Para entender os Iluminismos: 11 obras recomendadas, 1 alerta e 1 bônus 1
Joseph Wright de Derby, um filósofo dando uma palestra no Orrery, c. 1766, óleo sobre tela, 147,2 x 203,2 cm (Derby Museums and Art Gallery, Inglaterra).

Para entender os Iluminismos: 11 obras recomendadas, 1 alerta e 1 bônus

Iluminismo ou Iluminismos? O tema que todos estudamos na escola nunca saiu de moda. Mas tem sido nos últimos anos objeto de uma série de instigantes revisões historiográficas. Nesta bibliografia comentada, Daniel Gomes de Carvalho, professor do Departamento de História da USP, monta um “guia para saber mais” sobre o assunto.
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Nos tempos do bicentenário (1989), a historiografia da Revolução Francesa parecia viver seu período áureo. Nos dizeres do historiador François Furet, as “batalhas espetaculares” travadas entre as diversas correntes historiográficas pareciam emular as próprias vicissitudes do processo revolucionário. Tomar partido em relação à Revolução Francesa significava, não só adotar uma postura historiográfica específica mas também posicionar-se frente aos rumos do mundo. Hoje, embora a historiografia da Revolução Francesa ainda conte com importantes historiadores (veja mais aqui), os debates intensos que marcaram o passado parecem ter perdido o fervor de outrora.

No século XXI, em contraste, o foco das grandes disputas parece ter se deslocado para a historiografia do Iluminismo. Com efeito, é possível, hoje, encontrar textos-manifestos apaixonados “em defesa do Iluminismo”, em favor de um “novo iluminismo” ou, em contrapartida, localizando na “razão iluminista” a origem de um “sujeito universal” que resultaria no imperialismo, no epistemicídio e no racismo. Se alguns autores destacam um suposto caráter “eurocêntrico” ou “instrumental” do Iluminismo, outros preferem adotar uma abordagem plural, falando em ‘Iluminismos’ e ampliando suas manifestações para além da Europa, reconhecendo a existência de Iluminismos Espanhóis, Argentinos, Brasileiros, Haitianos, Egípcios, Chineses, entre outros.  

Historiadores como Antoine Lilti alertam que o Iluminismo não pode ser reduzido a Kant, como se “razão iluminista” e “razão kantiana” fossem sinônimos. Ao mesmo tempo, historiadores como Vincenzo Ferroni criticam a excessiva teologização do Iluminismo promovida pelas autoridades do Vaticano durante o pontificado de Joseph Ratzinger. Trabalhos como o de historiadoras como Marlene Daut, em sua Intellectual History of the Haitian Revolution, bem como a publicação, em português, dos textos de Toussaint de Louverture (Segundo Selo, 2024) e Olaudah Equiano (Editora 34, 2022), têm definitivamente mostrado a diversidade dos iluminismos atlânticos. Continua verdadeira a máxima de Luciano Guerci na abertura de seu capítulo sobre Iluminismo da obra, de 1988, L’Europa del Settecento Permanenze e Mutamenti: “O fenômeno ‘iluminismo’ aparece tão intricado, fugidio, proteiforme, que desencoraja os que procuram estabelecer seus traços unificadores.”

Em meio a essa complexidade, selecionamos aqui 11 obras gerais, tanto clássicas quanto contemporâneas, para quem quiser se aventurar e aprofundar seus conhecimentos sobre o tema. Nesta seleção, deixamos de lado obras mais específicas sobre alguns autores Iluministas e privilegiamos obras mais panorâmicas sobre o tema. Além das 11 recomendações, também deixamos um alerta a respeito de uma obra best-seller que deve ser lida com cuidado.

