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Marcos Sorrilha é professor da Universidade Estadual Paulista. Foto: reprodução.

“Trump é visto como uma espécie de líder ungido”

Apesar dos ataques às instituições e de uma condenação criminal, Donald Trump foi reeleito, revelando divisões profundas na sociedade americana. Nesta entrevista, o historiador Marcos Sorrilha analisa o cenário que permitiu seu retorno, a transformação do Partido Republicano em um movimento personalista e o impacto dessa vitória para a democracia nos Estados Unidos e no mundo.
11 de novembro de 2024

Donald Trump voltou à presidência dos Estados Unidos. Embora sua campanha tenha sido marcada por acusações de abuso de poder, uma postura questionável frente às instituições democráticas e até mesmo uma condenação criminal, ele conseguiu mobilizar uma base eleitoral que o vê como um defensor de valores conservadores e um símbolo de oposição ao establishment político. O caminho de Trump à vitória trouxe à tona questões profundas sobre o estado da democracia americana, os sentimentos de frustração entre os eleitores e as divergências ideológicas que permeiam a sociedade norte-americana.

Para compreender esse fenômeno, o historiador Marcos Sorrilha, professor Assistente na Universidade Estadual Paulista e dono do Canal do Sorrilha, traz uma análise detalhada sobre os fatores que favoreceram a eleição de Trump e sobre as possíveis implicações para a política interna e externa dos EUA. Sorrilha argumenta que a falta de uma resposta política à invasão do Capitólio foi determinante para a continuidade do apoio ao ex-presidente: “Naquela oportunidade, muitos senadores republicanos […] acreditaram que Trump estava eleitoralmente morto”. Ele destaca que o conservadorismo republicano, longe de rejeitar Trump, passou a ver nele um líder imprescindível, transformando-o quase em uma figura messiânica para os seus seguidores.

A visão de Sorrilha ainda relaciona o fenômeno Trump com um estilo de política que lembra líderes populistas da América Latina, apontando para uma mudança nas dinâmicas partidárias americanas. Ele sugere que, atualmente, o Partido Republicano se tornou “um veículo para um movimento com características de culto personalista centrado na figura de Donald Trump”. Essa interpretação coloca em evidência o quanto o cenário americano de 2024 está distante dos ideais de excepcionalidade que a nação sempre projetou e que reforça o impacto que o trumpismo poderá ter no futuro político global.

Por que, mesmo depois da invasão do capitólio, Donald Trump conseguiu ser eleito novamente?

A primeira parte dessa questão está relacionada à falta de uma resposta política ao evento. Naquela oportunidade, muitos senadores republicanos, liderados por Mitch McConnell (líder da minoria republicana no senado), acreditaram que Trump estava eleitoralmente morto e, por conta disso, não levaram adiante o impeachment do então presidente, para não perderem os votos dos apoiadores de Trump em eleições futuras. 

Além disso, a velocidade com que a justiça atuou para prender os invasores do Capitólio não foi a mesma empregada para julgar os organizadores e incentivadores da invasão. 

A segunda parte da questão deve ser analisada da perspectiva eleitoral. A maioria dos eleitores republicanos não viu o ataque ao Capitólio como um crime, mas como uma reação legítima a alegações de fraude eleitoral — ainda que infundadas. Essa parte do eleitorado também compreende estar vivendo uma guerra cultural que coloca em risco o seu estilo de vida e os valores conservadores de sociedade que imaginam ser melhores. Assim, Trump é visto como uma espécie de líder ungido capaz de defender tais valores, bem como um símbolo de oposição ao establishment político.

Por fim, há eleitores mais preocupados com a deterioração do poder de compra dos americanos afetados pelo cenário inflacionário pós-pandemia e que atribuíram essa situação aos pacotes econômicos do governo Biden. Tais eleitores entendem que Trump, por conta de sua trajetória como um homem de negócios, seja alguém mais apto para lidar com a situação. 

A ideia de uma excepcionalidade dos EUA sempre foi muito forte para os americanos – aquela crença de um país diferente de todos, irradiador das ideias democráticas e das liberdades. Em que medida você acha que o retorno de Trump fragiliza a ideia de excepcionalidade?

