O crime perfeito não é almejado somente por criminosos: cineastas também buscam alcançá-lo por amor à arte. Filmes sobre crimes – os chamados “heist movies”, que acompanham o planejamento e a execução de uma contravenção – são muito antigos e muito variados. Ao cinema também interessa o que se segue ao desmascarar o crime “perfeito”, não à toa filmes com sequências de tribunal sempre fizeram muito sucesso. A pesquisa para estes dois tipos de filmes tem a ajuda quase diária dos noticiários, pois em muitos casos a vida real oferece histórias muito mais criativas que aquelas inventadas para o cinema. Um exemplo foi o roubo de uma pintura de Goya em Londres nos anos 60, tema do filme “O Duque”.
Kempton Bunton (Jim Broadbent) é um cidadão nada pacato. Ele recém terminou sua última obra teatral, “As Aventuras de Susan Cristo”, especulando o que teria acontecido se Jesus houvesse nascido mulher. Depois de finda a aventura literária, Kempton passa treze dias na cadeia por não pagar uma taxa de licenciamento da BBC cobrada de todos que têm televisores na Inglaterra de 1961. Solto e sem seu emprego de taxista, Kempton vai a Londres resolver alguns “negócios”.
Em Londres, ele não tem sucesso ao contatar possíveis interessados nas peças que escreve, tampouco ao exigir no Parlamento que idosos tenham isenção da taxa de licenciamento de TV. Amargado com o fracasso, resolve descontar em outros e abriga em sua casa o recém-roubado e muito comentado retrato do Duque de Wellington pintado pelo espanhol Francisco Goya, quadro este que estava em exibição numa galeria. Ele conta com a ajuda do filho Jackie (Fionn Whitehead) para esconder o ato ilícito da esposa, a faxineira Dorothy (Helen Mirren).
Tudo que se assume sobre os ladrões do quadro estava errado. Especialistas disseram que era alguém com força descomunal, treinado oficialmente pelas Forças Armadas, e a serviço de um grupo criminoso internacional. Uma consultora, interpretada por Sian Clifford – a Claire do seriado “Fleabag” -, por outro lado, acerta quase tudo ao analisar a carta de resgate.
Francisco José de Goya (1746-1828) foi o mais importante pintor espanhol do início do século XIX. Descrito como “o último dos Velhos Mestres e o primeiro dos modernos”, Goya começou no estilo Rococó, mas uma doença desconhecida, que o deixou surdo, influenciou sua maneira de pintar, e começou a produzir pinturas mais escuras. Ele foi apontado como o pintor oficial da Corte espanhola em 1789. Nos cinemas, Goya e seu trabalho foram retratados no filme de 1958 “A Maja Desnuda”, com Anthony Franciosa interpretando o pintor.
Vendo uma matéria sobre o quadro na TV, Kempton diz que deveriam homenagear os soldados que ganharam a guerra para o duque, não o próprio duque. Isso vem de encontro ao explicitado em duas obras importantes. A primeira é o filme de 1957 “Glória Feita de Sangue”, em que os poderosos, de alta patente no exército, ficam reunidos em palacetes e mandam os jovens, com suas baixas patentes, para as trincheiras insalubres. A outra obra é o poema de Bertolt Brecht “Perguntas de um Operário (ou Trabalhador, dependendo da tradução) que Lê”, que nos ensina que não existiriam líderes se não houvesse aqueles que eram liderados.
A conexão de “O Duque” com o mundo do cinema é inesperada: o advogado de Kempton Bunton foi Jeremy Hutchinson, que mais tarde ganhou o título de Barão e viveu até os 102 anos. Na época do caso, Hutchinson era casado com a atriz Peggy Ashcroft, fato mencionado no filme, com quem teve dois filhos. Ashcroft, cuja carreira durou de 1933 a 1989, ganhou o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante pelo filme “Passagem para a Índia” (1984).
O começo do filme lembra muito – a ponto de gerar uma sensação de déjà vu – o também britânico “Viver”, remake de clássico lacrimoso de Akira Kurosawa feito em 1952. Estrelado por Bill Nighy, este filme, com “O Duque”, retrata uma certa tendência do cinema britânico contemporâneo: filmes “feel good”, ou alto-astral, com suas grandes estrelas já de certa idade… e são muitas as opções para o elenco!
Apesar do papel pequeno, Helen Mirren tem bons momentos para brilhar. Ganhadora do Oscar por “A Rainha” (2006), no qual interpreta a rainha Elizabeth II, ela já esteve em quase 150 filmes e programas de TV, tendo estreado na TV em 1967. Jim Broadbent, também ganhador de um Oscar, foi praticamente intimado a aceitar o papel protagonista: o diretor Roger Michell declarou que não faria o filme sem ele! Este foi o último filme de Michell, que completou o projeto em 2020, mas não viveu para vê-lo nos cinemas em 2022, com a estreia postergada devido à pandemia.
Se há do que reclamar, é de que o filme não sabe criar um “clima”. A sequência do roubo é tão rápida e simples que, se você piscar, a perderá. Dorothy descobre a obra roubada em sua casa também numa sequência anticlimática. Mesmo assim, é um filme agradável, para ver com seus pais ou avós, ou para curtir num fim de semana chuvoso. E você ainda sairá da sessão com mais alguns conhecimentos sobre arte.