1. Antone Lilti. A Herança das Luzes. Niterói: Eduff, 2024

O livro, recentemente lançado em português pela editora da Universidade Federal Fluminense e traduzido por Andrea Daher (UFRJ) e Luiz César de Sá (UnB), contou com a presença do autor em setembro de 2024 na Universidade de Brasília e na Universidade de São Paulo. Na obra, o professor do Collège de France discute o legado ambíguo das Luzes, que não podem ser reduzido a um projeto único de “modernização” ou de “razão instrumental”, como se a pluralidade própria dos pensamentos do século XVIII pudesse ser reduzida aos dizeres de um punhado de autores. Nas palavras do tradutor, Luiz César de Sá, trata-se de um autor que apresenta o passado na forma de um legado, produto a um só tempo de experiências e apropriações, e não de influências e tradições. De Lilti, também vale a pena ler A Invenção da Celebridade (Record, 2017), no qual ele discute a importância dos mecanismos de celebridade para autores como Voltaire e Rousseau.

2. Vincenzo Ferrone. The Enlightenment: History of an Idea. Princeton: Princeton University Press, 2015.

Vincenzo Ferrone, professor de História Moderna na Università di Torino, aborda o problema discutido por Lilti sob uma perspectiva diferente. Para Ferrone, as ambiguidades na discussão sobre o Iluminismo decorrem do fato de que o tema é simultaneamente um objeto histórico e filosófico. Ele pode ser visto tanto como um movimento de ideias restrito ao século XVIII, uma época específica e irrepetível, quanto como um fator inerente à modernidade, uma filosofia perene que se mantém sempre contemporânea. Em outras palavras, a dificuldade na discussão sobre o Iluminismo está na indecisão entre a questão histórica (“o que foi o Iluminismo?”) e a questão filosófica (“o que é o Iluminismo?”).

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O livro do historiador Bruno Leal, professor da Universidade de Brasília, é destaque na categoria “historiografia” e “ensino e estudo”da Amazon Brasil. Livro disponível para leitura no computador, no celular, no tablet ou Kindle. Mais de 60 avaliações positivas de leitores.

3. Ernst Cassirer. A Filosofia do Iluminismo. Campinas: Editora Unicamp, 1997.

Junto a obras de Peter Gay e Paul Hazard, este clássico de 1932 é certamente uma das principais sínteses sobre o tema no século XX. Um dos aspectos mais notáveis do trabalho de Cassirer é a ênfase na importância do newtonianismo para a Filosofia das Luzes. Cassirer argumenta que, enquanto os filósofos do século XVII buscavam construir sistemas filosóficos baseados na ideia primordial de um ser supremo e em uma certeza intuitiva (esprit de système), utilizando métodos de demonstração e dedução rigorosos, a filosofia do século XVIII adota o paradigma metódico da física newtoniana. Para Cassirer, os iluministas abandonam o método de derivação e fundamentação sistemática de Descartes, Hobbes e Spinoza, e adotam o método newtoniano, que não parte de princípios e axiomas para alcançar a verdade, mas segue uma abordagem oposta (esprit systématique).

4. Anthony Pagden. La Ilustración: y por qué sigue siendo importante para nosotros. Madrid: Alianza Editorial, 2015.

A obra de Anthony Pagden, embora frequentemente criticada por apresentar um Iluminismo excessivamente unificado, tem o mérito de destacar aspectos frequentemente negligenciados da Ilustração. Pagden, por exemplo, aborda de maneira notável como a empatia serve como um elo entre os diversos aspectos da Ilustração, como laicismo, direitos humanos e economia de mercado. Além disso, ele sublinha a importância do direito natural tomista na formação dos direitos naturais, especialmente em sua dimensão individualista. Cabe também destacar suas reflexões sobre a importância dos viajantes e das “viagens filosóficas” do século XVIII.

5. Franco Venturi. Utopia e Reforma no Iluminismo. São Paulo: Edusc, 2003.

Os trabalhos de Cassirer e Peter Gay, conquanto fundamentais, possuíam uma abordagem excessivamente “filosófica” do Iluminismo, com sua ênfase nas “origens intelectuais” do movimento, negligenciando aspectos essenciais como a circulação, a recepção e a apropriação das ideias iluministas. A gigantesca contribuição de Franco Venturi – em grande parte sintetizada no texto Utopia e Reforma no Iluminismo, traduzido por Modesto Florenzano – foi um divisor de águas na direção de uma análise propriamente histórica das Luzes: se “os filósofos têm a tentação de navegar em direção à nascente”, dizia, os historiadores devem explorar como “o rio abriu seu caminho, em meio a quais obstáculos e dificuldades.” Venturi destaca a importância de contextos específicos, como a República de Gênova, a Holanda, a Suíça e o republicanismo inglês, na formação e disseminação das ideias iluministas. Para Venturi, essas repúblicas e movimentos republicanos foram fontes cruciais de inspiração para as Luzes, revelando uma dimensão mais complexa e diversificada do Iluminismo.