Sem dúvida. Uma das questões na qual a excepcionalidade americana se ancora é justamente que os EUA são um modelo de democracia e liberdade. Como dizia Reagan, “uma cidade brilhante sobre uma colina” que a todos deveria inspirar. A volta de Trump, após ataques às instituições, tanto físicos quanto retóricos (o questionamento da legitimidade do processo eleitoral e o flerte com teorias conspiratórias), bem como a sua condenação criminal, colocam em xeque essa imagem. Ao mesmo tempo, expõe as falhas internas do sistema democrático dos EUA e contradiz a narrativa de um país exemplar em termos do ordenamento jurídico, como o Império da Lei. O fato curioso é que Trump não gosta do conceito de excepcionalismo. Já em sua primeira eleição, quando perguntado sobre o assunto, ele respondeu: “Eu nunca gostei do termo. E talvez isso seja porque eu não tenho um ego muito grande e não preciso de termos como esse… Eu quero pegar de volta tudo do mundo que demos a eles. Nós demos muito a eles”. Em outras palavras, para Trump, ao se colocar como um modelo para o mundo, os EUA gastaram mais tempo ajudando os outros a serem melhores do que usufruindo de sua própria grandeza. 

Políticos maiores que partidos políticos é algo muito comum na América Latina. É o que está acontecendo também nos EUA?

Sim. Recentemente, o Internacionalista Gustavo Poggio escreveu um ótimo artigo sobre isso. Segundo ele analisa, a eleição de 2024 fechou um ciclo para o partido republicano iniciado ainda em 2016, deixando evidente que o Great Old Party “não é mais um partido no sentido clássico do termo, mas apenas um veículo para um movimento com características de culto personalista centrado na figura de Donald Trump”. O interessante é que, nesse mesmo artigo, Poggio chega a comparar Trump a líderes populistas da América Latina. Segundo ele, “os EUA parecem agora, com a ascensão do Trumpismo, mais perto do modelo latino-americano de fazer política” centrado em torno da figura de um grande líder que encabeça um movimento. 

Pensando historicamente, houve outros momentos na história dos EUA em que líderes eram maiores que seus partidos, como foi o caso de Andrew Jackson e o partido Democrata na década de 1830 e Theodore Roosevelt e o Partido Progressista na década de 1910. Porém, em ambos os casos, não podem ser classificados como um movimento e o sistema político ainda não havia se modernizado, como vimos ocorrer após a década de 1960 nos EUA. 

Trump cresceu entre negros e latinos. Como explicar isso?

Ainda não há dados suficientes para chegarmos a uma conclusão. Jocosamente, poderíamos dizer que o fato de Trump se assemelhar mais a um líder populista latino-americano tenha caído com bons olhos ao eleitor hispânico. Agora, tratando da questão de maneira séria, precisamos pensar o problema por alguns prismas, econômico e de gênero. Começando pelo segundo. Trump avançou mais entre os homens negros e latinos do que entre as mulheres. De maneira geral, algo semelhante aos jovens da Geração Z também aconteceu. Sua campanha focou bastante naquilo que os americanos chamam de menosphere (“machosfera”), com participação em programas de podcasts voltados ao público masculino. A campanha de Trump sabe que existe um sentimento de ressentimento amplamente difundido por teorias redpills de que os homens estão sendo “deixados para trás”. Nesse caso, a adesão de latinos e negros do sexo masculino poderia ser lida dessa forma. 

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Donald Trump com Mike Pense, em 2019. Foto: History i HD / Unplash.

A outra explicação é econômica. São as populações com menor acesso a diploma e ocupam trabalhos menos qualificados, cujos salários foram mais afetados pelo aumento da inflação pós-pandemia, que chegou a atingir 9% no acumulado de 12 meses em 2023. Preços de comidas e itens básicos de limpeza e higiene tiveram aumentos maiores do que a inflação no período. Neste caso, o bolso teria pesado mais do que as potentes ameaças que Trump fez a grupos de imigrantes. A esse respeito, cabe ressaltar que, logo após a eleição, um eleitor hispânico de Trump disse: “Os democratas falam sobre Trump dizendo que vai deportar todos, mas isso realmente não nos assusta. Todo mundo sabe que isso é mentira, que ele não vai fazer isso. Sabemos que Trump apenas diz essas coisas para obter os votos dos gringos”. A ver. 

Extrema-direita, fascista, populista etc. Existe uma categoria que seja mais adequada para explicar Trump?

Bom, do ponto de vista ideológico, há quem classifique Trump como “paleoconservador”, uma versão do conservadorismo pré-Ronald Reagan, com corte mais reacionário. Alguém que tem uma interpretação nativista de nação, portanto mais xenofóbica, fechada ao multiculturalismo; protecionista, contrário ao livre mercado; e isolacionista em relação à política externa.  

