pós graduação do país inteiro a consultar os acervos portugueses. O famoso projeto Resgate disponibilizou eletronicamente documentação existente no Arquivo Ultramarino referente a todas as capitanias da América portuguesa. É o fato mais conhecido em termos de empreendimento ligado à documentação colonial. Mas é na abordagem e nas correntes historiográficas que se notam melhor as ações conjuntas: há uma sintonia nas temáticas e interesses de pesquisa. Talvez isso seja apenas uma tendência da historiografia internacional, talvez seja mesmo resultado dessa maior aproximação que aconteceu nas últimas décadas entre historiadores portugueses e brasileiros.

Bruno Leal: A internet tem facilitado muito a pesquisa do historiador. Em Portugal, por exemplo, boa parte dos arquivos da Inquisição, pertencentes a Torre do Tombo, foram digitalizados. Na sua opinião, o Brasil deveria investir mais neste tipo de ação? Como a senhora vê as novas mídias?

Leila Algranti: Sim, a digitalização de documentos e sua disponibilização na internet é cada vez maior, o que facilita imensamente o trabalho do historiador e o acesso à informação. Sou absolutamente favorável à divulgação eletrônica de documentos (manuscritos e material impresso) e creio que sem o recurso das novas mídias seria extremamente difícil fazermos História Colonial no século XXI no Brasil. O movimento é geral e apesar dos altos custos da digitalização creio que deveria ser prioridade nas políticas dos nossos arquivos. O Arquivo do Estado de São Paulo, o Arquivo Público Mineiro, o Instituto de Estudos Brasileiros e Biblioteca Mindlin têm feito esforços nesse sentido. O Arquivo Nacional tem disponibilizado documentação on line. Para o estudioso do Brasil colonial é praticamente impossível ignorar esses avanços. Essa política deveria ser menos tímida na maior parte dos nossos arquivos.

Bruno Leal: Professora Algranti, nosso papo foi ótimo. Muito obrigado. Para encerrar a conversa, mais uma pergunta curiosa, como no início: em quais projetos a senhora está trabalhando atualmente? Alguma novidade que possa adiantar aos leitores do Café História?

Leila Algranti: No momento estou iniciando o último segmento da pesquisa que deverá resultar em um livro sobre a alimentação na América portuguesa, como já falei no início da entrevista. Trata-se da parte referente à cultura material da alimentação, na qual espero contemplar os equipamentos e artefatos vinculados à preparação dos alimentos e ao serviço de mesa. Uma abordagem importante e que tem despertado não só o interesse dos historiadores, mas também debates significativos no campo teórico. Em termos de novidades, creio que aqueles que se interessam pelo assunto podem aguardar para muito breve (outubro deste ano) um dossiê já em preparação no Cadernos Pagu (Revista do Núcleo de Estudos de Gênero da Unicamp) sobre Gênero e Alimentação, organizado por mim e por Wanessa Asfora, medievalista e especialista em História da Alimentação. Obrigada pela oportunidade em conversar com os leitores do Café História !


Leila Mezan Algranti possui bacharelado e licenciatura em História pela Universidade de São Paulo (1975), mestrado em História Social pela Universidade de São Paulo (1983) e doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (1992). Atualmente é professora livre docente da Universidade Estadual de Campinas e pesquisadora 1D do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). É autora dos livros Livros de Devoção, Atos de Censura (Hucitec, 2004), Honradas e Devotas: mulhers na Colônia (José Olimpio/Ed. UNB, 1999), O Feitor Ausente: estudo sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro, 1808-1821 (Ed. Petrópolis:Vozes, 1988), entre outros, além de artigos e resenhas. É um dos quatro pesquisadores principais do Projeto Temático FAPESP “Dimensões do Império Português”, sediado na Cátedra Jaime Cortesão (USP). Participa como pesquisadora e coordenadora associada do Núcleo de Estudos Pagu (Unicamp) do projeto “Transnacionalização e Famílias no Brasil e em Portugal”, convênio internacional Capes/Grices (2006-2008) juntamente com pesquisadores do ISCTE-Lisboa. Particiapa como pesquisadora do projeto “Portas a dentro” (2006-2008), com o apoio da FCT em Portugal. As áreas de especialização concentram-se em História Cultural, com ênfase em História do Brasil Colônia, atuando principalmente nos seguintes temas: História da Alimentação, Gênero, vida religiosa no Brasil Colônia, História da leitura.

Ana Paula Tavares

Subeditora do Café História. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais da Fundação Getúlio Vargas (PPHPBC/FGV) , bolsista CNPq. Possui graduação em Comunicação Social – habilitação jornalismo pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ (2006). É formada em teatro pela Casa de Artes de Laranjeiras – CAL (2010). Estuda História Intelectual, Imprensa, Mediação Cultural na trajetória da jornalista Yvonne Jean.

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