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Leitura de L’Orphelin de la Chine, de Voltaire (uma tragédia sobre Gengis Khan e seus filhos, publicada em 1755), no salão de Madame Geoffrin (Malmaison, 1812). Anicet Charles Gabriel Lemonnier (1743–1824)

6. Gertude Himmelfarb. Os Caminhos para a Modernidade: Os Iluminismos Britânico, Francês e Americano. São Paulo: É Realizações, 2011.

A intelectual nova-iorquina Gertrude Himmelfarb também pluralizou a compreensão das heranças do Iluminismo. Segundo ela, a ênfase na razão e o anticlericalismo foram características mais proeminentes do Iluminismo francês do que do Iluminismo em geral, de modo que nossas projeções sobre a Ilustração tendem a comportar um viés galicismo. Muitos iluministas britânicos e norte-americanos eram pouco ou nada anticlericais e eram avessos ao ultraracionalismo. Himmelfarb argumenta que ‘o Iluminismo britânico representa a sociologia da virtude; o francês, a ideologia da razão; o americano, a política da liberdade’. Assim, o metodismo ou o conservadorismo de Edmund Burke, longe de serem “contrailuministas”, seriam, na verdade, possíveis expressões das Luzes em sua diversidade.

7. John Greenville Asgard Pocock. O Momento Maquiaveliano. Niteroi: Eduff, 2022.

Pocock tem uma vasta produção sobre o Iluminismo, destacando-se o monumental Barbarismo e Religião. Neste trabalho, ele oferece uma análise crítica ao discutir Gibbon, apresentando o Iluminismo não como um “projeto” único e coeso, mas como uma “família de programas políticos e intelectuais”. Em língua portuguesa, outra obra significativa é O Momento Maquiaveliano, traduzida por Modesto Florenzano. Embora não se concentre exclusivamente na Ilustração, essa obra revela como o republicanismo florentino atinge o coração das ideias iluministas. Pocock explora, por exemplo, o papel da economia política neomaquiaveliana e os usos do humanismo cívico na Revolução Americana, demonstrando a relevância contínua do pensamento maquiaveliano para a compreensão das Luzes.

8. José Lourenço de Sant’Anna Filho. Isaiah Berlin e o contrailuminismo. Análise conceitual e diálogo historiográfico (1973–2013). Dissertação de Mestrado: Universidade de Brasilia, 2023.

Se o Iluminismo é um tema de amplo conhecimento, pouco conhecida é a discussão sobre a Antifilosofia e o Contrailuminismo no século XVIII, que conta com autores como Darrin M. McMahon. O mérito do trabalho do historiador José Lourenço de Sant’Anna Filho é precisamente apresentar para o público brasileiro o debate historiográfico sobre o tema, tomando como ponto de partida a maneira a partir da qual Isaiah Berlin uniu sob esse termo autores tão diversos como o napolitano Giambattista Vico (1688-1744), o francês Joseph de Maistre (1753-1821) e os germânicos Johann Hamann (1730-1788) e Johann Herder (1744-1803).

9. Jonathan Israel. Iluminismo radical: a filosofia e a construção da modernidade 1650-1750. São Paulo: Madras, 2009.

A obra de Israel, na mesma medida que é inovadora, erudita e esclarecedora, deve ser lida com cautela. O método ‘controversialista’ do autor põe ênfase nos momentos em que as discordâncias implícitas se tornam explícitas, tornando as fissuras e contradições mais evidentes. Israel destaca a presença de um “Iluminismo Radical”, um movimento transatlântico tributário do pensamento de Espinosa e associado a um “pacote básico de conceitos e valores”, derivado de uma visão sistêmica e monista da realidade. Embora a obra ofereça uma nova perspectiva sobre aspectos pouco explorados pela historiografia, ela também é criticada por exagerar a influência de Spinoza no século XVIII e por adotar uma abordagem por vezes antiquada na história das ideias.