Do ponto de vista do espectro político, gosto da definição do cientista político Cas Mudde, que estabelece uma diferença entre políticos de direita e políticos de ultra direita. Dentro da categoria de ultra direita, ele cria duas subdivisões: direita radical e extrema-direita. A direita radical é aquela que busca criar uma espécie de regime da maioria, um tipo de democracia iliberal onde a lógica democrática é utilizada para suprimir os interesses de minorias. Já a extrema-direita é aquela que não possui apreço pela democracia e que está disposta a romper com a mesma quando ela não a favorece. Penso que, até o 6 de janeiro de 2021, Trump poderia ser classificado como um político de direita radical. Porém, após esse episódio e, também, a constante recusa de Trump em aceitar os resultados das urnas (coisa que também faria esse ano caso fosse novamente derrotado), nos permite colocá-lo na extrema-direita.  

Vale lembrar que, ao longo da campanha, Trump flertou com essa perspectiva. Disse que seria “ditador apenas no primeiro dia de seu mandato” e que pensa em reestabelecer a Lei de Sedição de 1798 que fechou órgãos de Imprensa e deportou estrangeiros durante a administração de John Adams. 

Por que os democratas estão enfrentando tanta dificuldade para derrotar Trump?

Na eleição de Hillary, culpou-se a campanha mal-feita em estados-chave, a falta de mobilização dos eleitores e uma candidata sem carisma. O mesmo não pode ser dito dessa eleição. Kamala teve mais votos na Georgia que Biden em 2020 e foi a segunda candidata democrata com mais votos no Wisconsin, perdendo apenas para Obama em 2008. 

Parece haver, de fato, uma falta de percepção de que o mundo passou por transformações na dinâmica da produção e do trabalho que expandiu a riqueza de grandes empresas, mas diminuiu a possibilidade de mobilidade social nos EUA. A falta de acesso a bens de consumo e um padrão de vida de classe média está no cerne do American Way of Life que, para muitos, representa a própria democracia. As políticas democratas seriam entendidas como parte desse problema. Dentro da esquerda, nomes como Bernie Sanders alegam que os Democratas abandonaram a classe trabalhadora. Não me parece de todo verdadeiro. Biden foi o presidente que mais se aproximou dos sindicatos. O que parece fazer mais sentido é que o trabalhador e o trabalho já não são o mesmo de 30 anos atrás. 

Charlottesville
Supremacistas brancos entram em confronto com a polícia em Charlottesville, Virgínia, nos confrontos de 12 de agosto de 2017. Foto: Wikipedia, Evan Nesterak.

Trump, nesse caso, utilizando-se de sua imagem de empresário, passaria melhor a mensagem de que o sucesso é uma questão de esforço individual e que o Estado se coloca como um obstáculo. 

Por outro lado, há a interpretação feita por Mark Lilla em “O Progressista de Amanhã”, livro nem tão novo assim, de que os democratas insistem em um discurso identitário que não tem poder de coesão nacional e facilita o jogo para quem aposta no discurso do divisionismo, colocando boa parte dos EUA contra temas que supostamente não atingem a maioria do país.  

O que esperar para o Brasil após essa vitória de Trump?

Do ponto de vista político, reforça a ideia de que a maneira de fazer política da direita radical ainda rende bons frutos eleitorais. Porém, aqui, diferente de lá, o sistema partidário e judiciário possuem mais instrumentos para impor limites a isso.  

Do ponto de vista da dinâmica internacional, continua confuso. Pensando a curto prazo, por um lado, Trump, sendo um isolacionista, poderia abrir caminho para que o Brasil procurasse fortalecer alianças com outros players no mundo. O mesmo pode ser dito da aproximação de Trump e Putin, um dos líderes dos Brics, bloco econômico do qual o Brasil faz parte. Porém, os EUA teriam mais afinidades com a Argentina do que com o Brasil, o que poderia fortalecer o vizinho tanto do ponto de vista econômico quanto diplomático. 

Do ponto de vista do comércio internacional, Trump promete implementar uma tarifa global sobre importação, o que poderia prejudicar a entrada de produtos brasileiros nos EUA, principalmente aqueles que concorrem com produtos americanos. A ver. 

Como citar esta entrevista

SORRILHA, Marcos. “Trump é visto como uma espécie de líder ungido”. Entrevista realizada por Bruno Leal Pastor de Carvalho. In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/entrevista-marcos-sorrilha-sobre-trump/. Publicado em 11 nov. de 2024. ISSN: 2674-5917.

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Bruno Leal

Fundador e editor do Café História. É professor adjunto de História Contemporânea do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB). Doutor em História Social. Tem pós-doutorado em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisa História Pública, História Digital e Divulgação Científica. Também desenvolve pesquisas sobre crimes nazistas e justiça no pós-guerra.

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