10. Robert Dartnon. Os dentes falsos de George Washington: um guia não convencional para o século XVIII. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2005.

Robert Darnton, autor amplamente traduzido e presente nos cursos de graduação em história no Brasil, é conhecido por suas obras sobre o século XVIII, nas quais destaca o impacto da impressão, da leitura e dos panfletos pouco convencionais no Iluminismo, conceito que ele descreve como “Iluminismo Underground”. Os Dentes Falsos de George Washington reúne oito artigos de Darnton, nos quais ele aborda temas como publicações secretas, canções populares, fofocas sobre a corte, especialmente sobre a vida íntima dos monarcas, e a vida privada de figuras como Rousseau, Condorcet e Brissot.

11. Anadir dos Reis Miranda. Proto-feministas na Inglaterra Setecentista: Mary Wollstonecraft, Mary Hays e Mary Robinson. Sociabilialidade, Subjetividade e Escrita de Mulheres. Doutorado. Universidade Federal do Paraná, 2017.

Assim como não é possível considerar o Iluminismo deixando de lado sua diversidade espacial e étnica, o século das luzes não pode ser analisado sem considerar a questão de gênero. É nesse sentido que ressaltamos a contribuição da tese de Anadir dos Reis Miranda, ao discutir criticamente a produção letrada das escritoras Mary Wollstonecraft (1759-1797), Mary Hays (1759-1843) e Mary Robinson (1757-1800) no contexto da Ilustração. Segundo a historiadora, essas autoras tensionaram, por meio de seus comportamentos e escritos, muitos dos limites e paradoxos de gênero presentes nos discursos esclarecidos e liberais, estas mulheres de letras contribuíram para a produção de importantes reflexões e mesmo práticas que seriam incorporadas mais tarde ao movimento de mulheres e ao feminismo.

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Immanuel Kant, retrato pintado, c1790. Kant (1724-1804) foi um filósofo alemão e um dos pensadores centrais do Iluminismo. circa 1790. Original from the Norwegian Digital Learning Arena (NDLA) https://ndla.no/image/43900

Um alerta

Steven Pinker. O novo iluminismo: em defesa da razão, da ciência e do humanismo. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2018.

O best-seller de Steve Pinker, do ponto de vista histórico, possui muitos dos problemas discutidos nas outras obras mencionadas nesta bibliografia comentada. Pinker apresenta o Iluminismo como portador de um núcleo de características comuns que, ao combater o obscurantismo, merecem ser revisitadas em tempos de extremismo. Assim, o Iluminismo é proposto como um projeto a ser atualizado e revitalizado. Trata-se de uma abordagem fortemente unilateral, reducionista e a-histórica do Iluminismo, o qual perde sua especificidade e sua pluralidade em favor de um uso determinado para o tempo presente.

Um bônus

História FM – Iluminismo: o que você precisa saber para entender

Como recomendação adicional, sugerimos o podcast História FM, apresentado pelo historiador Icles Rodrigues, que inclui um extenso episódio sobre o Iluminismo. O entrevistado, que é também o autor deste texto, desenvolve algumas das ideias discutidas nesta bibliografia recomendada. Confira aqui.

Como citar esta bibliografia comentada

CARVALHO, Daniel Gomes de. Para entender os Iluminismos: 11 obras recomendadas, 1 alerta e 1 bônus (bibliografia comentada). In: Café História. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/bibliografia-comentada-sobre-iluminismos/. Publicado em: 17 dez. 2024. ISSN: 2674-5917.

Daniel Gomes de Carvalho

Professor de História Moderna no Departamento de História da Universidade de Sao Paulo (USP). Professor do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília (UnB). Doutor em História Social pela Universidade de São
Paulo (USP). Podcaster no História Pirata. Autor de "Revolução Francesa" (Contexto, 2022).

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